Nas alegações finais, Ivan Zabavskyi denunciou as torturas diárias que sofreu durante nove meses numa prisão secreta.
Nas alegações finais, Ivan Zabavskyi denunciou as torturas diárias que sofreu durante nove meses numa prisão secreta.DR

Ivan foi de bicicleta retirar a mãe da aldeia sob fogo e acabou condenado por espionagem

O Centro para as Liberdades Civis, Prémio Nobel da Paz de 2022, sugere sanções para pressionar a Rússia a libertar milhares de civis ucranianos detidos.
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À entrada do sétimo mês da invasão russa, as forças ucranianas empurraram o inimigo na região de Kharkiv. No distrito de Kupiansk, a aldeia de Tavilzhanka, sob ocupação, ficou na linha da frente. Ivan Zabavskyi, natural daquela localidade a residir em Kharkiv (Carcóvia), onde trabalhava num café, tenta regressar para resgatar a mãe dos bombardeamentos, mas acaba detido pelos militares russos. A história de Ivan é uma entre 16 mil civis presos pela Rússia depois de ter feito parte da lista de cerca de 60 mil desaparecidos. Um drama que fica para segundo plano na guerra, mas que recentemente ganhou mais visibilidade com a campanha específica para o regresso de 20 mil crianças transferidas à força pela Rússia.

No dia 28 de setembro de 2022, um dia depois de ter enterrado a sua irmã no quintal, onde tinha sido atingida mortalmente com estilhaços, Maryna Zabavska decidiu que não tinha condições para permanecer debaixo de fogo. “Já chega, pensei. Não aguento mais”, contou ao site russo Mediazona, e abandonou a sua terra com o objetivo de se reunir com o filho, com o qual não conseguia comunicar. O rio Oskol dividia então como hoje o controlo militar da zona. Os russos haviam derrubado a ponte para a localidade ucraniana mais próxima, Dvorichna, pelo que Zabavska teve de seguir por território russo ou controlado pelos russos. Foi na região de Belgorod que Maryna Zabavska (filha de uma ucraniana e de um russo de Leninegrado, atual São Petersburgo) reentrou em território ucraniano. “No caminho, descobri que o meu filho tinha ido para nossa casa”, recorda ao DN.

16 000
Civis ucranianos encontram-se presos na Rússia, segundo o comissário para os direitos humanos Dmytro Lubinets.

“Não há dúvida de que o meu filho queria levar-me para longe de casa. Eu era como um detetive, descobri tudo sozinha, em que circunstâncias Ivan desapareceu”, disse. Em resultado dos contactos que estabeleceu, conseguiu desenhar a linha do tempo e as circunstâncias em que o filho, então com 27 anos, desapareceu. “Chegou a Dvorichna vindo de Kharkiv, para casa dos seus amigos, carregado de pão, a 29 de setembro de 2022”, ou seja, um dia depois da mãe ter partido. O pão era um estratagema para poder entrar em zonas perigosas, como voluntário. Ao tomar conhecimento de que a ponte tinha sido inutilizada, deixou os pertences com os amigos e pediu uma bicicleta emprestada a outras pessoas. “Disse-lhes: ‘Vou buscar a minha mãe e volto depressa, e vocês preparem-se, que eu também vos levo para Karkhiv’.” Tentaram desencorajá-lo, mas ninguém teve argumentos “Como é que posso viver em paz sabendo que a minha mãe está em perigo? Estou tão preocupado que não durmo há uma semana”, disse aos amigos.

Maryna com um cartaz  a denunciar o ”inferno” do cativeiro do filho.
Maryna com um cartaz a denunciar o ”inferno” do cativeiro do filho.DR

Ao fim de quase três meses sem notícias do filho, Maryna conseguiu regressar à sua aldeia. “Perguntei por ele a todos os transeuntes, amigos e desconhecidos, aos militares russos. Uma mulher que vivia não muito longe da minha casa, viu o meu filho ser levado pelos militares russos.” Não só o viu, como ele fez questão de lhe dizer o nome e apelido. A mãe de Ivan começou então uma campanha sem quartel junto das autoridades russas. Meio ano depois recebeu uma carta do Ministério da Defesa da Rússia. Ivan Zabavskyi fora detido por resistir à “operação militar especial” e, apesar de não informar sobre a sua localização, dizia que o seu estado de saúde era “satisfatório”.

No final de julho de 2023, os jornalistas da Mediazona revelaram que Ivan iria ser julgado em São Petersburgo, acusado de espionagem. Durante o julgamento, o ucraniano mostrou não concordar com a alegação russa sobre a sua saúde. Ivan esteve detido nove meses numa prisão secreta em Belgorod, onde era sujeito a interrogatórios e torturas diárias. “Um dia parecia um ano ou uma eternidade. No mínimo, espancavam-me duas vezes por dia, outras vezes três”, contou à juíza nas alegações finais, tendo denunciado ainda o uso de choques elétricos. “Rogo-lhe que tenha em conta o inferno pelo qual passei e que responsabilize aqueles que permitiram que isto acontecesse”, disse à juíza depois de ter assinado um documento em que confessou ter ajudado as tropas ucranianas a localizar as russas. O procurador havia pedido a condenação a 13 anos de prisão; no final de janeiro, Ivan Zabavskyi foi condenado a 11 anos de prisão numa colónia penal.

“Devemos sempre acreditar que os nossos familiares regressarão”, diz Maryna, questionada se tem esperança que o filho que criou sozinha seja libertado antes de cumprir a pena. “O problema - prossegue - é que, em três anos, não foi desenvolvido qualquer mecanismo para fazer regressar os civis do cativeiro. De acordo com a lei, os militares podem ser trocados, mas os civis devem ser simplesmente libertados. Mas sabemos que a Rússia não vai libertar os civis sem mais nem menos. É um beco sem saída!”.

171
Libertados entre os civis, enquanto as 63 trocas de prisioneiros levaram ao regresso a casa de 4381 militares ucranianos.

De acordo com Mykhailo Savva, perito do Centro para as Liberdades Civis, a organização não governamental galardoada com o Prémio Nobel da Paz de 2022, apenas 171 civis ucranianos foram libertados das prisões russas em troca com prisioneiros de guerra russos. Este é um dos poucos números rigorosos sobre as pessoas afetadas pela guerra. “Quem são os civis libertados? As pessoas que foram mantidas numa cave nos território ocupados durante vários dias ou semanas, torturadas, e depois libertadas? São milhares e ninguém sabe exatamente quantas. Detidas sem ordem judicial durante meses ou anos e que depois foram libertadas graças ao trabalho de advogados russos? São várias centenas. Quantas são as crianças que regressaram à Ucrânia? Ninguém sabe quantas regressaram com os pais através de países europeus, mas cerca de 800 crianças que foram levadas pelos russos sem pais ou tutores foram devolvidas”, diz ao DN.

Savva, que é doutorado em Ciência Política, defende uma ação simultânea em três frentes: introduzir um pacote especial de sanções contra os responsáveis pela privação ilegal da liberdade de civis; assegurar que a questão da libertação imediata dos cidadãos seja incluída na agenda das negociações entre os Estados Unidos e a Rússia; e recorrer ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) para exigir a libertação imediata de civis. “Privar os civis da sua liberdade desta forma é uma forma de tratamento cruel”, considera. “O TIJ tem o direito de exigir que a Rússia liberte todos os civis como medida provisória”, sugere.

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