Com multidões pró-israelitas e pró-palestinianas nas ruas de Haia, o Tribunal de Justiça (TIJ) recebeu a sessão inaugural do caso apresentado pelo governo de África do Sul, no qual acusa Israel de crimes de guerra, entre os quais genocídio. Cabe hoje a Telavive defender-se, mas quer o primeiro-ministro, na véspera, quer o Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois, rejeitaram as alegações e contra-atacaram, acusando Pretória de ser o “representante jurídico do movimento terrorista Hamas”..A África do Sul, cujo partido no poder, o Congresso Nacional Africano, compara as políticas de Israel em Gaza e na Cisjordânia com a sua própria história, sob o regime de apartheid que durou até 1994, enviou uma delegação chefiada pelo ministro da Justiça, Ronald Lamola. Ao painel de juízes, a advogada sul-africana Adila Hassim disse “dispor do benefício das últimas 13 semanas de provas que mostram de forma incontestável um padrão de conduta e uma intenção relacionada” que equivale a “uma alegação plausível de atos genocidas”..Continuou Hassim: “As mães, os pais, os filhos, os irmãos, os avós, as tias, os primos são frequentemente mortos em conjunto. Esta matança é nada mais nada menos do que a destruição da vida palestiniana. É infligida deliberadamente. Ninguém é poupado. Nem mesmo os bebés recém-nascidos”. Perante este quadro de conflito, África do Sul solicita com caráter de urgência uma ordem do tribunal para que as operações militares na Faixa de Gaza sejam suspensas. .É esperado que o TIJ tome uma decisão nas próximas semanas. Porém, apesar de as decisões deste tribunal das Nações Unidas não poderem ser passíveis de recurso e de serem juridicamente vinculativas, não há meios para as fazer cumprir. Por exemplo, em março de 2022, a Rússia ignorou a ordem do TIJ para que aquele país parasse com a invasão da Ucrânia, até porque Moscovo tem o poder de veto sobre sanções a aplicar pelo Conselho de Segurança da ONU - e no que respeita a Israel, os EUA, que se mostraram muito críticos desta iniciativa de Pretória, iriam fazer o mesmo naquela instância pelo seu aliado. .Os danos são de natureza reputacional e se a África do Sul se compara com a Palestina, Israel nasceu de um genocídio praticado contra os judeus e ciganos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, aprovada em 1948, foi criada na sequência dos crimes nazis e é agora apontada contra os descendentes dessas vítimas..Terá sido por isso que Telavive, que não raras vezes critica tribunais e investigações internacionais, acedeu a fazer-se representar num caso que se estenderá bem para lá das semanas em que o coletivo de 15 juízes atenderá ao pedido sul-africano. É tido como provável que o processo se prolongue por anos, enquanto a África do Sul tenta alargar o espectro do caso. “A violência e a destruição na Palestina e em Israel não começaram em 7 de outubro de 2023. Os palestinianos têm sofrido opressão e violência sistemáticas nos últimos 76 anos”, afirmou o ministro Lamola..O Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, através do porta-voz Lior Haiat, disse que a África do Sul “distorceu totalmente a realidade” numa “das maiores demonstrações de hipocrisia da história” e acusou Pretória de “procurar permitir que o Hamas volte a cometer os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes sexuais que cometeu repetidamente em 7 de outubro”..Antes, na quarta-feira à noite, num vídeo em inglês, Netanyahu negou a “intenção de ocupar permanentemente Gaza ou de deslocar a sua população civil”, mas defendeu combater o Hamas “em total conformidade com o direito internacional”..Uma versão adaptada à rejeição do plano de expulsar os palestinianos de Gaza e que estava a ser discutido até há duas semanas pelo Likud, o partido do primeiro-ministro. “O nosso problema é [encontrar] países que estejam dispostos a absorver os habitantes de Gaza, e estamos a trabalhar nesse sentido”, terá dito Netanyahu, segundo contou o deputado Danny Danon ao Times of Israel. .Sobrevivente do Holocausto na defesa O governo israelita designou Aharon Barak, de 87 anos, como defensor legal do país no caso apresentado pela África do Sul em Haia. A decisão foi recebida com alguma surpresa, uma vez que o ex-presidente do Supremo Tribunal é uma das vozes mais críticas da controversa reforma judicial que acabou por ser derrubada no início do ano. Reforma que era considerada à medida de Benjamin Netanyahu porque o protegia dos julgamentos que tem em curso contra si..O facto de não ser bem visto pela direita levou o ministro das Comunicações Shlomo Karhi a comentar a nomeação de Barak como uma prova do “brilhantismo” de Netanyahu. Além disso, a carga simbólica de ter Barak a defender Israel não pode ser menosprezada, tendo em conta que é sobrevivente de um genocídio, o Holocausto. .Dois pesos e duas medidas, diz HRW A ONG Human Rights Watch (HRW) considera que a comunidade internacional revelou ter dois pesos e duas medidas ao condenar de imediato os ataques do Hamas a Israel e ao hesitar em acusar Telavive de crimes de guerra. “Muitos países condenaram rápida e justificadamente estes atos horríveis”, comentou a diretora executiva da HRW sobre os ataques de 7 de outubro, tendo, no entanto, afirmado que Telavive reagiu com “uma forma de punição coletiva que constitui um crime de guerra” e que muitos dos governos que condenaram os crimes do Hamas mostram-se hesitantes em criticar a resposta israelita..cesar.avo@dn.pt