“Há continuidade de pensamento nos governantes do Kremlin que remonta a séculos, até a Ivan, o Terrível”
Qual a motivação de Winston Churchill para pedir a Estaline que aceitasse a presença de jornalistas britânicos e americanos em Moscovo?
Churchill tinha sido um corajoso correspondente estrangeiro na sua juventude e as suas reportagens inflamadas provocaram uma onda de fervor patriótico em casa durante a Guerra da África do Sul (1899-1902). Ele achava que o povo britânico precisava de ler sobre os feitos heróicos do Exército Vermelho em artigos escritos por autores britânicos conhecidos. Além disso, a Grã-Bretanha estava a enviar para Moscovo mantimentos essenciais - metais, borracha e aeronaves necessárias noutras frentes. O público precisava de saber que os aviões Hurricane enviados para Moscovo estavam a ser utilizados com eficácia.
Por que razão Estaline aceitou?
Estaline estava encurralado. Tinha perdido as suas tropas da linha da frente e os aviões nos primeiros dias da invasão de Hitler. Ele precisava de tudo o que a Grã-Bretanha, e depois também os EUA, pudessem fornecer. Na altura, estava confiante de que os jornalistas poderiam ser domados pela censura e pela ameaça de perder as credenciais de imprensa, sem esquecer o relativo luxo em que viviam no Hotel Metropol, onde tinham o direito de escolher jovens russas para traduzir para eles e, por vezes, partilhar a sua cama.
Os jornalistas estrangeiros na União Soviética tiveram liberdade de circulação em algum momento durante a Segunda Guerra Mundial?
Não. Foram levados para os locais de batalhas ganhas pelo Exército Vermelho (quando este começou a repelir os alemães). Nessa altura, os campos de batalha já haviam sido limpos. Os jornalistas estrangeiros nunca foram acreditados junto do exército, apenas no Ministério dos Negócios Estrangeiros, que organizava visitas guiadas ocasionais à frente de combate.
Havia agentes e espiões soviéticos no Hotel Metropol, mas, como já sublinhou, as relações pessoais eram mais complexas, certo?
Correto. Havia escassez de falantes fluentes de inglês para orientar os jornalistas. Durante as purgas da década de 1930, ter aprendido inglês no estrangeiro era motivo suficiente para ser enviado para o Gulag. Todas as “secretárias-tradutoras” (como eram conhecidas as assistentes femininas dos jornalistas) tinham de se apresentar semanalmente aos seus controladores na NKVD, mas algumas tinham as suas próprias agendas. Nadia Ulanovskaya, uma das heroínas do livro, perdera a fé em Estaline nos anos 30 e procurou secretamente - com grande risco para si própria - um jornalista a quem pudesse confiar a verdade sobre a vida sob Estaline. Em contraste, a assistente que mais falava abertamente sobre os rigores da vida sob Estaline revelou-se uma infiltrada da NKVD: tinha sido libertada do Gulag para induzir os jornalistas a revelarem as suas verdadeiras visões sobre Estaline. A proibição da era Estaline da confraternização entre mulheres russas e estrangeiros foi levantada no Metropol durante a guerra, pelo que o hotel era uma ilha de amor livre entre jornalistas e assistentes, para grande desgosto das raras mulheres correspondentes.
Estaline ganhou realmente alguma coisa com a espionagem no Hotel Metropol?
O caso de Ralph Parker, correspondente do The Times de Londres, é elucidativo. Parker era uma personagem complexa em quem nunca confiaram nem os britânicos nem os russos. Como disse Guy Burgess, um dos famosos espiões de Cambridge que trabalhou para os serviços de informação soviéticos: “Todos sabemos que o Parker é um agente, só não sabemos de que lado está.” Casou com a sua tradutora soviética e permaneceu em Moscovo o resto da vida. Foi escolhido por Estaline para responder a perguntas por escrito (uma interação que foi elevada à categoria de “entrevista” no jargão jornalístico), a fim de negar que pretendesse transformar a Polónia num satélite soviético, o que, obviamente, era o seu plano desde o início. O editor estrangeiro do The Times queixou-se de que o texto de Parker estava demasiado cheio de propaganda soviética, mas Parker tinha uma linha direta com o editor assistente pró-soviético do jornal, E.H. Carr, e comunicava-lhe os pontos de vista do Kremlin. A dada altura, o Times foi criticado como o “Daily Worker de três cêntimos” (o jornal do Partido Comunista Britânico). Assim, Parker prestou um serviço útil a Estaline.
O Ocidente ficou a conhecer melhor a realidade soviética?
Não muito. O jornalista norte-americano Edgar Snow quebrou as regras para entrevistar uma família soviética em casa. Nunca conseguiu outro visto soviético. Com bastante tempo disponível, os repórteres sediados em Moscovo escreveram livros sobre a URSS, mas estes best-sellers foram todos escritos de forma a não irritar o aliado soviético nem a pôr em risco a credencial de imprensa do autor. Portanto, não havia muito de valor ali. O mais prolífico destes autores foi o jornalista da BBC e da Reuters, Alexander Werth, que nasceu na Rússia, mas cuja família fugiu de Petrogrado para a Grã-Bretanha após a revolução de 1917. Mesmo vinte anos após o fim da guerra, Werth negava que a polícia secreta soviética tivesse cometido assassinatos em massa nas décadas de 1930 e 1940. Se algum prisioneiro morreu, insistia, foi por causa do “excesso de trabalho, má alimentação e exposição ao frio”. O seu papel como apologista de Estaline privou-o do maior furo jornalístico da guerra. Enviou um artigo com base numa testemunha ocular à BBC em julho de 1944 sobre o campo de extermínio nazi de Majdanek, libertado intacto pelo Exército Vermelho. Cada palavra era verdadeira, mas a BBC recusou-se a publicá-la, alegando que se tratava de propaganda soviética.
Os americanos e os britânicos foram aliados dos soviéticos durante boa parte da Segunda Guerra Mundial. Foi uma aliança sempre repleta de desconfiança mútua?
Da parte de Estaline, sim! Perto do fim da guerra, a opinião do Kremlin (embora não para publicação na imprensa oficial soviética) era de que a aliança de guerra com os EUA e o Reino Unido foi um acidente, e a Grã-Bretanha teria ficado mais feliz por se aliar a Hitler contra a URSS. Num jantar com alguns visitantes jugoslavos, Estaline disse: “Churchill é o tipo de homem que vai roubar-vos por um copeque . Sim, irá à vossa carteira por um copeque! Roosevelt não é assim: ele quando mete a mão é em moedas maiores.” Havia muita desconfiança entre Churchill e Roosevelt: os americanos não viam por que razão deveriam prolongar o Império Britânico. E Roosevelt iludiu-se a pensar que poderia enganar Estaline e excluiu Churchill de importantes reuniões com o líder soviético. Aquilo era a fantasia de um homem moribundo. Ninguém conseguia enganar Estaline na Europa: tolerou níveis assustadores de baixas que nem os aliados ocidentais conseguiram aceitar.
A rivalidade na Guerra Fria que se seguiu a 1945 era inevitável?
O povo britânico, que vivia da propaganda de Estaline como o bondoso “Tio Joe” durante a guerra, esperava e acreditava que a aliança iria continuar. Hoje, não é fácil compreender como é que isto poderia ter acontecido. A Grã-Bretanha entrou em guerra para proteger a independência da Polónia. A guerra começou com Hitler e Estaline a varrerem a Polónia do mapa debaixo das cláusulas secretas do pacto Molotov-Ribbentrop. Estaline sempre pretendeu transformar a Polónia num satélite da URSS, mesmo tendo prometido falsamente eleições livres. Isto foi uma humilhação para Churchill, que num acesso de loucura pediu ao exército britânico que elaborasse planos para expulsar o Exército Vermelho da Polónia. Era loucura, claro, e nunca aconteceu, mas ainda assim demonstrou a profundidade do ressentimento por ter sido manipulado por Estaline.
Na sua experiência como jornalista na Rússia, sentiu algo semelhante ao que descreve no livro Hotel Vermelho?
O Hotel Vermelho é um exemplo extremo de como os jornalistas competentes podem ser manipulados quando trabalham em ditadura. E não apenas em tempo de guerra. Apercebi-me, trabalhando em Moscovo a partir de 1979, que os jornalistas instalados em cargos de prestígio (como Moscovo) podiam recorrer à autocensura para evitar a expulsão. Trabalhar em Moscovo exigia um conhecimento de russo, adquirido com dificuldade ao longo de anos. A expulsão do país significava que nunca mais voltaria ou usaria a língua.
Acha que o legado soviético ainda molda em grande medida a sociedade russa?
Apenas em alguns aspetos. Putin compreendeu que a União Soviética entrou em colapso porque a liderança tinha ficado sem ideias e perdido a confiança na sua própria ideologia, depositando, por isso, a sua confiança em Gorbachev, que derrubou o castelo de cartas. Culpa Lenine pelo pecado capital de permitir que os ucranianos fossem ensinados nas escolas na sua própria língua (não o russo), o que, na sua opinião, criou a “falsa” identidade ucraniana que agora está determinado a extinguir. Seria mais exato dizer que há uma determinação entre os russos mais velhos de nunca regressar aos tempos “revolucionários” das décadas de 1980 e 1990, quando os capitalistas bandidos, encorajados por Washington para que os comunistas nunca mais pudessem regressar, roubaram toda a sociedade; professores, enfermeiros e reformados ficaram sem salário. Por isso, acham melhor agarrarem-se a Putin do que a qualquer suposto “democrata”. Naturalmente, Putin aproveita-se disso para apoiar o seu governo permanente.
As comparações entre Vladimir Putin e Estaline são abusivas ou existe uma certa continuidade de pensamento político?
Há uma continuidade de pensamento nos governantes do Kremlin que remonta a séculos, até mesmo a Ivan, o Terrível , no século XVI. A questão é que a Rússia não tem fronteiras defensáveis com o Ocidente e a única garantia de segurança é uma generosa zona tampão. Catarina, a Grande, conseguiu isso (incluindo a extinção dos Estados polaco e ucraniano), pelo que a Rússia controlou o território desde o Mar Báltico até ao Mar Negro. Parte dessa zona tampão foi perdida em 1917, mas Estaline recuperou-a em 1945 - e também metade da Alemanha. Assim, pode ver o pensamento geopolítico de Putin remontar a muito para além da URSS, bem mais para trás. As suas ideias são uma mistura desregrada: da URSS, aproveita a a gloriosa vitória de Estaline em 1945, que ascendeu agora ao estatuto de escritura sagrada; e do Império Russo, imita o expansionismo para oeste e a parceria ideológica com a Igreja Ortodoxa Russa.
Hotel Vermelho
Alan Philps
Vogais
432 páginas
24,35 euros