Hotel Timor em Díli, renascido das cinzas e onde se come pastel de nata

Tiago Barata chegou como cooperante e viu o antigo Makota em ruínas. Graças à Fundação Oriente, a capital timorense voltou a ter um hotel a tempo da proclamação de independência, a 20 de maio de 2002. E um diretor que diz divertir-se a geri-lo, apesar do muito trabalho.
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"Vim para cá em 2000, quando isto estava ainda a arder. Vim trabalhar na cooperação portuguesa com Timor-Leste. Fazia parte do gabinete do padre Vítor Milícias, de apoio à transição para a independência", conta Tiago Barata, diretor do Hotel Timor, olhando para o relógio, pois esta conversa acontece num dia que já sabe vai ser animado, ou não acabasse de chegar a Díli um voo da euroAtlantic vindo de Lisboa, uma das poucas ligações em tempos de pandemia. Antigo Hotel Makota, incendiado pelas tropas indonésias depois do voto pela independência no referendo de agosto de 1999, foi refúgio dos observadores internacionais e dos jornalistas estrangeiros antes de partirem para aeroporto, ameaçados pelas milícias pró-integração, decididas a ignorar que dias antes quatro em cada cinco timorenses optara por um país próprio.

Conta Tiago (é assim que pede para ser tratado) que desde que chegou a Díli e viu as ruínas pensou logo que gostava de fazer ali de novo um hotel. "Eu tinha trabalhado em hotéis em Portugal, mas senti que precisava de mudar de vida e por isso me voluntariei para Timor. Quando chegámos estava tudo destruído e não havia onde dormir. Eu lembrava-me dos diretos das televisões aqui. Da CNN e também dos jornalistas das televisões portuguesas. Mal eles saíram tudo começou a arder. Então, quando vi isto ao abandono, comecei logo a ter ideias", explica este lisboeta de 52 anos, que atende agora o telefone para confirmar que João Soares, antigo presidente da Câmara de Lisboa, de visita, tem já transporte assegurado para ir ao Parlamento. No átrio do Timor, a animação é grande, entre quem acaba de chegar de malas e se regista na receção e quem aproveita para tomar um pequeno-almoço onde até há pastéis de nata.

"O que é engraçado é o que o Dr. Carlos Monjardino veio a Timor pouco depois e perguntou às autoridades, tanto à ONU como ao Dr. Mari Alkatiri, que foi o primeiro primeiro-ministro do novo país, o que é que a Fundação Oriente podia fazer para ajudar. E disseram-lhe que precisavam de um hotel. E como eu estava aqui ele perguntou-me se eu estava disposto e o certo é que nasceu um hotel. Ou renasceu. Este hotel nasce de um aperto de mão entre Sérgio Vieira de Melo, o diplomata brasileiro da ONU, Mari Alkatiri e Carlos Monjardino, o que é uma coisa notável. Houve aqui um investimento de seis milhões de dólares. Praticamente um cheque em branco da Fundação Oriente a Timor", acrescenta Tiago. Nova interrupção na conversa. Agora é José Caetano Pestana, da euroAtlantic e velho amigo, que aproveita para lhe entregar um saco de "pão alentejano, acabadinho de chegar de Portugal".

O cooperante internacional voltava assim de um dia para o outro a ser gestor de hotéis e em contra-relógio. "Quando começámos não havia nada e a premissa era ter o hotel pronto para a independência, a 20 de maio de 2002. Conseguimos. O presidente Jorge Sampaio ficou na embaixada, mas todas as outras entidades ficaram cá", conta Tiago. O DN, que já tinha tido jornalistas em Timor em reportagem na altura do referendo, e ainda antes, em 1998, a acompanhar João Soares na sua ida a Jacarta para se encontrar numa prisão indonésia com o chefe guerrilheiro Xanana Gusmão, assistiu a essa declaração histórica de independência junto com Sampaio, artigos assinados por Graça Henriques. Xanana tornou-se o primeiro presidente da antiga colónia portuguesa, que depois de uma atribulada retirada portuguesa e de uma efémera declaração de independência em 1975 tinha sido ocupada durante 24 anos pela Indonésia.

"Tenho dúvidas de que haja muitos hotéis que tenham recebido tanta gente importante como este: Lula da Silva, Koffi Annan, Bill Clinton veio cá se refrescar, Ban Ki-Moon, António Guterres, Mahatir Mohamad da Malásia, John Howard da Austrália, Tony Blair, Gordon Brown e outros", relembra Tiago.

"Entre 2006 e 2012 estive em Portugal também a gerir hotéis. Voltava a Díli uma vez por ano. Depois vim cá resolver um problema a pedido da Fundação e acabei por ficar até hoje, sempre como diretor do Hotel Timor". Confessa que ser solteiro lhe facilitou esta opção de vida, apesar de haver muitos portugueses em Timor a viver com a família, alguns até casados com timorenses, o que reforça os laços com um país distante, mas cuja liderança, consciente da necessidade de defender a identidade nacional, oficializou o português com língua a par do tétum.

Os dois últimos anos têm sido atípicos por causa da covid-19, afetando o Timor, mesmo não sendo este um hotel, como explica o diretor, a pensar nos turistas. "Os nossos hóspedes são sobretudo empresários, diplomatas, funcionários da ONU, e há quem fique dois ou três meses". São 88 quartos e houve uma remodelação em 2014. Tem piscina, o que num país de clima tropical, menos de mil quilómetros a sul do Equador, assegura a popularidade do local. Mas o toque português na decoração dá ao Timor um charme especial. "Uma pessoa chega aqui e sente-se bem. Pessoalmente gosto muito. E o Dr. Monjardino tem vindo cá muitas vezes e isto é muito feito à imagem dele. Mas é uma operação difícil. Durante muito tempo fomos o único hotel, mas agora tudo é complicado. Nestes dois anos, o que nos aguentou foi o apoio da Fundação Oriente e as quarentenas, no pico da pandemia, que passou a ser negócio. Ninguém queria fazer, tinham medo, mas nós preparámo-nos e avançámos", conta Tiago.

O Timor tem 130 trabalhadores, todos timorenses menos quatro, que são portugueses. Quem trabalha na receção fala português, mas mesmo para os outros timorenses, o hotel, que começou a ser construído durante o colonialismo português e foi acabado no tempo da ocupação indonésia, acaba por ser uma espécie de escola de línguas para não se ficarem pelo tétum, mesmo assim um idioma que inclui muitas palavras portuguesas. "Comparado com há dez anos, cada vez se fala mais português em Timor-Leste. Há muito esforço. Nota-se, por exemplo, nos ministérios", sublinha Tiago.

O diretor do Timor diz ser um otimista, na vida em geral e muito no que diz respeito a Timor-Leste. "O meu trabalho é muito divertido. Todos os dias é diferente. Uma visita destas, por exemplo, do Dr. João Soares, que vai visitar também o antigo liceu de Díli, cuja reconstrução foi financiada quando esteve na câmara. E acho que é por isso que continuo cá, porque me divirto a trabalhar", conclui Tiago, apressado para responder ao desafio de contentar entre os hóspedes habituais, os clientes que vêm ao almoço para um caldo verde e outros para beber uma bica ao fim da tarde, também as personalidades que hão de aparecer para cumprimentar João Soares ou o comandante Mário Alvim, o piloto da euroAtlantic que em tempos da pandemia se tornou figura admirada por fazer aterrar na pequena pista de Díli um Boeing 767-300ER. Um deles é José Ramos-Horta, antigo presidente e primeiro-ministro de Timor-Leste e Nobel da Paz de 1996 (junto com o Bispo Ximenes Belo), que aceita ser entrevistado pelo DN ali mesmo no Timor sobre o papel do português e do catolicismo na construção da identidade do jovem país.

O DN viajou a convite da euroAtlantic

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