“Graças ao que aconteceu há 50 anos, Portugal e Espanha atingiram o melhor momento das respetivas Histórias”
A ARCO, que começa esta semana em Lisboa, é originalmente uma Feira de Arte espanhola. O facto de existir, a par da de Madrid, uma ARCOLisboa é um sinal mais da estreita relação entre as duas culturas nacionais?
Acho que sim. Tenho a sensação que, sobretudo na área da arte contemporânea, existe um grande potencial nos dois países. Quando falei com os responsáveis da ARCO em Espanha para perguntar precisamente o porquê desta repetição da ARCO apenas em Portugal, já que não a fazemos em nenhum outro país, sempre me salientaram o enorme interesse que existe, a proximidade, e a presença artística. Tudo surgiu de uma forma muito pouco dirigista, de uma forma que diria até que é um pouco comercial. Quer dizer, há uma similitude nos dois mercados de arte, e temos, por exemplo, a prova disso, que é a grande presença de espanhóis. Por exemplo, Nuria Enguita, que é a diretora artística do Centro Cultural de Belém, vem do IVAM, do Instituto Valenciano de Arte Moderna. Ana Botella, que está na Gulbenkian, tem também uma posição muito semelhante, como diretora adjunta do Centro de Arte Moderna. E também fiquei muito impressionado com a enorme presença da arte moderna que há em Portugal. Há dias estávamos a navegar pelo Tejo, porque o navio-escola português convidou os diplomatas, então estive a olhar para o MAAT e para o Centro Cultural de Belém. Para mim, a Arco, o facto de ambos os países organizarem um evento importante com todos os galeristas, é mais um motivo para realçar a importância da cultura como ponto de ligação. Digo sempre que para além do comércio e do investimento, precisamos de trabalhar mais para aproximar as duas culturas.
Há muito a ideia de que os portugueses conhecem a cultura espanhola, conhecem até muitos escritores espanhóis, mas que os espanhóis olham pouco para Portugal. Se nos restringirmos, por exemplo, à literatura, para si, como o espanhol, há autores portugueses, sejam clássicos ou mais modernos, que são figuras conhecidas em Espanha?
Tenho a dizer que há nomes importantes da literatura portuguesa que são universais, mas não consigo medir o quanto são conhecidos em Espanha. Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, já para não falar de José Saramago, que é um pouco uma referência para toda a gente. Mas podemos trabalhar ainda mais para que sejam mais conhecidos. Acho que há um desequilíbrio entre o conhecimento que os portugueses têm de Espanha e o que os espanhóis têm de Portugal. É por isso que quero trabalhar muito esse aspeto; ou seja, precisamos de garantir que se dá mais atenção à questão cultural e, fundamentalmente, à produção literária. Mas há nomes universalmente reconhecidos que acredito serem bem trabalhados em Espanha e, de facto, o Instituto Cervantes dá muita atenção a Portugal. Nesta nova versão que estamos a fazer de abordagem não só às línguas espanholas, porque o Cervantes já ensina catalão, basco e galego, também noto que há uma forte presença portuguesa no programa.
Em termos da língua espanhola em Portugal, há portugueses que a aprendem naturalmente, sobretudo os que vivem na Raia, mas também há em geral certa popularidade do espanhol. Ajuda à aproximação entre os países?
Sempre me surpreendi com a enorme capacidade dos portugueses de falar línguas. No caso do espanhol, é uma satisfação enorme para mim constatar que existe essa facilidade. É até confortável. Consigo expressar-me em espanhol, as pessoas entendem-me e os portugueses conseguem falar comigo em português e eu entendo, mas é verdade que sempre houve uma facilidade maior para os portugueses, não só na Raia, mas em geral. Provavelmente por causa da fonética. A fonética portuguesa pode ser mais difícil para os espanhóis compreenderem do que a fonética espanhola para os portugueses, mas é verdade que sempre houve essa facilidade dos portugueses, que admiramos muito, porque fomos um povo que chegou tarde às línguas, chegou tarde até à defesa da sua própria língua. Quando era secretário de Estado, fiquei encarregado de defender o espanhol pela primeira vez, e acho que descobrimos a importância de trabalhar culturalmente na defesa da língua.
Estou surpreendido por dizer que é necessário defender o espanhol, porque, hoje, como língua internacional, só o inglês é capaz de competir, e em países como os EUA o espanhol está fulgurante. A língua espanhola precisa mesmo de ser defendida?
O espanhol teve um aumento espetacular nos últimos 30 anos. O número de falantes de espanhol aumentou 70%. Mas isso não durará para sempre. As taxas demográficas dos países de língua espanhola estão a cair, para já não falar da política que o novo governo dos EUA vai seguir para limitá-la. A página em espanhol desapareceu do site da Casa Branca. Por outro lado, temos de ver que no mundo digital, é outra das batalhas, existe uma possibilidade de melhoria, para que quando se procura determinada informação no Google, nem todos os artigos apareçam em inglês. E é nisso que também estamos a trabalhar, para que haja uma maior presença no mundo digital do espanhol. E depois, no mundo científico, as publicações científicas são massivamente em inglês. Existe até uma certa relutância por parte dos cientistas em publicar em espanhol, por recearem ter pouca divulgação no mundo científico. Portanto, sim, isso requer ajuda.
Estamos a celebrar em Portugal, já não o 50.º aniversário do 25 de Abril, mas agora o 50.º aniversário das primeiras eleições livres. 1975 foi também um ano decisivo para Espanha, porque a morte do general Franco marcou o início da transição. Que memórias tem da Revolução Portuguesa?
Tinha 16 anos quando a Revolução aconteceu aqui. Lembro-me das imagens na televisão. Tenho lido muito sobre a Revolução Portuguesa, sobretudo porque me interessa. Sempre disse que a transição portuguesa é um modelo. E no ano passado, quando foram publicados alguns livros importantes em Espanha, como o de Tereixa Constenla, que de certa forma nos aproxima das chaves da Revolução, percebemos o enorme mérito daquele golpe que, de certa forma, é exemplar. Há personalidades que ganharam um aplauso generalizado ao longo dos tempos, como Salgueiro Maia, mas também quero reconhecer o trabalho de Ramalho Eanes, de Vasco Lourenço - convidei-o para almoçar aqui no outro dia - até de Alves Costa, o cabo que se fechou no tanque e impediu um massacre. Recordo a entrega de Marcelo Caetano. Ou seja, tudo tem, para além da dignidade e da elegância, uma enorme eficácia, porque faz realmente com que este país dê um passo em direção à democracia, que foi fundamental, como também foi para Espanha. Os dois países, que tinham um historial de pobreza e de atraso em relação à Europa, graças ao que aconteceu há 50 anos, atingiram o melhor momento das respetivas histórias, e acredito que isso deve ser reconhecido. Temos de agradecer à democracia por finalmente nos ter aproximado, porque durante 900 anos, quando não nos tentávamos invadir, participávamos em guerras para neutralizar de alguma forma as aspirações de uns e outros, e agora, nestas últimas décadas, conseguimos realmente uma reaproximação, certamente nas áreas da economia, comércio, investimento, comunicação, turismo, eletricidade e assim por diante.
A adesão à União Europeia em simultâneo em 1986 foi também importante para o desenvolvimento de ambos os países e para esta proximidade crescente?
Assim é. Para se ter uma ideia, em 1976 do que Portugal exportava apenas 4% era para Espanha; hoje exporta 25% para Espanha. Isto é evidente. E não falo dos números do investimento, que muitas vezes parecem como se a Espanha estivesse, de certa forma, a inundar o país do ponto de vista do investimento, mas se calcularmos o investimento português em Espanha em relação ao PIB, é muito maior e mais significativo. Há uma aproximação em todas as áreas. Por exemplo, na Semana Santa, que acaba de passar, os dois povos visitam-se. Também na área das comunicações ganhámos bastante. A sexta comunicação por autoestrada está em curso, e espero para breve a sétima na zona de Zamora. Temos hoje duas ligações por autoestrada na fronteira com a Galiza, temos uma perto de Salamanca, outra perto de Badajoz e a última na zona de Ayamonte. Em breve será estabelecida uma ligação rodoviária com Cáceres.
O que não funciona bem é a ligação ferroviária...
Sim, e tenho as minhas preocupações sobre isso, porque acredito que temos a obrigação, enquanto europeus, de estar ligados da forma mais eficiente possível, e todas as capitais europeias estão ligadas por comboios de alta velocidade, exceto Madrid e Lisboa. Posto isto, compreendo perfeitamente que existe um princípio de coesão territorial e nacional, que no caso de Portugal é vertical. Por outras palavras, não pretendo, nem me parece lógico, que Portugal não tenha coesão através de uma linha de alta velocidade entre o Porto e Lisboa. Isso parece-me lógico. Mas acho que temos de trabalhar neste eixo ibérico em forma de L porque é muito importante para o desenvolvimento dos dois países, para uma maior integração. E, entre outras coisas, porque vamos ter um Mundial de futebol em 2030. Quando se realiza um Mundial, e vamos fazê-lo em conjunto, o que é preciso é que isso sirva para promover a nossa imagem, para ganhar respeito no mundo, e acho que ainda não temos as infraestruturas adequadas para realizá-lo com sucesso. Porquê? Porque isso significa um movimento constante de pessoas, de um estádio para outro. A questão do segundo aeroporto não está resolvida, portanto o aeroporto de Lisboa vai ter de dar resposta a esta enorme procura que já tem, multiplicada por X, porque num campeonato do mundo há muito movimento e parece-me que uma ligação de alta velocidade poderia descongestionar as ligações e facilitar muito o sucesso do campeonato do mundo.
Falou de infraestruturas. Em relação à conectividade elétrica e ao recente apagão luso-espanhol, o que aconteceu?
Quanto à explicação específica do que aconteceu, ainda não temos resposta. A nossa vice-presidente explicou no Senado que houve um problema com o desequilíbrio de voltagem na Europa. Presumo que os leitores estejam familiarizados com a ideia de que deve haver um equilíbrio constante entre a oferta e a procura, e quando ocorre um desequilíbrio, é quando ocorrem apagões por razões de segurança, que muitas vezes podem ser resolvidos rapidamente porque existem fontes de energia que neutralizam esse desequilíbrio. Não nos podemos esquecer que o que falhou aqui foi a ligação à Europa. Se tivéssemos tido a desejável ligação que tanto Espanha como Portugal têm exigido à França, teríamos certamente conseguido uma compensação imediata por este fluxo de electricidade. O que não pode estar em discussão é energias renováveis sim ou não. O que deveria estar em discussão é a interligação sim ou não. Porque se estamos constantemente a falar na Europa ter um mercado único pelo qual lutamos para tornar as economias mais integradas, não faz sentido que dois países fiquem isolados do resto da Europa porque alguém não quer colaborar na interligação.
Fala da relação amigável entre os dois países, mas há um diferendo histórico que continua presente: Olivença. Qual é a posição de Espanha quando os portugueses falam de Olivença como sua?
Para mim, o melhor do debate de Olivença foi a forma como o resolvemos, pelo menos há um ano, depois das declarações de um ministro. Parece-me que conseguimos sair com elegância de uma discussão que muitas vezes se complica quando se começa a recorrer a razões históricas e que, no final, não contribui muito em termos de soluções imediatas. Creio que a Espanha acredita, como creio que Portugal acredita, que estas coisas são vicissitudes que ocorreram no passado, mas o que importa é que saibamos manter isto no âmbito da historiografia do que aconteceu em vários países. Creio que melhorar as nossas relações hoje não exige um regresso ao debate sobre Olivença. Podemos viver perfeitamente com a interpretação de cada país sobre o que lá se passou, mas acho que o que temos de fazer é olhar para o futuro.
Felipe VI recebeu há dias um doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. Existe uma relação especial entre a família real espanhola e Portugal desde o exílio de D. Juan, conde de Barcelona e avô do atual rei, que continua?
Uma das coisas que se compreende quando se é nomeado embaixador em Portugal é o quão importante e quanta atenção a família real dá a Portugal. Pelo facto de falarem o idioma com fluência. A verdade é que tenho visto uma intensidade nas viagens dos dois chefes de Estado. Quando cheguei, creio que os dois chefes de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa e o Rei Felipe, já se tinham encontrado 37 vezes. Agora podem ser quatro ou cinco mais. E sei que falam um com o outro com grande confiança. Quando fazemos estes banquetes e coisas do género, muitas vezes fazem refeições separadas. Acho que há uma relação muito intensa entre os dois. Penso que vai além do facto de a família real, quando teve de deixar Espanha em 1931, ter finalmente vindo parar a Portugal. Acho que há mais do que isso. Obviamente, durante a adolescência do rei Juan Carlos, Portugal deixou-lhe uma grande marca. Quando passamos o verão num sítio, os amigos que temos aproximam-nos desse sítio. Mas neste momento, há um interesse especial. Este é um país que se está a tornar mais bonito a cada dia que passa, acho que é preciso dizer. Visitei Portugal pela primeira vez na década de 1980. A curiosidade que as pessoas têm, por exemplo, sobre todos os trabalhos de restauro e remodelações dos edifícios, parece-me tornar Portugal muito mais atrativo para os espanhóis, e espero que assim continue. No final do meu mandato, o que eu gostaria de poder dizer é, além das muitas visitas em termos institucionais, de chefes de Estado ou de Governo de lado a lado, sobretudo, que os espanhóis sabem tanto de Portugal como os portugueses sabem de Espanha.