O analista político georgiano Ghia Nodia participou no Estoril Political Forum.
O analista político georgiano Ghia Nodia participou no Estoril Political Forum. FOTO: Paulo Spranger

Ghia Nodia: "Será difícil regredir a liberdade na Geórgia ao ponto da Bielorrússia"

O diretor da Escola Internacional de Estudos Caucasianos da Universidade Ilia não tem dúvidas de que a Geórgia está a fazer um corte com o Ocidente e a dar passos largos a caminho de uma autocracia.
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Há notícias de que o centro de informações da UE e da NATO serão encerrados em Tiblíssi. Políticos da oposição foram detidos nos últimos dias. A que mais tem assistido que não esteja nas notícias?

Muitas coisas estão a acontecer. Nada de surpreendente, claro. Há muitos acontecimentos na Geórgia, acontecimentos lamentáveis, o que significa uma transição para a autocracia. São tantos, que uns são notícia, outros não. Basicamente, o governo não esconde os seus planos de proibição da oposição. Prepararam bases legislativas para o encerramento de partidos da oposição. Provavelmente conseguirão fazê-lo, de facto, no outono. Criou legislação repressiva contra as ONG ou quaisquer organizações que recebam dinheiro do estrangeiro. Será um bom terreno legislativo para reprimir as organizações independentes, incluindo os meios de comunicação independentes. E, claro, também se demarcou das relações com o Ocidente. Por isso, fechar o centro de informação da NATO e da UE pode ser uma expressão, mas há muitas outras. Esta é a principal direção que o país está a tomar. E todos os dias recebemos notícias, umas mais importantes, outras menos importantes, mas todas elas apontam nesse sentido.

Escreveu após as eleições de outubro que o governo de Ivanishvili lançará uma ofensiva contra a sociedade civil ao ponto de tentar transformar a Geórgia no Azerbaijão ou na Bielorrússia. Há retrocessos nas áreas da Justiça, das liberdades de expressão e de imprensa e dos direitos civis?

Sim. É um processo. Já aconteceu em anos anteriores também. Portanto, está a tornar-se um ataque abrangente, basicamente, o que estamos a testemunhar agora. Penso que esta vitória nas eleições, mesmo que não seja uma vitória justa, mas sim uma espécie de vitória técnica, foi utilizada por [Bidzina] Ivanishvili como um sinal de que, agora, tem um novo tipo de mandato para fazer o que quiser. Assim, tomaram a decisão de suspender as negociações com a UE, o que significou, no fundo, autonomia em relação ao Ocidente, que podem fazer qualquer coisa e podem simplesmente ignorar qualquer tipo de crítica ou conselho do Ocidente. Eles simplesmente ignoram. E fazem o que Ivanishvili decide que deve ser feito. Ele está preocupado com os protestos, com a possibilidade de se tornar impopular e com o facto de o povo georgiano querer realmente a integração europeia e se opor à sua suspensão. Por isso, está nervoso e acredita que estes protestos são principalmente apoiados e encorajados pelo Ocidente. Portanto, precisa de cortar esse elo entre o Ocidente e a sociedade civil da Geórgia, a sua oposição. É isso que ele está a fazer. Penso que sim, a direção em que ele tenta levar a Geórgia é na da Bielorrússia e do Azerbaijão. Isso não significa que terá sucesso. Porque, como sabem, os georgianos, ao contrário da Bielorrússia e do Azerbaijão, vivem há cerca de 35 anos em condições mais ou menos democráticas. Não na perfeição, mas basicamente em condições de liberdade. E temos uma nova geração que toma a liberdade como garantida e, regredi-la ao ponto da Bielorrússia, será difícil. Portanto, não estou a dizer que ele terá sucesso, mas está obviamente a tentar fazê-lo.

Sente-se individualmente ameaçado?

Não, não fui ameaçado. Pessoas ao meu redor foram ameaçadas. Mas sinto-me ameaçado, porque a nossa universidade, o meu emprego, está ameaçado. A nossa universidade é considerada uma universidade liberal e o governo anunciou o seu plano para, sabe, realizar reformas fundamentais drásticas na área do Ensino Superior. E todos assumimos que isso será dirigido a universidades como a nossa.

Como resultado do fim da aproximação ao Ocidente, disse que a Geórgia é agora euro-asiática. Espera uma reaproximação à Rússia ou isolamento?

Acredito que o governo coordena as suas atividades com a Rússia. Temos algumas provas fiáveis ​​de que os nossos serviços de segurança estão a cooperar diretamente com os serviços de segurança russos. Mas, como isso é muito impopular na Geórgia, preferem não divulgar. Portanto, efetivamente, é claro, há uma ligação muito próxima. Mas Ivanishvili pode também querer deixar algum espaço de manobra para si e ligar-se à China, talvez, ou aos países árabes. Ele tem um amigo no Ocidente que é o Viktor Orbán, e até agora mais nenhum. Mas não quer depender apenas da Rússia.

Como é que a sociedade da Geórgia mudou com a guerra na Ucrânia e a chegada de dezenas de milhares de russos?

A chegada de muitos russos foi recebida com uma reação pouco feliz. Porque levou à inflação, mas também porque era uma espécie de expressão simbólica de que a Geórgia está a acolher os russos, enquanto outros países não. Foi mais uma expressão de que a Geórgia está basicamente do lado da Rússia nesta guerra. Embora alguns russos fossem, na verdade, anti-Putin e estivessem descontentes por terem vindo para outro país, e neste país não estão a salvo de Putin. Não diria que o país mudou, exceto pelo aumento dos preços e das rendas das casas. De uma forma mais geral, estamos a viver uma situação de crise contínua. Anteriormente, escrevi um documento político intitulado Crise Como Um Novo Normal. A crise tornou-se uma situação normal para nós, há vários anos. E somos um país muito dividido, uma sociedade muito dividida. Não gostamos de crises, mas... Tenho medo da normalidade porque a normalidade, o novo normal após a crise, pode ser um autoritarismo total. Há este clima de resiliência, de não desistir, por um lado, mas também de medo. Medo do futuro. Há este clima conflituoso na sociedade e uma incerteza fundamental sobre o futuro.

O medo do futuro é também medo da guerra?

Não, não. Quer dizer, talvez algumas pessoas tenham medo da guerra, mas não acho que seja real. É um medo teórico e faz parte da propaganda do governo, que, se a oposição chegar ao poder, haverá guerra. Não creio que haja medo de guerra com a Rússia. Mas é o medo da consolidação da autocracia, e isso afetará, de diferentes formas, muitos de nós individualmente.

Nasceu em Moscovo e foi cidadão soviético durante mais de três décadas. Como persiste a mentalidade soviética no antigo espaço da URSS?

Ela persiste de muitas formas. Acho que as pessoas têm medo da responsabilidade. Estão habituadas a atirar a responsabilidade para os outros. E isso pode ser verdade para muitas pessoas, especialmente da minha geração. Os mais jovens são diferentes. Mas também é verdade no sentido de um país, ao nível da consciência nacional, ou perceção nacional, que, como país, somos pequenos, vulneráveis ​​e talvez devêssemos transferir a responsabilidade pela nossa segurança e bem-estar para outros. As pessoas mais próximas do meu círculo social gostariam de fazer parte da União Europeia. Alguns outros acreditam que o Ocidente não é viável, que é demasiado fraco, não pode defender a Ucrânia, não está disposto a defender-nos, por isso talvez devêssemos voltar a esse guarda-chuva russo e procurar a paz lá. Um dos legados mentais do regime soviético é a aversão ao risco e o medo da incerteza. Quem propõe menos incerteza e menos risco, é aceitável. Penso que esta é a principal base de poder do regime de Ivanishvili.

Mas não é igual em todos os países da ex-URSS.

Certo, cada país é diferente. Os países bálticos são diferentes, porque talvez tenham vivido sob a União Soviética menos tempo, mas também estão mais próximos do Ocidente, por isso ganharam novas certezas relativamente cedo. Já tinham tido apoio ocidental antes, e agora estão na União Europeia e na NATO. É claro que estão preocupados com a agressão russa, mas fazem parte da NATO, a situação é mais clara para eles. Na Geórgia, regressar à Rússia é muito impopular, pelo que existe uma incerteza muito maior.

Moscovo repete que só resolvendo as causas profundas do conflito é que a guerra na Ucrânia poderá terminar. Concorda?

Há diferentes motivações por detrás do comportamento da Rússia. Putin e a sua elite temem a democracia na Rússia, e acreditam realmente que a democracia não é para a Rússia, que os russos precisam de mãos-de-ferro, mas temem que os presidentes [democráticos] em países como a Ucrânia e a Geórgia, especialmente na Ucrânia, serão um exemplo para os russos, e então a Ucrânia deve ser vista como um fracasso, porque então não encorajará qualquer tipo de resistência democrática na Rússia. Essa é certamente uma das motivações, mas também há uma motivação mais nacionalista ou neo-imperialista. As tentativas de democratizar a Rússia acabaram numa espécie de despromoção geopolítica da Rússia, ou enfraquecimento do lugar da Rússia no Ocidente, e isso causou este sentimento antiocidental, porque o Ocidente é como que acusado de tirar partido do momento de fraqueza da Rússia. Trump diz para tornar a América grande outra vez, mas o mote de Putin sempre foi tornar a Rússia grande outra vez, e ele tinha muito mais razões para dizer isso, porque os anos 90 foram considerados uma situação muito má na Rússia, porque ainda era, nos anos 80, um grande império, e nos anos 90 era apenas mais um país fraco, por isso esta recuperação da grandeza russa tem sido a principal base de legitimidade de Putin, e ele não pode parar por aqui. A invasão da Geórgia primeiro, e agora da Ucrânia, é a sua forma de sustentar a grandeza da Rússia.

Devemos considerar o Estado de Direito liberal na UE como garantido ou deverá a democracia ter mecanismos para impedir o que aconteceu na Hungria e o que está a acontecer na Geórgia?

Não podemos dar nada como garantido. A democracia baseia-se nas constituições e nas regras formais, mas não são suficientes. É preciso cultura política democrática e consenso social público em torno das normas democráticas, e a Hungria era uma democracia muito jovem, por isso parecia consolidada, e a sua Constituição era boa, mas, por alguma razão, a sua cultura política revelou-se insuficiente. A Geórgia nunca teve uma verdadeira cultura política democrática, teve apenas três anos de democracia, de 1918 a 1921, e depois uma democracia parcial em 30 anos, mas nunca foi consolidada, uma democracia plena, e isto não acontece porque a nossa Constituição é imperfeita, mas porque não tínhamos hábitos reais de democracia. Mesmo no Ocidente, como vemos agora, não se pode dar nada como garantido, e penso que há uma erosão do consenso em torno das normas democráticas, nos Estados Unidos, por exemplo, que é demonstrado nas sondagens. E acho que a democracia também se baseia em alguns tabus, que certas coisas não podem ser feitas, mas os políticos quebram mais tabus do que costumavam quebrar, portanto, a democracia é sempre um bocado precária.

Mas deviam ter mecanismos para prevenir que o deixem de ser?

Não. Os mecanismos formais são importantes, mas não são garantidos.

Como viveu o fim da União Soviética? Estava na Geórgia?

Quando tudo começou, em 1988-89, eu estava na Geórgia, mas quando se deu o fim da União Soviética, estava em Washington, onde passei nove meses. Depois saí, no início de setembro de 1991, logo após a tentativa de golpe em Moscovo, e deixei a União Soviética. Voltei para a Geórgia independente, e assisti a todas estas coisas dramáticas na CNN. Na Geórgia, infelizmente, tivemos uma guerra civil nessa altura, por isso, para a minha família foi melhor não estar lá no meio da luta, mas sinto falta de algo muito importante, claro.

Quando regressou como viu o país?

Ah, era um país completamente diferente. Total falta de ordem, toda a gente parecia mais magra, porque havia menos comida e nenhum transporte, toda a gente andava a pé. Tempos difíceis. Quem viveu isso já estava habituado, mas eu cheguei em junho de 1994, por isso foi chocantemente diferente, não no bom sentido.

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