Filmes, calão e calças de ganga: esta guerra de Kim não inclui mísseis
Nos anos 1970, Shin Sang-ok era um dos mais famosos realizadores sul-coreanos. E a ex-mulher, Choi Eun-hee, era a sua musa. Tal era o fascínio que ambos exerciam sobre os amantes de cinema que em 1978 Kim Jong-il, o líder da Coreia do Norte, os mandou sequestrar e obrigou a trabalhar para ele. Durante oito anos, a dupla fez vários filmes a mando de Kim, até escapar e refugiar-se na Embaixada dos EUA durante uma viagem a Viena. Passadas quatro décadas, não sabemos se Kim Jong-un, filho e sucessor, herdou a paixão cinéfila do pai, mas a verdade é que não hesitou em eleger os filmes como o mais recente alvo. Empenhado em travar qualquer influência estrangeira no país, aprovou uma nova lei que proíbe o consumo de produtos culturais estrangeiros - sobretudo sul-coreanos -, mas também o calão usado pela juventude a sul da fronteira e até as calças de ganga justas. Quem desobedecer arrisca penas entre os cinco e os 15 anos de prisão. Propagar esses produtos pode ser punido com a morte.
A Lei para a Eliminação da Cultura e Pensamentos Reacionários, a que teve acesso o Daily NK, jornal sediado na Coreia do Sul, mas com boas fontes no Norte, foi aprovada em dezembro de 2020. O objetivo é travar a influência de produtos estrangeiros como filmes, livros, música e programas de televisão, sobretudo sul-coreanos. Mas o controlo tem apertado nos últimos meses, com Kim Jong-un empenhado em evitar o acesso da população a informação vinda do estrangeiro à medida que as condições de vida se tornam cada vez mais difíceis. Desde o encerramento das fronteiras há mais de um ano, devido à pandemia de covid-19, que a Coreia do Norte está mais isolada do que nunca. O regime, que se orgulha da filosofia Juche, de autossuficiência, viu as vitais importações da China praticamente parar, afetando uma já frágil economia, onde muito do dinheiro é encaminhado para financiar as ambições nucleares do líder.
Mas desta vez a guerra de Kim não envolve mísseis. Tem antes como alvo os cortes de cabelo "não socialistas", a maneira de falar influenciada pelo calão dos jovens sul-coreanos e as calças de ganga justas - tudo isto descrito como "venenos perigosos" pelo líder norte-coreano num discurso recente.
"Psicologicamente, quando se tem a barriga cheia e se vê um filme sul-coreano, é apenas lazer. Mas quando não há comida e sobreviver é uma luta, as pessoas ficam desapontadas", explica à BBC Choi Jong-hoon, um dos poucos desertores que conseguiram sair da Coreia do Norte no último ano.
Além de apelar aos norte-coreanos para denunciarem comportamentos ilegais, a nova lei não limita o castigo apenas ao infrator. "A lei diz que se um trabalhador for apanhado, o dono da fábrica também pode ser castigado, e se um menor for problemático, os pais podem ser punidos", explicou o diretor do Daily NK, Lee Sang Yong. "O regime concluiu que se pode formar um sentido de resistência se as culturas de outros países penetrarem no país", acrescentou.
Apesar dos esforços do governo, a verdade é que consumir informações de media estrangeiros continua a ser uma prática comum na Coreia do Norte. Sobretudo entre os desertores. Um estudo feito em 2019 pelo Unification Media Group revelou que 91% consumiu conteúdos da Coreia do Sul ou de outro país enquanto vivia na Coreia do Norte. Isto apesar de 75% ter visto alguém ser punido por o fazer.
É o caso de Yoon Mi-so, uma desertora que contou à BBC como aos 11 anos viu um homem ser executado após ter sido apanhado com uma grande quantidade de telenovelas sul-coreanas. O bairro inteiro foi chamado para ver e quem recusasse "era acusado de traição".
Este clima de repressão parece mesmo assim incapaz de travar o engenho dos norte-coreanos para chegar à cultura estrangeira, sobretudo se for na mesma língua. E se o mais comum é os filmes sul-coreanos circularem em pens - muitas vezes protegidas por elaboradas palavras-passe -, Yoon Mi-so recorda o dia em que os vizinhos pediram emprestada a bateria de um carro, que ligaram a um gerador para conseguir energia suficiente para a televisão. E como todos juntos viram a série sul-coreana Escadaria para o Céu, que conta a história de amor de uma rapariga que tem de lutar contra a madrasta e contra o cancro para ficar com o homem da sua vida - um sucesso no início dos anos 2000, pelos vistos de ambos os lados da fronteira.