Filipa Pereira. Uma farmacêutica em missão humanitária da Ucrânia ao Darfur
Apesar de levar com ela cinco anos de experiência no terreno, quando chegou à Ucrânia em 2023 ao serviço dos Médicos sem Fronteiras, Filipa Pereira ficou surpreendida. “O sistema humanitário mundial está preparado para emergências em países que não têm um sistema de saúde consolidado, ou que colapsaram completamente”, explica a farmacêutica humanitária. Sentada no Museu da Farmácia, onde participou numa tertúlia sobre saúde nos campos de refugiados, Filipa conta como “entrámos todos em modo bazuca, com os nossos kits de emergência, de traumatologia”, mas, apesar de estar em guerra, “a Ucrânia é um país que não só não tem um sistema de saúde colapsado, como tem um sistema moderno.”
E isso trouxe dois desafios tanto à equipa dos Médicos sem Fronteiras como às outras equipas de emergência humanitária: “Um é que o sistema é muito mais avançado e inovador do que aquilo que nós estamos habituados” e “o segundo é que nós não estamos totalmente preparados para apoiar populações geriátricas”, explica a farmacêutica, nascida em Coimbra há 37 anos. Com passagens pela República Democrática do Congo, Sudão, Moçambique ou Angola, a própria Filipa confessa que a “máquina humanitária” se habituou a pensar o apoio sobretudo para “jovens, mulheres grávidas, crianças e populações vulneráveis”, mas “de repente entramos na Ucrânia e deparamo-nos sobretudo com pessoas mais velhas a precisar de tratamento crónico. Nós somos muito mais emergencistas”, explica.
Mas recuemos no tempo para perceber o que levou Filipa a enveredar pela vida de farmacêutica humanitária. A vocação já vinha de família, ou não tivesse o avô paterno sido médico em vários países, tendo começado como bolseiro da OMS (Organização Mundial de Saúde) no Senegal, mas exercido a profissão também na Índia, Angola, Cabo Verde, São Tomé, etc. O pai de Filipa nasceu em Moçambique, onde a família viveu, mas tem duas tias nascidas em Angola. “Cresci com estas histórias. Por isso o lado internacional sempre me atraiu”.
Do lado da mãe, a atração pelo mundo também existia, com um tio com carreira internacional em Bruxelas e um tio-avô diplomata. Mas o fascínio pela farmácia, veio da avó materna que era farmacêutica. A pequena Filipa até pode ter crescido rodeada de medicamentos, mas garante não saber em que momento percebeu que era essa a área que queria.
Terminado o curso na Universidade de Coimbra, Filipa foi fazer um mestrado em Gestão de Saúde Internacional em Aberdeen, na Escócia. De volta a Portugal, acabou por ser contactada por um antigo professor que tinha amigos nos campos de refugiados na Grécia, onde estavam a precisar de farmacêuticos. “Era para ficar duas ou três semanas, mas fiquei lá uns meses”, conta Filipa.
Confrontadas com um fluxo maciço de migrantes, sírios e não só, as autoridades gregas viram-se obrigadas a criar uma agência própria dentro do Ministério da Saúde para absorver este excesso de doentes. E é a passagem da gestão das clínicas de cuidados primários montadas nos campos de refugiados da Cruz Vermelha Internacional para essa agência que Filipa foi destacada para acompanhar.
A experiência na Grécia levou-a às ilhas, onde chegava a maior parte dos refugiados, mas também a Salónica, que recebia muitos migrantes que tentavam entrar na Grécia por terra - “muitas vezes famílias mais vulneráveis”.
Com os dias divididos entre o apoio a famílias cujas vidas estavam completamente suspensas e as noites em que podia ir jantar a um restaurante “com todo o privilégio que isso engloba”, Filipa recorda como esta foi “a primeira vez em que eu me perguntei criticamente como é que a União Europeia está a receber todos os refugiados e requerentes de asilo. O que me fez, pela primeira vez também, questionar a empatia e humanidade da UE.”
Depois desta experiência na Grécia, Filipa candidata-se aos Médicos sem Fronteiras. Feito o recrutamento, a farmacêutica é destacada para a sua primeira missão ao serviço da organização fundada em 1971 por um grupo de médicos franceses entre eles Bernard Kouchner - um projeto de violência sexual na RD Congo.
Há alguma formação que prepare a pessoal para a realidade no terreno? Filipa acredita que não. “Só mesmo fazendo”, garante, antes de explicar que “a certa altura uma pessoa tem de ser fria o suficiente para entender o que é o nosso trabalho e o que é a vida pessoal. Obviamente sou afetada pelo meu trabalho, mas não permito é que isso afete a minha vida pessoal. Não porque não tenha empatia com as pessoas que trato. Mas porque preciso de o fazer para poder continuar. Senão a certa altura torna-se impossível”. E resume: “Eu trabalho no meio da tristeza.”
Ajuda, admite, o facto de a sua ser uma profissão “altamente rigorosa. Eu venho de uma ciência exata que me permite, desde que me mantenha no racional e no lógico, fazer esse distanciamento. Obviamente há histórias que me deixam profundamente triste, mas também há outras. O meu trabalho já mostrou o pior da humanidade, mas também já me conseguiu mostrar o melhor. E dentro desses extremos, vamos encontrando o equilíbrio.”
E em que é que consiste esse trabalho exatamente? Para Filipa, o mais importante é “estar um passo à frente”. E garante: “eu nunca tenho só um plano A e B. Tenho planos quase até ao Z”. Em cenários de emergência humanitária, a farmacêutica destaca a importância da multidisciplinaridade. Começam por traçar o perfil epidemiológico da população, “depois há toda uma equipa médica que vai tratando essa população de acordo com um contexto operacional que foi decidido com o Ministério da Saúde, com as várias organizações e agências. Eu tenho de saber qual é o plano logístico, quanto tempo é que demoro a conseguir abastecer-me e toda uma série de outros fatores”, explica Filipa, acrescentando “é um puzzle em que eu consigo com aquilo que se passou em situações semelhantes, prever o que vai acontecer e é aí que tenho de gerir os stocks para garantir que não haja falhas, permitindo a prática de uma constante atividade médica.”
E se na Grécia ou mesmo na Ucrânia, as cadeias de abastecimento funcionam, em países como a RD Congo esse é um dos maiores desafios. “Nós e a maior parte das agências internacionais temos grandes centros logísticos espalhados pelo mundo. Até por uma questão de garantir a qualidade dos medicamentos que usamos nas nossas atividades. É muito raro comprarmos medicamentos localmente. Dentro destes centros logísticos, temos vários planos em marcha. Por exemplo, para a RD Congo voávamos para o Ruanda e dali entrávamos na RD Congo se o destino fosse o leste do país. Ou íamos diretamente para Kinshasa, se fosse o oeste. No Sudão, onde estive em 2021, Cartum ainda era acessível e nós transportávamos por ar as coisas mais urgentes para lá.” Até porque, como explica a farmacêutica, “há determinadas categorias de medicamentos e equipamentos médicos que só podem ser transportados por ar, não podem ir por mar. Por isso as coisas urgentes iam por ar para Cartum e entrávamos com outras por Porto Sudão, através do Canal do Suez”. Difícil foi a altura em que o canal esteve bloqueado. “Foi horrível. Eu tinha 20 e tal toneladas de medicamentos presos no Canal do Suez. Todos os dias acordava e ia ver as notícias. E depois, quando chegaram, foi uma loucura. Recebi 11 camiões ao mesmo tempo. Estive das 4 da tarde às 2 da manhã a descarregar medicamentos.”
Admitindo que por vezes o papel do farmacêutico acaba por ser esquecido quando se pensa em emergência humanitária, Filipa garante, no entanto, que a sua profissão é “fulcral”. “Uma das minhas funções enquanto farmacêutica no terreno é ser o ponto focal para as equipas médicas saberem que alternativas é que existem nos portfólios”, explica.
E isso não gera tensões com os médicos? “Cada vez menos, felizmente. Nos últimos anos, eu já só fazia emergência e aí são equipas com muita experiência. Mas no início acontecia muito. Quando eram médicos que estavam a pela primeira vez neste tipo de projeto”. Mas não só sempre resolveram estas tensões como a cooperação acabava por deixar marcas. “Vários destes médicos, encontrei-os mais tarde e todos disseram que quando voltaram aos seus hospitais em países superdesenvolvidos sentiam falta de ter um farmacêutico ao lado!”
Agora responsável pela Gestão de Stocks Médicos dos Médicos sem Fronteiras, Filipa admite que depois de seis anos no terreno, sentiu necessidade de abrandar. “Sou uma privilegiada porque continuo a ter contacto e a poder visitar estes países. Mas, por passar tantos meses nestes países, fui abdicando de muitas coisas. Eu não sou voluntária. Isto é a minha carreira. Mas há uma altura em que é cansativo, é frustrante, é triste. É muito pesado. E há um ponto em que percebemos: ‘Não consigo fazer isto o resto da vida’.”
Até porque alguns destes países têm sérios problemas de segurança e as equipas de emergência humanitária estão a colocar a própria vida em risco para ajudar aquelas populações. "A nossa segurança, muitas vezes, depende de determinadas questões culturais. Tanto no contacto com o paciente como com o resto da população. Há esta preocupação de haver uma preparação mais geral do que só saber que medicamento é que vai fazer falta", explica Filipa.
Questionada sobre se houve algum momento em que se sentiu em perigo, Filipa admite que a perceção de insegurança se torna diferente quando se está em certos países. "Muita gente me pergunta se já alguma vez estive em situação de insegurança. Eu não considero que tenha estado", diz, antes de afirmar: "Nós estamos num ambiente o mais controlado possível, portanto, para mim, estava dentro dos níveis de segurança aceitáveis. Mas depois, quando me ponho de fora, penso, isto é uma loucura". Como o dia em que, pouco depois de chegar à RD Congo, teve de ir a Goma. "Acabei por atravessar o lago Kivu, para Bukavu. Nós temos projetos entre o Kivu Sul e o Kivu Norte, hoje em dia tomado pelos rebeldes. Na altura, lembro-me que quando entrei para o barco, o senhor que picava os bilhetes tinha a sua Kalashnikov ao ombro. Isso é perfeitamente normal. Mas por qualquer razão, virou-se para falar contra a pessoa e o cabo da espingarda bateu-me no joelho. E eu lembro-me de pensar nesse momento: 'isto é parte do meu trabalho, o que eu não posso de todo é contar à minha mãe", recorda.
Apesar de hoje exercer sobretudo funções mais de suporte técnico, Filipa vai já em maio para o Médio Oriente - primeiro Israel e Cisjordânia, depois Síria e Afeganistão.
Uma camisola do FC Porto e combustível para burros
Olhando para trás, Filipa admite que se os anos no terreno a expuseram a momentos difíceis - e temperaturas que tanto podiam ser de 48 graus como de 20 negativos - mas também lhe proporcionaram boas histórias. Como o dia, no Sudão do Sul, em que estava na farmácia quando a chamaram por rádio para ir ao hospital no campo de proteção de civis da ONU. “Quando chego lá, uma médica portuguesa, a Rita, infecciologista, diz-me ‘tenho uma surpresa para ti’. Era um dos acompanhantes de um dos nossos doentes que estava com uma camisola do FC Porto.”
A farmacêutica recorda como “até fiquei meio envergonhada de estar tão contente. Eu acho que o senhor não percebeu bem o que se passou ali, mas para mim aquilo foi casa durante uns segundos. Soube-me pela vida.”
Outro episódio curioso foi quando, também no Sudão, mas quando fizeram uma campanha de vacinação de urgência na região do Darfur, Filipa recebeu um orçamento com uma alínea onde se lia “combustível para burro”. “Primeiro, o que é combustível para burros? E segundo, porque é que eu tenho combustível para burros no meu orçamento?”, interrogou-se então a farmacêutica, antes de perceber que aqueles animais eram o único “meio de transporte” até às montanhas e era preciso alimentá-los.
Mas aí surgiu outra dúvida: como é que os burros iam carregar as caixas de transporte de vacinas, que exigem uma cadeia de frio passiva. “Foram dois dias de loucura, mas acabámos por arranjar um camelo. Continuámos a transportar pessoas e outras coisas com burros, eu incluída, mas o Kenny, que era o nosso camelo, só levava arcas frigoríficas com as vacinas. E a linha no orçamento foi atualizada para ‘combustível para burro e para camelo’.”