Fernando Aramburu na Feira do Livro de Lisboa.
Fernando Aramburu na Feira do Livro de Lisboa.Gerardo Santos / Global Imagens

Fernando Aramburu: “Nasci numa ditadura, por isso agarro-me à democracia como um náufrago a um objeto flutuante”

O escritor espanhol, nascido em San Sebastián em 1959 e a viver na Alemanha desde 1985, regressa ao País Basco natal e à violência da ETA em 'Filhos da Fábula'. De passagem por Lisboa para a Feira do Livro, conversou com o DN sobre a sua última obra, da política basca e do independentismo, mas não do catalão.
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Em Filhos da Fábula, que acaba de publicar em Portugal, regressa ao País Basco e à violência da ETA, que já tinha tocado no seu grande sucesso Pátria. Mas, desta vez, recorre ao humor para contar a história de dois jovens acabados de entrar no grupo terrorista, que estão isolados numa quinta em França quando a ETA anuncia o fim da luta armada. Por quê usar o humor para contar esta história?
Para entender esta história é preciso perceber que ela faz parte de uma série. Este é o terceiro título [o quarto já foi publicado em Espanha]. Uma série de novelas curtas. Em cada uma delas abordo um aspeto, uma época determinada da história do meu país, do País Basco. Sempre histórias protagonizadas por pessoas normais, por cidadãos comuns, que não são protagonistas da História, são pessoas que a recebem. E esta é uma dessas histórias. Eu tinha um velho projeto de combinar uma história de terrorismo com o humor. E isto não me parecia fácil. Então consultei uma vítima de terrorismo, apresentei-lhe o plano e disse-lhe que neste livro, ainda não escrito, haveria humor, mas este humor estaria dirigido contra os agressores, que não haveria vítimas na novela e que os aspirantes a terroristas não cometeriam nenhum atentado real. Então essa pessoa deu-me a sua aprovação. E foi isso que fiz. Contei um drama, porque na realidade é um drama, com elementos humorísticos. Estes elementos humorísticos não são de comédia, quer dizer, não há anedotas, não há piadas. O que há é uma determinada lógica absurda de uns rapazes que querem ser heróis, mas não têm experiência, não têm dinheiro, não têm armas. Então, não tenho de introduzir intencionalmente o humor, basta fazê-los seguir esta lógica absurda para que o efeito seja humorístico. Mas, no final da novela, é o que é, e não é para rir.

O livro acaba por ser uma paródia da situação.
No princípio é uma paródia. O fanatismo é muito facilmente parodiável. Basta puxar por ele um pouco, porque a incongruência sobre a qual normalmente se baseia leva a atitudes exageradas ou ridículas, ou pouco subtis.

E conheceu muitos jovens como Asier e Joseba, as suas personagens, na sua infância?
Sei que houve muitos como eles. E se procurar um pouco histórias internas do grupo, vai descobrir que houve histórias realmente ridículas, mas que não risíveis porque a intenção era má. Comandos desajeitados, militantes inexperientes a quem explodia um artefacto, porque estavam a manuseá-lo sem conhecimento, comandos que se enganavam nas vítimas e matavam outra pessoa... Não é para rir, claro, mas as ações eram ridículas. 

Eles próprios acabam também vítimas da ideologia, da ideia que tinha a ETA de usar a violência para conseguir a independência...
Bom, esta é uma convicção que tenho. Se um cidadão, mediante o estudo, a reflexão, a cultura, não se forma a si mesmo, corre o perigo de encarnar ideias de outros, que outros prepararam e que determinam o seu comportamento. Não há problema se este comportamento é pacífico. Se vai à igreja e reza e tem uma compensação de tipo espiritual, isso parece-me muito bem. Agora, se introduzem uma ideologia, isto é, uma fábula, uma versão da realidade que te leva a causar dano aos outros, isto já não é tão agradável. E se, além disso, no exercício dessa ação a que te induzem, perdes a vida ou sacrificas o teu bem-estar pessoal, causas tristeza à tua família, então sim pode dizer-se que estas pessoas são vítimas. Mas não são vítimas da mesma categoria das vítimas que eles criam. E isto é uma convicção que tenho e que não exijo que ninguém partilhe. Mas eu cresci na minha cidade natal de San Sebastián e eu vi isso. Como alguns estragaram a sua vida e a vida de outros porque os convenceram a pegar nas armas.

Num plano diferente, acha que hoje as pessoas também são arrastadas pelas ideologias, nomeadamente políticas?
É inevitável. Somos uma espécie que precisa de fábulas, precisa de histórias, precisa de relatos para compreender a realidade. Por isso, qualquer um de nós nasce com a mente em branco, com a consciência em branco e, em seguida, desde o primeiro minuto, os adultos começam a escrever a nossa consciência. Transmitem-nos um idioma, talvez uma religião, uns costumes... Isto é, o ser humano não é um ser autónomo que se cria a si mesmo. É verdade que se pode autocorrigir, que pode mudar, pode melhorar ou aperfeiçoar-se mediante o estudo, o contacto com os outros. Mas todos nós vemos a realidade a partir de uma série de preconceitos, de juízos prévios. Isto é inevitável. Agora, como antídoto, nós, depois de longos milénios de civilização, inventámos a democracia. Sabemos que, para além das convicções que alguém tenha, existem regras para todos que devem ser respeitadas. E essas regras permitem-nos viver juntos. E isto é o que o fanático não aceita. Porque considera que tem razão e porque a realidade tem de ser como ele a vê ou acredita que deve ser. E isso causa sempre problemas.

E não acha que esse fanatismo, de um lado e do outro na política, torna mais difícil o diálogo?
É que o caminho civilizatório, desde o símio original até ao homem que é capaz de viver em sociedade com direitos, com valores, não é retilíneo. Há momentos em que avança, há momentos em que recua. E agora parece que, na Europa, há um cansaço da democracia. Há gerações que nasceram em democracia e talvez não a valorizem em pleno pelo seu valor. Eu nasci numa ditadura, vivi 16 anos numa ditadura, por isso agarro-me à democracia como um náufrago a um objeto flutuante. Porque sei que fora da democracia começa o inferno, começa o governo dos mais fortes e dos mais brutos. E por isso também estou preocupado pelo facto de se questionar agora a democracia, isto é, as normas comuns para todos na Europa. Mas não sou um político, não tenho solução, sou só um eleitor. Eu expresso-me através da literatura.

Nas últimas eleições no País Basco, o Bildu, herdeiro político da Batasuna, teve os melhores resultados da sua história, empatando em deputados no Parlamento com o Partido Nacionalista Basco. Preocupa-o que um partido que não condenou a violência da ETA, que chegou a ter nas suas listas condenados por assassinatos, possa um dia ganhar e governar no País Basco?
Não gostaria que acontecesse, mas não me preocuparia como me teria preocupado há 15 anos. Na altura isso ter-me-ia assustado muito. Mas é o que temos. Além disso, parece-me previsível, porque são muito habilidosos e são muito atrativos para os jovens. Pensemos que a vida atual não é particularmente excitante para os jovens, para as gerações que todas as manhãs têm o pequeno-almoço em cima da mesa, que têm a escola à sua disposição, que têm facilidade para viajar, que têm uma enorme oferta de ócio. Então como entusiasmar os jovens? Estes partidos, que parecem ter um discurso agressivo e muito bem pensado para atrair os jovens, triunfam. De qualquer forma, ao mesmo tempo baixam a intensidade da sua utopia. Isto também é preciso ter em conta. É que, às vezes, só é preciso deixar alguém fazer o que quer para que ele próprio traia os seus ideais. Desaparecida a violência, procuro estar informado, mas já não tenho a mente nesse tema como antes.

Mas teria sido melhor se tivesse criticado a violência?
Eles saberão. O que cicatriza mal pode abrir-se em qualquer momento. É isso que prova a história. 

Falou desse impacto que têm nos jovens...
Bom, também não podemos deitar a culpa todos aos jovens, porque também têm uma base de eleitores de toda a vida. E temos de reconhecer que fizeram as coisas bem, escolheram um líder muito jovem, que não está manchado pela história do passado. Ouvimos os seus discursos e já não fala de utopias. Fala de habitação, de saúde, de temas práticos. Por isso, claro, o aspeto que dão é de verdadeiros gestores da sociedade e não de  pessoas que vêm mudar tudo e impor uma utopia. 

Saiu do País Basco e de Espanha há muitos anos, ainda jovem, e foi viver para a Alemanha. Mas se houvesse a oportunidade de, sem violência, ter a independência do País Basco, era algo que gostaria de ver?
Não, o projeto da independência nunca me convenceu. Eu só conheci esse projeto vinculado com a violência. Portanto, com isso já está manchado, torna-se pouco desejável. É que, por razões que não consigo explicar, sou um homem centrípeto. Ou seja, eu aprendi desde muito cedo que o mundo não termina no final da minha rua, mas que há outros países, outras gentes. Sempre tentei sair de mim, sair do conhecido, do estático e conhecer outras pessoas. Estou casado com uma alemã, passei mais de metade da minha vida na Alemanha, tenho amigos em todas as partes. O que eu gosto é do Espaço Schengen, é do euro, que me permite pagar aqui em Lisboa com a moeda que me deu o padeiro alemão. Isto não quer dizer que menospreze as culturas locais, pelo contrário. Mas eu acho que o local tem de servir para oferecer ao outro. Quer dizer, eu vou junto do outro e digo: “Bom, eu sou assim, são assim as minhas danças, este é o meu idioma, a minha gastronomia, ofereço-vos isto.” Em vez de me fechar dentro de umas fronteiras e fazer com que tudo o que entre ali tenha de cumprir determinados requisitos. Não gosto disso.

Cresceu ainda em ditadura, quando a língua, a cultura basca não eram apoiadas. Não é esse o caso agora.
Sim, aprende-se a língua nas escolas, há rádios, há televisão, há uma normalização. Isso parece-me bem. A situação é hoje totalmente diferente.

Na semana passada, o Congresso espanhol aprovou a lei final da amnistia para os independentistas catalães. Como vê o processo independentista na Catalunha?
Aborrece-me, aborrece-me muito. Não quero dar a minha opinião. Aborrece-me muitíssimo. É uma questão de obter sete votos para ter maioria no Congresso. Agora adorná-lo de retórica e de justificações não me interessa falar.

Voltando então aos livros, ficará sempre ligado a Pátria. Como é que as coisas mudaram com a adaptação desse livro a uma série da HBO? 
A adaptação está muito bem feita. Mas sim, eu sou sempre o autor de Pátria. Já disse ao meu editor para, no futuro, não meter o meu nome e apelido, só “autor de Pátria”, para que as pessoas me identifiquem mais rapidamente. Estou a brincar. A verdade é que estou muito agradecido a esse livro. E a série voltou a tornar o livro atual. Mas não tive qualquer participação, não o quis fazer. Deixei que o fizessem e fizeram-no muito bem. O livro abriu-me muitas portas. Estou em Portugal graças a esse livro. 

Mas tem pena de as pessoas não conhecerem outros livros seus?
Não, se os meus outros livros são valiosos, se as pessoas não os leem o problema é delas, não meu. Eu escrevo os meus livros todos com o mesmo esmero. Uns têm mais êxito que outros. Se gostam, fico feliz. Se não gostam, o que vou fazer. Mas estou muito agradecido a esse livro. Porque me deu algo que não tinha antes, os leitores. E uma diversificação internacional que não tinha, nem em sonhos. 

E também escreve uma crónica no El País. Como é essa experiência?
Há mais de um ano que escrevo uma coluna. É como um brinquedo, aproveito para escrever sobre o que me apetece. É bom poder fazê-lo sem ser num livro. Às vezes abordo um tema atual, outras algo pessoal, uma experiência que tive, um livro que li... Não sou jornalista, não o menosprezo. Mas não tenho preparação de jornalista, não informo e nem sou um bom analista. O que tenho é uma perspetiva e uma prosa.

E uma voz, que é importante?
E uma voz, efetivamente. Então, com estes simples elementos, encho um pequeno buraco no El País todas as terças-feiras. E gosto muito.

E já tem pensado o próximo livro?
Não. Eu tenho livros inéditos em repouso. É provável que volte a um deles. Eu tenho sempre livros a mais. Filhos da Fábula estava acabado dois anos antes de publicar. Então, quando quero vou recuperá-lo e, a partir de outro estado de espírito e de outra perspetiva faço a revisão, tiro coisas, ponho coisas. E, normalmente, acho que os livros melhoram com as revisões.

susana.f.salvador@dn.pt

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