Soldados da Legião Francesa transportaram os caixões do casal Manouchian para o Panteão. EPA/SARAH MEYSSONNIER / POOL
Soldados da Legião Francesa transportaram os caixões do casal Manouchian para o Panteão. EPA/SARAH MEYSSONNIER / POOL

Feridas do passado francês reabertas na homenagem a resistentes do nazismo

Emmanuel Macron tinha avisado que a presença de Marine Le Pen no Panteão era desaconselhável, mas a líder da extrema-direita ignorou o presidente.
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Oitenta anos depois de o grupo de 22 resistentes liderados por Missak Manouchian ter sido fuzilado nos arredores de Paris por soldados nazis, a França elevou-os ao estatuto de heróis nacionais, ao trasladar os corpos do poeta de origem arménia e da sua mulher Mélinée para o Panteão, numa cerimónia presidida pelo chefe de Estado Emmanuel Macron, e que contou com a presença, entre outros convidados, do primeiro-ministro da Arménia Nikol Pashinyan.

Presidente e familiares dos resistentes antifascistas haviam expressado que não queriam dirigentes da extrema-direita na cerimónia, um desejo que não foi levado em conta pelo líder nominal da União Nacional, Jordan Bardella, e da líder de facto, Marine Le Pen. Uma presença que “gela o sangue”, disse o presidente da Câmara de Marselha, Benoît Payan.

Em 17 de fevereiro de 1944, 22 homens, na sua maioria estrangeiros, elementos da unidade FTP-MOI (franco-atiradores e partizans) da resistência comunista, são condenados à morte e fuzilados quatro dias depois. A única mulher do grupo, a romena Olga Bancic, é transferida para a Alemanha, onde acabará decapitada. 

Dez dos resistentes tornaram-se conhecidos graças ao Cartaz Vermelho, que foi afixado um pouco por toda a capital francesa, a denunciar um “exército do crime” constituído por estrangeiros (e judeus). O objetivo da propaganda saiu furado e os homens condenados transformaram-se em mártires. Foram homenageados pelo poema de Aragon, escrito em 1955, e depois transformado em canção por Léo Ferré, em 1961 (L’Afiche Rouge).

Numa carta de despedida à mulher, escrita horas antes do fuzilamento, o líder do grupo, Missak Manouchian, não mostrou qualquer ressentimento para com os alemães e evocava a paz e a liberdade que se aproximava, enquanto desejava a publicação dos seus poemas e a sua memória e a dos seus camaradas de armas serão honradas. “É o meu fim, mas é preciso tornar a sociedade menos injusta”, declarou.

A decisão de Emmanuel Macron de depositar os restos mortais de Missak Manouchian e da sua mulher, Mélinée, no templo dos heróis e heroínas franceses, ao lado do memorial de outro herói da resistência, Jean Moulin, carrega todo um simbolismo de homenagear os estrangeiros e todos os que querem seguir os valores da república francesa. Para o Eliseu, Missak Manouchian encarna os “valores universais” da liberdade, da igualdade e da fraternidade, em nome dos quais “defendeu a república”, declarou em junho passado, ao anunciar a homenagem. “O sangue derramado pela França tem a mesma cor para todos”, disse Macron.

Já o historiador Denis Peschanski destaca o facto de Manouchian ser o primeiro combatente da resistência estrangeiro e o primeiro combatente da resistência comunista a entrar no Panteão. “Este é um ponto de viragem na nossa memória.”

Durante a cerimónia, Macron voltou ao tema: “A França agradecida dá-vos as boas-vindas. Missak, os 23, e com eles todos os outros, finalmente comemorados”, declarou. “A França de 2024 deve a si própria honrar aqueles que foram a França 24 vezes”, referindo-se aos 23 mortos e à mulher de Missak, Mélinée, que sobreviveu ao nazismo e morreu em 1989.

Familiares dos fuzilados não queriam a presença de Marine Le Pen: na fundação do partido do seu pai, então Frente Nacional, faziam parte antigos colaboracionistas. O sobrinho-neto de Cesare Luccarini, antifascista italiano executado ao lado de Manouchian, pediu “solenemente” para Marine Le Pen não fazer parte da cerimónia. O mesmo disse Georges Duffau-Epstein, filho de outro executado, Joseph Epstein. Macron disse-o em entrevista ao L’Humanité. “As forças de extrema-direita fariam bem em não estar presentes, dada a natureza da luta de Manouchian”, disse, invocando ainda “um espírito de decência”. 

Marine Le Pen reagiu dizendo-se ofendida pelos comentários “escandalosos e ultrajantes” e que a sua ausência é que seria “surpreendente”. Em declarações no local, Le Pen disse que o Panteão é "um lugar de unidade da nação" e que "através da personalidade do sr. Manouchian, é a toda a resistência que se presta homenagem".

Poeta e herói da resistência 

Nascido na Anatólia em 1906, Missak Manouchian sobrevive ao genocídio arménio cometido pelo Império Otomano. Depois de ter sido acolhido num orfanato no Líbano, desembarcou em Marselha com 18 anos. Marceneiro e operário em Paris, cultiva-se em paralelo numa biblioteca, escreve poemas e colabora em revistas literárias antes de aderir, em 1934, ao Partido Comunista Francês. É também na capital francesa que se reencontra com a mulher da sua vida, Mélinée. Cinco anos depois entra na clandestinidade e em 1943 chefia o grupo de franco-atiradores e partizans estrangeiros. Apátrida (apesar de ter pedido a nacionalidade francesa), é executado com 21 outros antifascistas em 21 de fevereiro de 1944.

cesar.avo@dn.pt 

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