Faz sentido falar de países árabes ou do mundo árabe? Existe alguma coerência numa designação que vai da Mauritânia ao Iraque?É uma área vasta e abrange muitos países, pelo que devemos sempre prestar atenção às diferenças entre eles. No entanto, também têm coisas em comum: a língua árabe (pelo menos na forma clássica que as elites conseguem ler e compreender), a religião maioritária, parte da sua história e um sentimento de pertença a uma comunidade. Deve-se também acrescentar uma sensibilidade comum em relação à questão palestiniana, embora as perspetivas possam variar entre o Egito, a Jordânia, a Arábia Saudita e outros.Olhando especificamente para o Médio Oriente, como é que os árabes veem a Turquia e o Irão? Como rivais?Numa perspetiva de longo prazo, creio que os árabes veem um legado imperial tanto na Turquia como no Irão de hoje. Ambos os países têm maioria muçulmana, mas não são árabes; ambos os países (embora em períodos históricos diferentes) invadiram, subjugaram e dominaram pelo menos partes do mundo árabe no passado. Na Turquia e no Irão de hoje, ainda se pode vislumbrar uma mentalidade imperial. Percebem-se como potências regionais. Têm ambições hegemónicas. E, por vezes, albergam um complexo de superioridade étnica em relação aos árabes, que pode estar impregnado de racismo.Depois de o Egipto e a Jordânia terem sido casos isolados durante décadas, vários países árabes normalizaram as relações com Israel nos últimos anos. Significa isto que a questão palestiniana perdeu importância?Pelo menos até 7 de outubro de 2023, a resposta era sim: a questão palestiniana tinha perdido importância. Muitos líderes árabes distanciaram-se por se sentirem alienados por todas as escolhas erradas que os palestinianos fizeram, especialmente por apoiarem milícias pró-iranianas como o Hamas e o Hezbollah. Os Acordos de Abraão evidenciaram que parte dos líderes sunitas conservadores queria seguir um novo caminho. Sentiam que não deviam demonizar Israel, mas sim seguir o seu exemplo para modernizar, promover o crescimento económico e a inovação tecnológica, e melhorar o bem-estar do seu povo. O Dubai e os Emirados, o Qatar, o Bahrein e, depois, a Arábia Saudita, todos, cada um à sua maneira, acabaram por emular o modelo israelita após décadas de luta contra o mesmo.A rivalidade histórica entre sunitas e xiitas ainda afeta a geopolítica do Médio Oriente?Sim, é verdade, mas de formas diferentes do passado. Muitas vezes esquecemo-nos que em 1979, quando a revolução xiita liderada por Khomeini trouxe a mudança de regime no Irão, ocorreu um ataque terrorista massivo no coração da Arábia Saudita, dentro da Grande Mesquita de Meca. A monarquia saudita temia ser deposta por uma revolta fundamentalista como a que derrubou o Xá da Pérsia. A sua reação foi procurar proteção fortalecendo a sua aliança com o clero wahabita. A partir de então, o Irão e a Arábia iniciaram uma corrida destrutiva pela hegemonia do islamismo fundamentalista. Tanto a principal potência xiita como a principal potência sunita impuseram ao seu próprio povo uma interpretação retrógrada e opressiva do governo religioso. Ambos começaram a financiar e a encorajar mundialmente a disseminação de uma versão fanática, violenta e anti-ocidental do Islão. Esta competição entre os líderes xiitas e sunitas teve consequências trágicas para o resto do mundo, incluindo o ataque terrorista contra os EUA a 11 de setembro de 2001 e muitos outros ataques contra países americanos, europeus, asiáticos e africanos. As comunidades de imigrantes nos países europeus foram alvo da doutrinação sistemática do ódio. Esta história tomou um rumo muito diferente desde que o príncipe Mohammed bin Salman, também conhecido como MbS, assumiu o comando da Arábia Saudita. Agora, ainda temos uma competição constante entre xiitas e sunitas, mas os termos mudaram. MbS, ao aplicar o modelo do Dubai a uma escala muito maior, quer provar que existe um caminho secular para o desenvolvimento, o progresso e até a construção de consensos, embora de forma alguma rumo à democracia..O Novo Império ÁrabeFederico RampiniPresença240 páginas17,90 euros.Como podemos explicar o papel de liderança do pequeno Qatar?O Qatar tem sido geográfica, histórica, étnica e culturalmente uma ponte entre sunitas e xiitas, e entre a influência árabe e persa. Por vezes, isto levou os seus governantes a desempenhar um papel bastante ambíguo, o que gerou suspeitas e até hostilidade aberta entre os seus vizinhos. No final de contas, todos usaram o Qatar como intermediário, até mesmo Netanyahu e vários presidentes americanos (Obama, o primeiro Trump, Biden) queriam que o Qatar atuasse como mediador com o Irão e o Hamas, ou com os talibãs afegãos.O jihadismo está em recuo ou o ISIS e a Al-Qaeda continuam a ser uma ameaça aos regimes árabes?Definitivamente, não estão em retirada em África. Esse é o seu principal domínio de expansão e conquista atualmente. Além disso, não devemos esquecer que Assad foi expulso da Síria pelas forças jihadistas que agora controlam o país.Como vê o futuro dos cristãos árabes?Há pelo menos um país onde a sua situação pode melhorar, é o Líbano, após o enfraquecimento do Hezbollah. É um efeito colateral da bem-sucedida campanha israelita contra os seus próprios inimigos.Os direitos das mulheres estão a avançar?Definitivamente, avançaram nos Emirados e na Arábia Saudita. Visitei a Arábia Saudita em 2017, na altura como correspondente da Casa Branca, após a primeira viagem de Donald Trump àquele país. Era ainda um país fechado; lembro-me de que, mesmo com todos os privilégios da imprensa da Casa Branca, estávamos isolados num hotel, sem permissão para andar em Riade. “Para nossa própria segurança”, disse a polícia local. Na verdade, não queriam que os estrangeiros se intrometessem nos seus negócios. O turismo estrangeiro não era bem-vindo. E todas as mulheres sauditas usavam véu. Voltei à Arábia Saudita sete anos depois, em 2024, e não conseguia reconhecer o lugar. Tantas mudanças em tão pouco tempo. As mulheres podem vestir-se como quiserem, vê-se muitas delas com roupas de estilo ocidental e sem véu. Podem conduzir. Podem viajar sozinhas, sem necessidade de permissão do pai ou do marido (como costumava ser). O turismo estrangeiro é ativamente incentivado. Assisti a um concerto de rock em Jidá. Os cinemas foram abertos. O progresso nos direitos das mulheres é parte dessa secularização da vida.A Rússia e a China podem competir com os EUA pela influência no Médio Oriente?Os acontecimentos mais recentes evidenciaram as limitações do poder russo e chinês. Nenhum dos dois tem uma presença militar significativa no Médio Oriente, e a presença russa diminuiu quando Assad perdeu o poder na Síria. Além disso, a China é o maior importador mundial de petróleo e é muito dependente dos produtores do Golfo. Os EUA, ao combinarem a sua significativa presença militar com a sua auto-suficiência em energia fóssil, estão numa posição única. Os EUA podem influenciar os resultados geopolíticos e energéticos no Médio Oriente sem se colocarem numa situação de dependência. A China está a aumentar drasticamente o seu poder militar, mas ainda não está preparada para projetar uma força significativa no Médio Oriente.Os países europeus do sul devem prestar especial atenção a tudo o que se passa no mundo árabe?Com certeza que deveriam. E embora viva agora nos EUA, sinto que já estão a prestar especial atenção. Conhecemos as razões habituais: proximidade geográfica, dependência energética e todos os riscos relacionados com a instabilidade geopolítica, incluindo os fluxos de imigração. Recentemente, os europeus do Sul, bem como a Alemanha e o Reino Unido, também têm sentido uma crescente pressão política por parte das suas comunidades de imigrantes árabes. Em questões como a crise humanitária em Gaza, os imigrantes de ascendência árabe (ou mesmo turca, no caso da Alemanha) tornaram-se um eleitorado doméstico muito poderoso.A Primavera Árabe ocorreu há 14 anos. Resta algo dela?Receio que o legado da Primavera Árabe seja hoje maioritariamente negativo. Há uma desilusão generalizada por todas as promessas não cumpridas. Nos EUA, entre os erros cometidos por Barack Obama, existe um amplo consenso sobre o facto de se ter revelado ingénuo na condução da Primavera Árabe. Sobretudo com o Egito, onde empurrou Mubarak para a saída, mas depois assustou-se com a vitória eleitoral da Irmandade Muçulmana e acabou por apoiar outro ditador. Muitas vezes, aquilo a que chamamos Primavera Árabe era um equívoco: tal como no Irão em 1979, começou por ser um movimento anti-autoritário, prometendo democracia e direitos humanos, depois traiu as suas promessas e abriu caminho ao domínio das multidões, ao extremismo religioso, à violência e a um novo tipo de regime autoritário. Hoje em dia, o modelo saudita de MbS parece mais realista: um progresso controlado no sentido de mais direitos humanos, dentro de um sistema autoritário. Não estou a dizer que é o ideal, mas parece-me a opção menos má disponível neste momento.