"Estou otimista, acho que vai demorar tempo, mas África vai ser um continente rico"
Gestor do KfW, o Banco de Crédito para a Reconstrução, explica a nova política de cooperação com África elaborada pelo governo alemão liderado por Olaf Scholz e que junta sociais-democratas, ecologistas e liberais. O DN conversou, em português, com Helmut Gauges durante um seminário co-organizado em Cascais pela Embaixada da Alemanha em Portugal e Academia Europeia de Berlim sob o mote "A política europeia alemã no dealbar histórico de uma nova era".
A Alemanha teve uma experiência colonial em África muito breve, iniciada em finais do século XIX e que acabou em 1918. Mas que ainda estará na memória de algumas pessoas. Quando alguém como o senhor, representante de uma entidade alemã de apoio ao desenvolvimento, visita um país africano, olham para si como alguém vindo de um antigo país colonizador ou um alemão já não tem essa etiqueta colada como acontece a um francês, a um inglês ou a um português?
A Alemanha tem uma história muito breve na colonização e hoje isto quase está esquecido em África. No geral, a imagem da Alemanha é bastante positiva na maioria dos países de África, a credibilidade na cooperação com a Alemanha é muito grande porque temos uma visão de desenvolvimento para o povo africano. E não temos interesses, por isso é mais fácil para nós estabelecer uma cooperação do que outros países com outra história. Muitas vezes, esses países europeus têm uma ligação forte em termos económicos e financeiros com países africanos, que é mais uma mistura de interesses. A Alemanha, como tradicionalmente estava muito pouco interessada na cooperação económica com África - embora hoje esteja mais, claro -, tem mais um interesse centrado no desenvolvimento de África.
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A Alemanha quando faz cooperação com África, e comparando agora com outros dois grandes atores, a Rússia e a China, tem a diferença de afixar critérios éticos, de direitos humanos e ambientais muito exigentes...
Exatamente. Então, essa cooperação alemã só funciona quando tem acordo desses países, dos governos e dos organismos locais, em termos de aceitarem esses critérios. Se eles não aceitarem, então não existe uma cooperação financeira, é impossível.
O que significa que não temos de dizer que todos os países apoiados pela Alemanha são automaticamente democracias, mas têm de ter pelo menos governos que sejam eficientes e que aceitem as regras claras impostas?
Sim, são regras que são transparentes para ambas as partes, portanto, também nessa cooperação, os governos e as empresas, aprendem como poderia ser um projeto com respeito ambiental e com respeito pelos direitos humanos. Também é uma experiência para esses países.
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Da sua experiência de contactar com África, não se pode dizer que há uma diferença de desenvolvimento dos países por terem sido de colonização portuguesa, inglesa ou francesa? A diferença é se esses países fizeram um compromisso democrático ou não? Ou seja, não sente diferença de país para país por causa do colonizador, mas mais se esse país enveredou pela via democrática?
Acho África um continente muito grande e cada país é diferente, assim como na Europa. É difícil dizer que uma parte de África é uma coisa e a outra parte é outra coisa. Depende muito da população, da educação da população, da liberdade de imprensa, das estruturas democráticas, e também da consciência de construir um país. E esta consciência é algo que muitas vezes não existe nos países africanos porque foram construídos pelos colonizadores, e isso é um grande problema. Por outro lado, também há países em África com sistemas democráticos que funcionam, como o Níger, por exemplo. Ou o Malawi, que funciona igualmente muito bem e que também é uma nação. Ou seja, não depende tanto de se a colonização foi francesa ou inglesa, depende muito mais das raízes do próprio país.
Nos países lusófonos, o seu banco só tem projetos com Moçambique. Daquilo que conhece da África de língua portuguesa, Cabo Verde é um bom exemplo do que pode ser África?
Cabo Verde tem um desenvolvimento muito bom e é um bom exemplo do que poderia ser África. Mas Cabo Verde também é um país pequeno e é mais fácil sentir-se como um país do que os países que são muito grandes. Acho que Cabo Verde é um grande sucesso e, por isso, é um país já bem desenvolvido atualmente, mas não tem cooperação com a Alemanha a nível do governo ou comerciais.
Outro país de língua portuguesa, Angola, em que algumas estatísticas recentes mostram que existe esse processo de construção do Estado e da Nação. A língua portuguesa é a que os angolanos utilizam para comunicar de norte a sul, pois não há uma língua franca nativa. Quando um país como Angola junta riquezas naturais, mas também a capacidade de se construir enquanto país, podemos ser otimistas?
Sim, aliás, a meu ver, África é o continente mais rico e os recursos são ilimitados, desde minerais a energéticos, até com as energias eólica, solar e fotovoltaica. O continente tem tudo para ter desenvolvimento, o que falta muitas vezes é uma estrutura e um bom governo, bem como a capacidade de desenvolver essas infraestruturas. Estou otimista, acho que vai demorar muito tempo, mas no fim África vai ser um continente rico.
Qual é o orçamento anual que o seu banco tem para África?
Pouco mais de dois mil milhões de euros por ano.
E o valor total da ajuda ao desenvolvimento por parte da Alemanha para África?
Um pouco mais de seis mil milhões de euros por ano.
Foi esse valor que disse antes que quase duplicou ou é o valor geral?
A cooperação alemã subiu de oito mil milhões para 12 mil milhões, em geral. Desses quatro mil milhões extra, mais de metade foi somente para África, ou seja, dos 12 mil milhões, seis mil milhões são para a cooperação com África.
África é uma nova preocupação para a Alemanha ou já vem de trás?
Acho que o interesse da Alemanha surgiu mais nos últimos dez anos e surgiu pela consciência de que há problemas em África que não ficam lá, vão também impactar a Europa. Atualmente, conhecemos melhor os problemas de África e temos uma maior abertura e maior interesse em trabalhar com África.
Ou seja, se África for eternamente pobre, continuará a haver uma pressão migratória constante sobre a Europa e em especial países ricos como a Alemanha?
Sim, é sobretudo isso. É um dos aspetos fundamentais, mas o interesse económico da Europa em África também aumentou. E a nível de recursos, por exemplo, todos precisam das terras raras que há em abundância em África.
Surpreende-o que nesta guerra na Ucrânia e neste choque entre o ocidente e a Rússia, muitos países africanos hesitem em condenar a Rússia? África ainda olha muito para a China e a Rússia como modelos ou acha que o exemplo dos países europeus e da Alemanha pode ter resultados?
Acho que podemos ver que os países de África têm outra perspetiva deste conflito no leste da Europa, acho que há alguma simpatia com esses sistemas, mas eles querem ter alternativas e não querem ser dependentes de um só sistema, querem poder escolher. A discussão atual com os países africanos é diferente, é ao nível de convencer que o sistema de valores da Europa é melhor do que os outros.
Um dos valores que a cooperação alemã promove é o direito das mulheres e a emancipação feminina. Continua assim?
Acho que esse talvez seja um dos valores mais recentes no nosso novo governo, a ideia de que as mulheres têm um papel muito importante no desenvolvimento de um país, e até talvez o papel mais importante de todos. A mulher toma a responsabilidade pela família, pelas crianças, têm mais perspetiva sustentável e, então, para nós é muito importante sustentar e fomentar o papel da mulher na sociedade desses países.
Estamos a falar de mais de 50 países em África e alguns deles têm uma tradição matrilinear. Esses países estão em vantagem?
Exatamente. Visitei um dia um projeto de eletrificação e perguntei ao homem o que é que iam fazer quando tivessem eletricidade e ele disse-me que iam compram uma televisão para ver futebol. Mas a mulher respondeu-me que iam utilizar a eletricidade para produzir queijo. Isto foi no Brasil, mas em África passa-se a mesma coisa.
Muitas vezes diz-se que a Rússia ainda tem alguma influência em África porque certas elites aprenderam russo e estudaram na Rússia. A Alemanha também tem essa situação devido à antiga Alemanha comunista ter tido cooperação forte. No seu contacto com África encontra pessoas ocasionalmente que falam alemão por causa dessa mesma ligação?
Sim, há muita gente que aprendeu alemão nas universidades e que agora estão a trabalhar nos projetos da cooperação entre Alemanha e África. É um privilégio, porque é muito raro encontrarmos pessoas que falem alemão em África.
E essas pessoas, mesmo sendo a extinta Alemanha comunista que lhes deu a formação, acha que entraram melhor na mentalidade alemã do que aqueles que não falam a língua?
Com certeza. Eles têm uma formação técnica, tipicamente, menos ideológica e o que pretendem é o desenvolvimento do país, não é tão importante o sistema em si.
Já tiveram algum projeto de cooperação com alguma antiga colónia alemã em África?
Com a Namíbia. E a Namíbia é um dos países mais importantes na cooperação com África.
Ainda existe uma pequena comunidade alemã e quem fale alemão na Namíbia, certo?
Sim, exatamente. Aliás, o ministro da Agricultura fala alemão devido a essa tradição da língua alemã na Namíbia.
E sente que a Namíbia, em termos de governação e sociedade, tem alguma coisa desse legado alemão?
Não sei, realmente não sei.
É mais a facilidade de encontrar pessoas que falem alemão?
Sim, também, porque é mais fácil para as empresas alemãs quando encontram pessoas que falam a língua, torna as contratações mais fáceis, até porque, pensando na ajuda aos países lusófonos, há poucas pessoas que falem português na Alemanha.
Depois da cooperação, depois da intervenção de um banco como o seu (que funciona sobretudo através de ajudas e subsídios), a seguir as empresas alemãs vão para o terreno tentar investir ou não?
As empresas vão lá quando há reformas que ajudam a economia, ajudam a exportação e a importação, e quanto há uma infraestrutura que está sustentada e fomentada por nós, aí vão lá. Mas, na maioria, as empresas preferem os países mais desenvolvidos, como a África do Sul, Marrocos, Tunísia, Egito e Ruanda agora também. Não vão para países muito pobres porque faltam as infraestruturas, falta a energia elétrica, faltam as pessoas formadas para a produção.
O seu banco funciona sobretudo com fundos governamentais?
Fundos governamentais, exatamente. Mas quando um país tem um rating favorável, também utilizamos recursos financeiros do banco para ampliar o financiamento, mas aí é como crédito.
Disse que ajudou a preparar o próximo plano de política alemã para África. É um plano, daquilo que pode dizer, ambicioso?
Acho que sim. Aliás, tem de ser ambicioso porque os problemas são grandes em África e a Alemanha, e também a Europa, têm de ter planos ambiciosos para ajudar e cooperar.
leonidio.ferreira@dn.pt