Estado da União entre os mea culpa e uma visão de futuro (a hidrogénio)

A presidente da Comissão reconheceu erros de há 50 anos, quando nada se fez para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, e erros recentes, como a complacência para com Putin. No primeiro caso promete apostar nas energias limpas, no segundo na unidade europeia para a vitória sobre o autocrata.

Durante quase uma hora a dirigente alemã falou sobre alguns dos assuntos prementes na Europa e conseguiu, no final, reunir elogios à esquerda e à direita, mas também críticas, em especial das bancadas dos extremos.

Olena, Magdalena, Agnieszka, Isabel II

Vestida de casaco amarelo e blusa azul, as cores da bandeira ucraniana, Ursula von der Leyen não esteve com rodeios e começou o discurso a falar sobre a guerra e a resposta solidária da Europa. Para a presidente da Comissão, a "coragem tem um rosto", o rosto das mulheres e homens ucranianos. E quem melhor do que a mulher do presidente Volodymyr Zelensky para simbolizar essa bravura? Olena Zelenska foi a "convidada de honra" e teve direito à primeira ovação do dia, numa altura em que muitos deputados ainda estavam fora do hemiciclo.

Sobre a solidariedade, deixou para o fim do discurso o agradecimento a duas jovens polacas, Magdalena e Agnieszka, também presentes na câmara, as quais, perante a afluência dos refugiados em Varsóvia, criaram um movimento que em dias juntou 3000 voluntários. "Mostraram a todos o que os europeus podem alcançar quando nos reunimos em torno de uma missão comum. Este é o espírito europeu", elogiou a dirigente alemã.

Outra mulher que recebeu um elogio foi a "lenda" Isabel II. "Quando penso na situação em que nos encontramos hoje, as suas palavras no auge da pandemia ainda ressoam em mim: "Vamos ser bem-sucedidos, e esse sucesso pertencerá a cada um de nós"". As mulheres foram a maioria, mas não tiveram o exclusivo da inspiração. Von der Leyen evocou o anterior presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, ao citar a sua frase "a democracia não saiu de moda, mas tem de se atualizar para poder continuar a melhorar a vida das pessoas".

"O nosso mercado único é uma das maiores histórias de sucesso da Europa. Agora é altura de fazer dela também uma história de sucesso para os nossos amigos ucranianos."

Sanções para Moscovo, mercado único para Kiev

Para a líder da Comissão, a invasão da Rússia não se limita à agressão contra a Ucrânia. "Esta é uma guerra à nossa energia, uma guerra à nossa economia, uma guerra aos nossos valores e uma guerra ao nosso futuro. É a minha convicção de que, com coragem e solidariedade, Putin vai falhar e a Ucrânia e a Europa vão triunfar." Reconheceu que a UE devia ter dado ouvidos aos jornalistas russos que pagaram com a vida, bem como aos avisos dos países de leste, países bálticos e à Polónia. "Há anos que nos dizem que Putin não iria parar." Agora há que manter as sanções económicas, porque "não é tempo para apaziguamento", embora não tenha sugerido que outras medidas podem ser tomadas.

Depois de ter dito que a Comissão iria contribuir com cem milhões de euros para a reconstrução de escolas, anunciou que se iria encontrar, ainda no próprio dia, com o presidente Zelensky em Kiev, tendo levantado o véu de duas medidas a tomar no futuro: ao nível das comunicações, com a entrada da Ucrânia na zona sem custos de roaming; e, mais ambicioso, no mercado único europeu.

"É minha convicção de que, com coragem e solidariedade, Putin vai falhar e a Ucrânia e a Europa vão triunfar. (...) A solidariedade da Europa para com a Ucrânia permanecerá inabalável."

Enviar as contas para a Rússia

Se no que respeita ao apoio em torno da Ucrânia há quase unanimidade, o tema da crise energética, que havia ocupado parte da tarde anterior com um debate, mostrou as divisões típicas dos partidos europeus. Como já havia sido noticiado, a presidente da Comissão anunciou uma taxa sobre os lucros adicionais das empresas energéticas, um valor de 140 mil milhões de euros para fazer face às necessidades das famílias e empresas.

"Na nossa economia social de mercado, os lucros são positivos. Mas nestes tempos é errado receber lucros extraordinários sem precedentes, beneficiando da guerra e à custa dos consumidores. Nestes tempos, os lucros devem ser partilhados e canalizados para aqueles que mais precisam deles."

Uma medida temporária que era reclamada há bastante tempo pelos partidos mais à esquerda do hemiciclo. Vários deputados socialistas e verdes regozijaram-se com a medida (ver peça ao lado). Num tom mais combativo, Manon Aubry, líder da bancada do grupo Esquerda Unitária (o mesmo do PCP e do Bloco de Esquerda), disse que é uma novidade Leyen reconhecer a existência de lucros extraordinários, no entanto advertiu que "a lucidez tardia não serve de nada".

Aubry, militante da França Insubmissa de Jean-Luc Mélénchon, mostrou uma conta de 2300 euros de energia e perguntou como é que os cidadãos vão fazer face a estas despesas. Em francês, Leyen disse que uma fatura como aquelas é "insuportável" e sugeriu que se devia enviar aquela conta e outras do género para Moscovo, ao que Aubry retrucou: "Pare de se esconder atrás dos outros." Já a presidente do grupo dos socialistas, Iratxe García Pérez, que rejeitou "o pessimismo e o catastrofismo" lamentou a ausência da dimensão social no discurso da presidente.

Banco de hidrogénio

Para Ursula von der Leyen a atual configuração do mercado da energia deixou de ser justa, pelo que também anunciou a dissociação do preço do gás sobre o preço da eletricidade, numa "reforma profunda e abrangente", que não deverá acontecer antes do fim do ano. Sugeriu também aos deputados que se apressem a aprovar o pacote de eficiência energética RePower, de 20 mil milhões de euros.

No mesmo dia, os eurodeputados aprovaram o aumento de energias renováveis ​​no consumo final para 45% até 2030, enquanto, noutra votação, disseram sim à redução do consumo energético até àquele ano de 40%, em comparação com as projeções de 2007.

Ainda sobre a energia, von der Leyen afirmou que a Europa não aprendeu com a crise energética dos anos 70, mas que desta vez os erros não se repetirão, e anunciou a criação de um banco de hidrogénio, através do qual estarão disponíveis 3 mil milhões de euros para ajudar a que o hidrogénio verde deixe de ser uma energia de nicho.

Direitos fundamentais

A presidente da Comissão reiterou a defesa da independência judicial e a proteção do orçamento através do mecanismo de condicionalidade. Ou seja, e sem nomear, voltou a chamar a atenção para a situação na Hungria (cuja proposta de relatório sobre a sua fragilidade democrática voltou a ser debatida pelos deputados, que deploram a inação do Conselho Europeu na matéria) e na Polónia.

"Muitos de nós tomaram a democracia como um dado adquirido durante demasiado tempo. Hoje todos nós vemos que devemos lutar pelas nossas democracias. Todos os dias."

Vários deputados pediram para que a Comissão seja "criativa" e ajude os húngaros, transferindo o dinheiro sem que este seja direcionado para o governo de Viktor Orbán.

cesar.avo@dn.pt

O jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu

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