"Esta guerra tira-me a juventude e a vida". Os lamentos que ficam no comboio que "foge" dos combates

A viagem de Dnipro para Odessa dura 12 horas em composições com muita gente. Tempo para estranhos conversarem sobre as suas experiências e incertezas.
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A cidade de Dnipro é atualmente o ponto natural de cruzamento na Ucrânia, em que quem foge do sul se encontra com quem foge de Donbass no leste do país. A guerra que se intensificou depois da invasão russa, a 24 de Fevereiro, e as cidades ocupadas pelo exército daquela nação assim o impõem.

Este é o caso de Nikolai Biryokov, 65 anos, que saiu de Mariupol após ter perdido a sua casa em março passado, e de Ruslan, de Slavyanka na região de Donetsk, que não perdeu agora a casa porque já tinha perdido em 2014, e que diz estar "com receio que a guerra no Donbass se intensifique na próxima semana. "Vim para Odessa e vou ficar aqui a viver com um amigo do meu pai numa aldeia".

O que une estes dois homens, além de partilharem um compartimento num comboio de evacuação durante mais 12 horas, é o facto de ambos terem ficado sem nada por causa da guerra. Ambos entraram neste comboio em Dnipro no meio de tantos outros ucranianos que numa massa humana, às escuras, se movia pelo túnel de acesso à plataforma, num silêncio, que foi só interrompido pelos megafones: "10 minutos de paragem apenas, comboio para Odessa, plataforma 6", ouvia-se em ucraniano e inglês. O comboio que devia ter chegado às 21.30, para partir meia hora depois, chegou às 23.00 vindo de Kostyan-tynivka, na região Donetsk. Rapidamente todos se colocaram em fila à porta de cada vagão. Mesmo quem não tinha bilhete pode entrar. "Ninguém fica aqui, levamos todos os quiserem ir", diz a funcionária dos comboios ucranianos num tom profissional mas cansado. Dentro das composições todos se dirigem para os seus lugares, já quem não tem bilhete procura um espaço e pergunta se ali pode ficar.

CitaçãocitacaoNikolai esteve a viver vários dias num esconderijo subterrâneo. "Mas quando saí era só corpos queimados por todo lado, não podia ficar ali. Parti de Mariupol porque perdi a casa, só tenho esta roupa. Veja o meu casaco está tão sujo, nunca ando sujo."esquerda

O comboio não vai cheio como já foi, todos conseguem lugar para se sentar. A viagem segue noite dentro. Tudo às escuras por causa do medo das bombas, até a casa de banho tem uma cortina grossa para tapar a luz. Vão entrando mais pessoas nos apeadeiros seguintes a Dnipro, durante mais duas horas o comboio enche. Depois quase todos adormecem onde se sentem mais confortáveis ou no espaço que sobrou. Uma senhora de mais de 70 anos entrou com vários sacos de plástico, sentou-se ao lado de Nikolai que já dormia, ressonava aliás. "Não é justa esta guerra, já não tenho idade para isto. A guerra já levou a minha mãe...", desabafou. Depois falou algumas palavras ininteligíveis em hebraico e resignou-se ao silêncio até adormecer sentada, rodeada pelos sacos de plástico.

Pelas 7.00 da manhã a vida regressa aos compartimentos que nestes comboios mais antigos são abertos, e pequenas conversas vão sucedendo entre estranhos, a maioria vindos do sul, de Mariupol, Berdysandk, Zaporíjia ou de Donbass, "antes que tudo piore", ouve-se repetidamente. E começa o ritual de pedir café ou chá à encarregada pelo vagão. Cada um tira do seu saco a comida que tem, salpicão e pão, pequeno bolos, frutas. Quem não tem nada também não passa fome, há sempre quem ofereça algo.

E a conversa entre Ruslan e Nikolai começa aos poucos, primeiro em frase curtas com pausas, depois em depoimentos de minutos pautados apenas pela respiração cúmplice de quem escuta. Aqui todos têm uma história para contar e o denominador comum é a guerra. Nikolai diz que veio de Mariupol e que, depois de vários dias em Berdyansk, em que foi ajudado por um homem que vendia alfaias agrícolas, chegou a Zaporíjia. "Aquele homem é um anjo, tratou-nos tão bem. Ficámos lá cinco dias sem conseguirmos sair. Deu-nos local para dormir e comida e tentou sair connosco várias vezes sem sucesso. Nunca aceitou o nosso dinheiro, chama-se Detyuk Andriyovich". Nikolai, fugiu com o irmão e a cunhada. O irmão decidiu ir para Crimeia e daí para a Rússia, onde tem um filho. "Foi uma opção dele, aliás há várias pessoas a irem de Mariupol para Rússia, em direção a Rostov-on-Don, outros para Donetsk. É muito mais perigoso vir para Ucrânia".

Nikolai esteve a viver vários dias num esconderijo subterrâneo. "Mas quando saí era só corpos queimados por todo lado, não podia ficar ali". Procurou um autocarro para sair de algum modo. "Parti de Mariupol porque perdi a casa, só tenho esta roupa. Veja o meu casaco está tão sujo, nunca ando sujo".

O filho de Nikolai, em Odessa, e outros amigos de Mariupol conseguiram que as esposas e filhos saíssem da cidade, e algumas já estão noutros países da Europa. Ruslan diz-lhe que é do Donbass, e que agora mora em Slavyanka. "Também perdi a casa em 2014 no início da guerra em Donetsk. Agora saí porque acho que a guerra na frente leste se vai intensificar". Diz estar farto. "Esta guerra está a tirar-me a juventude e a vida. Estava a estudar para ser professor na universidade, e agora sou um condutor".

Não está revoltado mas tem consciência de que a guerra lhe trocou as voltas à vida e agora uma vez mais, é obrigado a largar tudo, outra vez com receio de voltar a perder tudo. "Mariupol era tão bonita, tinham arranjado tudo há pouco tempo. Agora já nem parece uma cidade", conta Nikolai como se quisesse confortar Ruslan, e os dois se pudessem aconchegar numa só dor, que é a dor também dum país mergulhado na destruição e na incerteza.

Texto e foto
do enviado
especial à Ucrânia

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