"Enquanto crescia nos Estados Unidos sentia-me como se fosse um espião"
Ganhou o prémio Pulitzer em 2016 com O Simpatizante, livro editado em Portugal pela Elsinore e que se inspira na experiência familiar de refugiados vietnamitas que refizeram a vida na América. Viet Thanh Nguyen foi o convidado de maio do Meet the Author, ciclo com escritores americanos promovido pela FLAD e conversou em Lisboa com o DN sobre como é viver entre duas culturas nos Estados Unidos.
Lembra-se da visita de Bill Clinton ao Vietname em 2000, 25 anos depois do fim da guerra? A perspetiva foi a de que era o fim de um ciclo?
Penso que a relação dos Estados Unidos com o Vietname é muito complicada. O facto de Bill Clinton, e mais tarde Barack Obama, visitarem o país indica algumas das suas complexidades, porque Clinton e Obama eram ambos contra a guerra no Vietname, portanto as viagens assinalam algumas coisas diferentes. Uma, é que, obviamente, ambos os países querem ter relações económicas e políticas um com o outro, o que é muito irónico dada a guerra terrível que foi travada. Na minha perspetiva, os negócios e o restabelecimento das relações entre o Vietname e os Estados Unidos significam que aquela guerra nunca deveria ter sido travada, para começar. Isso diz muito sobre a política americana e as suas intervenções militares e aquilo que estamos a fazer agora. Se não tivéssemos travado a guerra com o Vietname, o país continuaria a ser um país comunista, nós continuaríamos a ser um país capitalista e três milhões de pessoas não teriam morrido. É o que eu penso sobre o assunto. Outra coisa é que tanto Clinton como Obama são democratas liberais e os vietnamitas gostam deles, mas estes democratas liberais que eram contra a guerra do Vietname têm sido muito bons a promover a guerra na atualidade. O restabelecimento crescente das relações com o Vietname está ligado com as ambições geopolíticas americanas em relação à China e portanto, são tudo dicotomias em que podemos pensar relativamente aos anos 1960 e 1970: pró-guerra e anti-guerra, pró-Vietname e anti-Vietname e que hoje em dia quase não têm significado relativamente à continuação de os Estados Unidos quererem ser militar, política e economicamente dominantes. Aliás, não importa se temos um presidente democrata ou republicano, nessa agenda os partidos estão unidos.
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Viu essas visitas como tendo mais que ver com o interesse nacional americano, uma vez que o Vietname é tradicionalmente anti-chinês, até houve uma guerra em 1979 apesar de serem os dois países comunistas? É possível dizer que hoje o povo vietnamita olha para os americanos de forma positiva, mesmo com a memória da guerra, ou, pelo menos, de forma mais positiva do que olha para os chineses?
É possível que sim. Os vietnamitas pensam na China como o seu vizinho permanente, com quem terão sempre de lidar, enquanto os americanos são temporários. A guerra que foi travada é agora um episódio histórico que já deixaram para trás e os Estados Unidos podem ser um parceiro estratégico. Penso que os vietnamitas estão sempre conscientes do seu vizinho permanente a norte e do que têm de fazer relativamente à China. Portanto, acho que em geral no que toca à América a posição dos vietnamitas é a de deixar o passado no passado, e acho que para os americanos isto é uma verdadeira surpresa, porque todos os cidadãos dos Estados Unidos que vão ao Vietname consideram que são bem recebidos e bem tratados, embora pudessem ser considerados como inimigos. Isso mostra que os vietnamitas são muito pragmáticos em relação às questões económicas, políticas e militares. Não digo que as relações entre os vietnamitas e as suas comunidades de refugiados no estrangeiro não sejam um pouco tensas, mas isso não é verdade atualmente no relacionamento entre o Vietname e os Estados Unidos.
Eles olham para os refugiados vietnamitas nos Estados Unidos como uma espécie de traidores?
Bom, oficialmente fomos considerados traidores durante várias décadas. Era esse o tipo de linguagem que era usado. Agora as coisas mudaram e as pessoas que viviam no estrangeiro são bem recebidas quando voltam, mas a verdade é que nunca se pode falar de política.
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Olham para os vietnamitas americanos como pessoas ricas?
Penso que isso foi assim durante várias décadas, mas não agora. Como o Vietname se tornou um país capitalista com um partido comunista, vê-se o desenvolvimento de uma classe bastante rica e também uma grande classe média. Assim, desde 1975 até ao início dos anos 2000, a perceção era de que os vietnamitas no estrangeiro, especialmente os americanos, eram ricos, mas à medida que as pessoas no Vietname foram vendo cada vez mais vietnamitas americanos, também viram alguma da verdade por trás do mito, perceberam que alguns eram ricos e outros nem tanto.
Atualmente há alguns vietnamitas que são mais ricos do que os compatriotas que vivem na América?
Alguns vietnamitas são muito mais ricos do que os que regressam. Essa é a verdade. Por exemplo, quando voltei pela primeira vez ao Vietname, em 2002, e fui a um clube noturno, as pessoas mais ricas que lá estavam eram os vietnamitas americanos. No mesmo clube noturno, 15 anos depois, eram os próprios vietnamitas que compravam as garrafas caras e exibiam o seu dinheiro. Portanto, isso mudou.
Tem sido um visitante regular do Vietname desde 2002?
Sim, entre 2002 e 2014 voltei lá muitas vezes. Fui para estudar a língua, fazer pesquisa, pensar sobre a minha ficção. Não voltei lá desde 2014 porque o meu romance, O Simpatizante, saiu em 2015 e o governo não permite que seja traduzido.
"Entre 2002 e 2014 voltei muitas vezes ao Vietname. Fui para estudar a língua, fazer pesquisa, pensar sobre a minha ficção. Não voltei lá desde 2014 porque o meu romance, O Simpatizante, saiu em 2015 e o governo não permite que seja traduzido."
Os seus livros não são permitidos no Vietname?
Apenas um é permitido, o Refugiados, os outros não são.
Falando sobre refugiados, a América é vista como um país de emigrantes. A ideia do "sonho americano" é diferente para um refugiado?
Acho que faz alguma diferença. Penso que os americanos compreendem a ideia de emigrantes, é claro que eles querem ir para o país pois existe toda a mitologia dos emigrantes nos Estados Unidos. Por outro lado, os refugiados confundem, porque os americanos têm medo dos refugiados, têm medo de se tornarem refugiados pois acham que os americanos não podem vir a ser refugiados devido à perceção negativa que têm do que são refugiados. No entanto, penso que os americanos tornam rapidamente os refugiados em emigrantes com acesso ao "sonho americano", porque se eles pensarem nos refugiados, donde eles vêm e a razão pela qual deixam os seus países, isso iria complicar o "sonho americano". Grande parte do que escrevo está focado em ligar os refugiados à guerra e os americanos querem manter estas duas coisas separadas, porque, de facto, a razão para termos vietnamitas nos Estados Unidos deve-se à guerra que os americanos travaram no Vietname. Os americanos compreendem mais ou menos isso, mas não entendem todas as implicações, ou seja, o facto de os refugiados serem sistémicos e não acontecerem por acidente, mas sim por políticas económicas e militares sistémicas. Temos uma grande população de refugiados nos Estados Unidos devido às guerras americanas em vários países e os americanos tendem a esquecer a ligação entre as duas coisas.
Recentemente temos o caso dos afegãos, por exemplo. Os americanos olham para estes afegãos que em 2021 foram para os Estados Unidos, para não serem mortos pelos talibãs, como refugiados ou como pessoas que foram leais ao país e que agora têm de as ajudar?
Na verdade, até fiquei surpreendido nesse momento por verificar que os americanos pareciam querer receber bem os refugiados afegãos. Eles compreenderam realmente que esses afegãos não seriam refugiados, eram pessoas que tinham sido a favor da presença dos Estados Unidos no Afeganistão. Não sei quanto tempo irá durar essa perceção. Penso que, ocasionalmente, os americanos são capazes de sentir culpa acerca das suas guerras, foi por isso que foi permitido aos vietnamitas, e agora aos afegãos, irem para os Estados Unidos, mas há muitos outros sítios que tiveram intervenção política e militar americana e as pessoas desses lugares não são bem-vindas. O "sonho americano" é muito poderoso para os americanos porque eles pensam que o seu país é o maior país do mundo e que os emigrantes e os refugiados são a prova disso. Grande parte do meu trabalho tem que ver com criticar essa ideia da excecionalidade americana, de que a América é o melhor país do mundo, porque os refugiados provam isso, mas também provam o contrário devido à origem de alguns estar nas guerras americanas.
É um vietnamita americano, mas é também um asiático-americano. A sociedade em geral tende a ver os asiático-americanos de forma muito positiva, como estudantes brilhantes, muito bem integrados, comparando, por exemplo, com os afro-americanos. É positivo para si ser um asiático-americano, os outros americanos olham para si de forma positiva?
Sim e não. Digo sim e não porque penso que os Estados Unidos foram construídos em cima de contradições. Por um lado, é um país de liberdade e democracia e oportunidades e, por outro lado, é um país construído em cima de colonização, genocídio, escravatura e guerra. Essas duas realidades existem em simultâneo e os afro-americanos e os asiático-americanos existem nestas contradições. Sim, quando pensamos nos asiático-americanos é verdade que em alguns momentos fomos muito bem tratados e de forma positiva, pelas razões que mencionou, mas isso é um estereótipo e todos os estereótipos são tanto positivos como negativos, não se pode ter o positivo sem o negativo. Assim, sempre que há uma crise, uma crise que as pessoas pensem que está relacionada com asiáticos, os asiático-americanos tornam-se perigosos de repente. Isso nunca mudou na história da América e vimo-lo com a covid, quando o presidente Donald Trump descreveu a covid como um vírus chinês que tinha chegado aos Estados Unidos e houve todo um levantamento contra os asiáticos no país. Isso sempre aconteceu na nossa história e aconteceu com a minha família. Nós fomos para os Estados Unidos em 1975, os meus pais abriram um negócio de mercearia em 1978, o que é suposto fazer-se quando se é um refugiado ou emigrante, e no fim da rua da nossa loja alguém pôs um letreiro na janela que dizia "Mais um americano que fica sem o seu negócio devido aos vietnamitas". Essa ideia sempre existiu nos Estados Unidos. É por isso que eu não confio na imagem positiva dos asiático-americanos, porque sei que da próxima vez que acontecer alguma coisa negativa que envolva asiáticos, vamos ver um levantamento e violência anti-asiáticos. Portanto, penso que existe muita preocupação entre os asiático-americanos sobre a questão entre os Estados Unidos e a China. Se alguma vez a guerra acontecesse, o sentimento anti-asiático na América aumentaria incrivelmente.
"Penso que existe muita preocupação entre os asiático-americanos sobre a questão entre os Estados Unidos e a China. Se alguma vez a guerra acontecesse, o sentimento anti-asiático na América aumentaria incrivelmente."
Em relação ao livro, O Simpatizante, que venceu o Pulitzer, há algum filme de Hollywood que possa ser comparável do ponto de vista vietnamita ou temos de ir mesmo para a literatura para descobrir um ponto de vista diferente do americano?
Só houve um, se se lembra de Oliver Stone ter feito o Platoon - Os Bravos do Pelotão e de também ter feito outro chamado Nascido a 4 de Julho com Tom Cruise, houve um terceiro que ele fez sobre a Guerra do Vietname chamado Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar, que foi baseado num livro autobiográfico de Le Ly Hayslip. Oliver Stone fez esse filme especificamente como a sua tentativa de apresentar o ponto de vista dos sul-vietnamitas ao estilo de Hollywood. O filme é de 1993 e é o único feito em Hollywood que mostra esse ponto de vista.
Existe algum projeto de fazer um filme com este seu livro?
Há uma série de televisão da HBO. Acabei agora as filmagens na Tailândia porque não tivemos autorizações do governo para filmar no Vietname e deverá ser exibida em 2024.
Vamos reconhecer o livro na série?
Sim. Eu escrevi o argumento e estive muitas vezes no local das filmagens. Os atores são na sua maioria vietnamitas - vietnamitas americanos, vietnamitas australianos e vietnamitas nacionais.
Consegue imaginar-se a escrever sobre outros temas que não o Vietname ou refugiados ou pensa que é a sua missão neste momento?
Na verdade, O Simpatizante é um romance sobre a guerra e os refugiados, mas também pode ser um romance sobre o Vietname e os Estados Unidos, mas devido à maneira como funciona a política nacional americana, alguém como eu só é visto como alguém que escreve sobre o Vietname ou vietnamitas americanos. Estou, de facto, a pensar que posso escrever sobre os Estados Unidos. Essa é uma parte da lógica racial do país, que é muito difícil de ultrapassar por uma pessoa como eu. Vai sair uma autobiografia com o título A Man of Two Faces: A Memoir, A History, A Memorial que é sobre o Vietname, os Estados Unidos, a guerra, os refugiados, a doença mental e todas essas coisas, mas reservo uma pequena parte do livro para dizer exatamente aquilo que penso, que é também um livro sobre os Estados Unidos como um todo. Agora, os Estados Unidos como um todo, também é sobre guerra, refugiados, colonização, etc. Não se pode separar essas coisas do ser-se americano. Quando falamos sobre estas coisas parece que estamos a falar apenas da nossa experiência pessoal, por isso resisto à pergunta de se vou escrever sobre outro tema qualquer, porque penso que aquilo sobre que escrevo também é parte da cultura e da história americanas.
Não é justo dizer que O Simpatizante é um livro autobiográfico? É inspirado por aquilo que sabe sobre o Vietname, sobre os vietnamitas na América, mas não autobiográfico?
Não é autobiográfico no sentido em que quase nada daquelas coisas aconteceram comigo, mas criei um personagem em O Simpatizante, cujas origens, cujos sentimentos vêm de mim, porque enquanto crescia nos Estados Unidos sentia-me como se fosse um espião. Quando saía do meu lar vietnamita e ia para o resto da sociedade, sentia-me como um espião vietnamita a espiar os americanos, mas em casa dos meus pais sentia-me como um espião americano a espiar vietnamitas. Portanto, peguei nesse sentimento e transmiti-o aos meus personagens. Eu nunca quis escrever uma autobiografia, por isso a única maneira de a escrever foi fingir que eu era o meu personagem a escrever sobre mim. Portanto, para mim, há aí uma circularidade agradável.

O Simpatizante
Viet Thanh Nguyen
Elsinore
448 páginas

Refugiados
Viet Thanh Nguyen
Elsinore
224 páginas

O Comprometido
Viet Thanh Nguyen
Elsinore
432 páginas
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