O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, ao receber o primeiro-ministro indiano, disse que se fez “história”. Mais tarde, no X, também Narendra Modi rotulou a iniciativa de “histórica”. Ninguém pode acusá-los de exagerar: foi a primeira visita de um líder indiano à Ucrânia. Do ponto de vista de Nova Deli, a viagem a Varsóvia e Kiev tinha um duplo objetivo e marca também uma inflexão na sua política externa, norteada pelo conceito de “autonomia estratégica”, e na qual nutriu relações com a União Soviética e depois com a Rússia -- mas nunca com a Ucrânia. A rutura com o passado, por parte da Índia, teve um duplo objetivo: remendar as relações com a Ucrânia, assim como reatar as relações com a Europa central e de leste, e por extensão reposicionar-se ante os Estados Unidos; e emergir como um possível mediador entre Kiev e Moscovo. Não sendo de esperar resultados imediatos para lá dos acordos bilaterais assinados, o encontro entre o ucraniano e o indiano, iniciado com um abraço, teve o condão de deixar para segundo plano a manifestação de afeto entre Modi e Vladimir Putin no dia em que as forças russas atingiram o hospital pediátrico de Kiev com um míssil, matando cerca de 30 pessoas. “Uma enorme deceção e um golpe devastador para os esforços de paz ver o líder da maior democracia do mundo abraçar o criminoso mais sanguinário do mundo em Moscovo num dia como este”, foi como Zelensky reagiu ao amplexo indo-russo. Não por acaso, o início da visita deu-se numa exposição comemorativa das crianças mortas na guerra iniciada pela Rússia. “Apercebi-me de que a primeira vítima da guerra são, de facto, as crianças inocentes. E isso é verdadeiramente comovente”, disse Modi. Alvo de críticas pela sua posição ambivalente sobre a invasão russa -- a Índia absteve-se de condenar a Rússia em todas as resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas e não só não aderiu às sanções económicas como se aproveitou destas para adquirir petróleo russo a preço de ocasião --, a diplomacia indiana defende-se lembrando que o seu líder criticou em público Putin pela guerra e advogou a paz. “Mantivemo-nos afastados da guerra com grande convicção. Isto não significa que tenhamos ficado indiferentes”, disse Modi ao lado de Zelensky. “Não fomos neutros desde o primeiro dia, tomámos um partido e defendemos firmemente a paz”, continuou. O primeiro-ministro indiano também prometeu que o seu país prestará apoio humanitário ao conflito entre a Ucrânia e a Rússia. “A Índia estará sempre ao vosso lado e fará tudo o que estiver ao seu alcance para vos apoiar”, assegurou. Antes do encontro com Zelensky, Modi tinha explicitado que trazia uma mensagem de paz em nome dos habitantes do país mais populoso do mundo e de 120 países do chamado sul global baseada na soberania e integridade territorial da Ucrânia. “Em tudo o que se relaciona com a paz, a Índia está disposta a dar um contributo ativo e, pessoalmente, como amigo, teria todo o gosto em desempenhar um papel na resolução pacífica da guerra.” Mikhailo Podolyak, conselheiro de Zelensky, considerou a visita de Modi importante porque a Índia “tem realmente uma certa influência” sobre a Rússia. As trocas comerciais bilaterais, 3 mil milhões de euros de volume em 2021-2022, foram duramente atingidas com a guerra, caindo para 635 milhões em 2023-2024, e há interesse mútuo em mudar a página. Os dois líderes assinaram acordos nos domínio dos cuidados de saúde, da cooperação na área agrícola, das relações humanitárias e da cultura e foi redigida uma declaração conjunta com vista ao desenvolvimento da parceria estratégica, do comércio e da cooperação técnico-militar. Ao decidir-se pelo aprofundamento das relações com a Ucrânia, Nova Deli dá também um importante sinal aos Estados Unidos, seu parceiro informal de segurança no Indo-Pacífico em conjunto com a Austrália e o Japão. A Índia é o maior importador de armamento e o maior cliente da Rússia, mas a guerra na Ucrânia retira a Moscovo a capacidade de assegurar material, por um lado e, por outro, Nova Deli não quer furar as sanções relacionadas com o armamento, pelo que tem vindo a diversificar os fornecedores. E como a guerra isolou o regime de Putin, aproximando-o da China, rival da Índia, bem como em menor medida do Paquistão, outro vizinho com que Nova Deli mantém relações pouco amistosas, Modi emerge a um tempo como líder de uma terceira via, sem romper com Moscovo e em aproximação a Kiev e ao Ocidente. cesar.avo@dn.pt