“Deslocámo-nos para um sistema onde o caos é hegemónico"
A aliança entre os magnatas das novas tecnologias e os populistas coloca a humanidade à “hora dos predadores”. É a tempestade perfeita?
Sim, de certa forma, sim, porque é algo muito novo que se alia a algo muito antigo. Estes predadores, no fundo, são figuras bastante clássicas da história política. São predadores bastante desinibidos, que usam a força, que estão na ofensiva, que não respeitam nenhuma regra. Mas a novidade é esta infraestrutura que os suporta, a da tecnologia, que é ela própria uma infraestrutura que também prioriza a ofensiva, a agressão, o extremo. E assim, estas figuras da tech, que até agora se mantiveram cautelosas, hoje têm um poder tal que podem prever explicitamente uma mudança de regime, de forma bastante simples. E daí terem uma aliança explícita com os políticos mais extremistas e predadores.
Podemos dizer que Trump e Musk foram o exemplo perfeito de aliança entre um líder populista e um magnata da tecnologia… Mas a lua-de-mel parece já ter terminado, como o Giuliano antecipava. Nada mudou?
Nada mudou. Era previsível. Até previ isso um pouco no livro. E acho que não foi difícil de prever. Mas isso não muda nada, porque esta dupla tornou visível pela primeira vez esta aliança quase igualitária entre a política e a tecnologia económica, entre o velho predador e o novo conquistador. E, portanto, o facto de estarem a discutir, na realidade, não significa nada. Porque, em primeiro lugar, uma das razões pelas quais estão a discutir é que Trump tem outros conquistadores da tecnologia que estão ao seu lado no governo e dos quais depende uma parte significativa desse poder. E, de qualquer forma, é um processo. No livro, tento contar um pouco sobre esta ascensão ao poder político da tecnologia, da qual o casal Musk-Trump representa um momento. Mas é apenas um momento. É um processo muito mais longo, que começou há 30 anos, na minha opinião, e que está destinado a continuar a fortalecer-se nos próximos anos.
Se a tudo isto juntarmos a inteligência artificial que veio trazer uma arma muito poderosa, acessível a todos e sem grande regulação, é um pouco - e aqui estou a exagerar - como dar uma bomba atómica aos cidadãos comuns na esperança de que a utilizem para o bem?
Creio que há uma componente desse tipo. Estamos potencialmente a disponibilizar uma arma de destruição maciça para todos. Sabe, Jake Sullivan, antigo conselheiro de segurança nacional de Joe Biden, à saída da Casa Branca disse que nos Estados Unidos existem atualmente quatro a cinco Projetos Manhattan, projetos de investigação tão importantes para o futuro da humanidade, como o Projeto Manhattan para o desenvolvimento de armas atómicas, a diferença é que não há controlo público. Esse é o grande problema, a grande questão que nos devemos colocar. Não devemos ser luditas, mas precisamos realmente de questionar a governação tecnológica em termos de poder e democracia, e não simplesmente em termos empresariais, como se se tratasse apenas de mais uma empresa.
A reeleição de Donald Trump foi o ponto de viragem que pôs fim à ideia que tínhamos de que a sua primeira presidência, tal como a chegada ao poder de Bolsonaro no Brasil ou o Brexit no Reino Unido tinham sido acidentes de percurso que não iriam durar?
Sim, penso que foi um erro desde o início pensar que se tratava de acidentes de percurso, quando já era o anúncio de uma nova era que considero um pouco como a do caos hegemónico. Foi publicado em Portugal o meu pequeno livro Os Engenheiros do Caos e nessa altura, o caos era a arma dos insurgentes, dos rebeldes que atacavam o sistema de uma determinada forma. Mas hoje, penso que nos deslocámos para um sistema onde o caos é hegemónico e se torna o selo do poder, o símbolo e o instrumento do poder. E, portanto, sim, de certa forma, a reeleição de Trump é a revelação disso.
No seu livro, fala de várias figuras: o príncipe saudita Mohammed Bin Salman, o presidente de El Salvador, Naïb Boukele, Donald Trump, claro, mas também o presidente russo, Vladimir Putin. Os Bórgias do nosso tempo - é o Giuliano que os chamas assim -, tal Cesare Borgia, o homem que inspirou O Príncipe de Maquiavel, confiam no efeito de assombro que as suas ações provocam. Mas hoje, dominam o mundo. Estamos a entrar numa nova era?
Sim, eu acho que sim. Tal como no tempo de Maquiavel, na verdade, as pequenas repúblicas italianas do Renascimento foram varridas por uma invasão vinda de França, mas também por uma nova tecnologia, que era a artilharia pesada, que permitia derrubar muralhas, destruir as defesas das cidades e que, portanto, premiava a agressão, o ataque. Hoje, estamos mais uma vez numa era em que, com a mudança para o digital, para a tecnologia digital, as nossas democracias e as nossas vidas estão, na realidade, a migrar para essa tecnologia. Como não impusemos regras a este sector, é um ambiente desregrado, sem lei. Ou onde a lei é feita pelos mais fortes e pelos senhores da guerra que são, por isso, acima de tudo, os donos das plataformas digitais, e onde a agressividade, o ataque, o extremismo são o prémio. E assim, estas personagens predadoras que lembram um pouco César Bórgia, que foi o modelo de Maquiavel, estão de volta às notícias e a tornar-se novamente dominantes.
A Hora dos Predadores
Giuliano da Empoli
Gradiva
128 páginas
São personagens muito diferentes, mas todos partilham algumas características comuns…
Sim, todos eles têm essas características. Acho que o que têm em comum é que todos protagonizam um exercício desinibido do poder, incluindo esta característica irrefletida. Ou seja, não se trata simplesmente de usar o poder, mas sim de o fazer de uma forma verdadeiramente surpreendente. Qualquer tecnocrata pode estudar, refletir, analisar uma decisão, enquanto o verdadeiro ato de poder é quebrar todas as regras. E todos o fazem. E fazem-no porque têm o apoio de pessoas que pensam que, de qualquer forma, o sistema está paralisado, o sistema está podre, dentro do sistema nada pode ser feito, nada muda, há sempre elites que dominam e pessoas que sofrem. E ter alguém que vem e quebra isto e diz: “Sim, tenho de quebrar as regras, mas é a única forma de cuidar dos teus interesses e mudar as coisas”, é uma mensagem muito poderosa.
Se estamos agora na era dos predadores, a culpa também é do que o Giuliano designa como o “partido dos advogados”, os democratas nos EUA, que não regulamentou as plataformas onde a política se movimentava. Não compreenderam que o perigo vinha dali e que se iria virar contra eles?
Acho que não perceberam. O meu livro, como sabe, é composto por muitas cenas, e tentei lidar com a realidade, uma vez que é bastante inacreditável, um pouco como se fosse ficção - com cenas, com personagens, com pormenores, com uma narrativa na primeira pessoa, mesmo que tudo seja verdade. Entre estas cenas, aliás, para mim, o grande clássico é mesmo o encontro entre o jovem da tech, hoje um pouco menos jovem, e o presidente, o primeiro-ministro, quem quer que seja, o líder político, que gostaria de participar, que gostaria de ser contemporâneo, mas que está numa posição de submissão já quase cultural e intelectual, também material, e que acaba sempre por implorar por uma selfie no final do encontro. Esse é o único resultado que ele obtém com isso. Enquanto ele se deveria ter questionado se entendia que não havia apenas um novo modelo de negócio, mas um modelo diferente de sociedade, de governação, de tomada de decisões, e que tinha de ser, e tem de ser, compatibilizado com o funcionamento da nossa democracia. Se assim não for, acontecerá o contrário. Se assim não for, as regras - ou não regras - do espaço digital também dominarão a vida das nossas democracias. Devíamos fazer o contrário. Deveria ser a democracia a colonizar a tecnologia digital e não a tecnologia digital a colonizar a democracia, digamos assim.
Há um momento no livro em que diz que “o wokismo é o combustível perfeito para alimentar o caos dos Borgianos”...
Sim, digamos que a máquina digital e a máquina que alimenta os borgianos é uma máquina… é a grande máquina, digamos, o funcionamento normal das plataformas da internet, de toda esta imensa máquina publicitária, para transmitir as mensagens mais extremas, simplesmente. Podemos dizer que com Elon Musk há uma agenda ideológica, mas, fora isso, em geral, as plataforma digitais não têm realmente uma agenda ideológica. Na verdade, não são nem de esquerda nem de direita. Mas todas defendem o máximo de entusiasmo, de empenho e, por conseguinte, a ascensão dos extremos. Embora, claro, a defesa dos direitos das minorias seja, em si mesmo, algo muito bonito, e acredito que podemos ser amplamente a favor disso, a máquina apenas promove as partes mais extremas deste discurso. E depois, é verdade que existem indivíduos, digamos, que são ideais como combustível para toda esta máquina, que têm sido intensamente explorados pelos predadores a todos os níveis.
Acabaram por levar os eleitores para os braços de predadores, por assim dizer. Mesmo sem querer?
Sim, com certeza.
Para terminar, falámos um pouco sobre o futuro e os desafios que nos esperam. Como reagir a esta nova era que está a começar? Como diz no final do livro, a luta continua?
Penso que o importante é tentar retomar o controlo da nossa democracia e das nossas vidas, de certa forma. Porque é preciso parar de acreditar que estamos inevitavelmente destinados a cair numa era em que não temos controlo sobre a tecnologia e o nosso destino. Na história da humanidade, as mesmas tecnologias produziram efeitos diferentes consoante as culturas e os locais onde foram implementadas. Se considerarmos a imprensa, a invenção da imprensa, teve efeitos sociais, políticos e económicos muito diferentes na China, na Europa do Renascimento ou no mundo islâmico. Estes são três efeitos completamente diferentes da mesma tecnologia. E penso que hoje, mais uma vez, devemos tentar impor isso, ou seja, nós, na Europa em particular, devemos ser capazes de impor os nossos valores e o funcionamento das nossas sociedades, como desejamo, não só preservá-lo, mas também desenvolvê-lo, se possível. Devemos impor isso à tecnologia de uma determinada forma. Portanto, não é fácil porque também existe esta retórica que diz que não podemos fazer nada, que está a cair sobre as nossas cabeças, que não percebemos nada disto e, portanto, não podemos fazer nada. Hoje, existe uma política americana explícita que é muito agressiva sobre este assunto e que diz que, se se regula a tecnologia, é-se inimigo do atual governo americano. Isso está a tornar-se muito explícito. Mas, também aqui, trata-se de ter a coragem e a inteligência política para o fazer.