Ter um aeroporto internacional perto de uma zona residencial, como acontece com o Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, é uma "receita para que aconteça uma tragédia de dimensões bíblicas". Quem o diz é José Correia Guedes, comandante da TAP na reforma, em reação ao acidente com um Boeing 787-8 Dreamliner que, esta quarta-feira, dia 12 de junho, fez mais de 250 mortos ao despenhar-se minutos após descolar do Aeroporto de Ahmedabad, na Índia.De acordo com o piloto agora aposentado, o acidente — já de si grave — "é pior devido à localização do aeroporto", que ficava perto de uma zona habitacional. As aeronaves deste tipo estão normalmente "carregadas com toneladas de combustível", o que aumenta a hipótese de uma ignição considerável em caso de incidentes.Depois de ter descolado em direção ao Aeroporto de Gatwick, no Reino Unido, o Boeing da Air India despenhou-se num hostel que albergava estudantes de medicina. Horas após o acidente, o ministério dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, comunicou ter falado com o seu homólogo indiano, apresentando condolências. Já a embaixada em Portgual disse estar “chocada e consternada” com o acidente e apresentou condolências às famílias dos passageiros com nacionalidade portuguesa..Especialistas americanos a caminho da Índia. Um sobrevivente da tragédia aérea: "Ouvi um grande estrondo".Ao DN, José Correia Guedes relembra que "há anos" que defende uma solução para a Portela, que espera que seja "acelerada". Até porque "basta acontecer uma vez um acidente deste tipo para que se tenha uma tragédia. E com tanto combustível, como se viu no caso das Torres Gémeas, a ignição é de tal ordem que os edifícios até se desintegram".Ainda sem uma causa preliminar para a queda do avião (onde seguiam sete indivíduos com nacionalidade portuguesa), "tudo o que se possa dizer nesta fase é pura especulação". Contudo, com base nas imagens que já forma divulgadas, há algumas possibilidades que podem justificar o incidente."O avião afunda-se de forma gradual", não sendo um movimento repentino. Isto significa que: "Ou houve uma falha de energia crítica, que motivou uma perda de potência generalizada, ou colidiu com aves [o chamado bird strike] semelhante ao que aconteceu em 2009 no Rio Hudson, mas nesse caso a aeronave ia mais alta [980 metros em relação ao solo], o que permitiu evitar a tragédia ao pousar na água [nesse caso, todos os 155 ocupantes sobreviveram]."Mas há ainda outra possibilidade, ainda que Correia Guedes reforce que seja um palpite.Nas imagens que surgiram após o desastre, o Boeing 787-8 aparece com o trem de aterragem aberto, algo que não devia acontecer, numa fase "crítica" do voo, em que qualquer erro pode ser fatal."Uma das primeiras coisas que se faz quando se descola é recolher o trem, porque causa resistência ao ar", explica o antigo comandante da TAP, acrescentando: "Seria um erro humano muito grave, mas o piloto pode ter errado e, em vez de recolher o trem, pode ter recolhido os flaps [dispositivos sustentadores nas asas que aumentam a sustentação e o arrasto ou a resistência da aeronave em relação ao ar]. Mas isto é pura especulação."Uma luz sobre o que aconteceu pode, no entanto, ser trazida pela inspeção às caixas negras da aeronave. "São um recurso fundamental neste caso. São desenhadas para aguentar tudo, desde temperaturas altas a impactos" e, uma vez recuperadas, podem conter explicações para o que aconteceu em concreto. Há ainda uma tecnologia, chamada ADSB, que monitoriza as aeronaves via satélite. Mas a utilização dessa ferramenta está dependente do avião, que pode não a ter instalada.A investigação às causas do acidente arrancará agora e a Boeing "será convidada" a participar, bem como o Conselho Nacional de Segurança nos Transportes dos Estados Unidos, que já anunciou que vai estar no terreno para acompanhar o trabalho. "Daqui a um mês, haverá um relatório preliminar, que não terá quaisquer conclusões. Dentro de um ano teremos então um relatório final. Mas este acidente é muito complexo e não creio que vá haver conclusões tão cedo", confessa José Correia Guedes.Oito mil horas de voo são "mais do que suficientes" para este tipo de viagemAinda sem dados conhecidos sobre a tripulação, é já sabido que o piloto que operava o voo seria experiente, tendo à volta de oito mil horas dentro do cockpit."É mais do que suficiente" para operar este tipo de voo transcontinental, garante José Correia Guedes, dando depois um exemplo: "Veja-se o caso de Tenerife [em março de 1977, dois aviões colidiram em pista, resultando na morte de 583 pessoas]. O piloto que estava aos comandos era experiente, era chefe de pilotos, formador e tudo, e mesmo assim aconteceu a tragédia que aconteceu..."Também a própria série dos Boeing 787 Dreamliner não tinha, até agora, registo de quaisquer incidentes. "Em 15 anos e quase 5 milhões de voos, a Boeing nunca tinha tido um problema, nem tinha perdido nenhum destes aviões, que são muito modernos e que têm toda a tecnologia", explica o também comentador televisivo..O mesmo não pode ser dito, contudo, da Air India, cujos registos de segurança "não são os melhores". Ainda assim, "isso não quer dizer nada", frisa o antigo piloto.Com mais de 250 pessoas mortas, este é já o acidente aéreo mais mortífero desde o voo MH17, da Malaysia Airlines, que foi abatido de forma acidental em 2014 por forças russas, quando sobrevoava a Ucrânia (fazia a ligação Amesterdão-Kuala Lumpur). Nessa ocasião morreram todos os 298 ocupantes do avião.Comprada em 2022 pelo Grupo Tata, a Air India teve alguns acidentes nos últimos anos. Em 2020, pelo menos 18 pessoas morreram após uma das suas aeronaves ter 'deslizado' para fora da pista após aterrar; dois anos antes, um Boeing 737 ficou danificado depois de embater num muro durante a descolagem. Em 2010, uma outra aeronave da companhia não conseguiu parar na pista após aterrar, vitimando 158 pessoas..Acidente aéreo na Índia entra para os 10 mais mortíferos de sempre. Recorde as maiores tragédias da aviação