A desistência de Joe Biden e a candidatura de Kamala Harris, vieram mudar a dinâmica destas Presidenciais americanas. Será suficiente para os democratas vencerem? Pelo menos parece ter destabilizado Trump…Eu chamo a estas semanas as três semanas sísmicas da eleição americana. Porque neste tempo houve o comício em que Trump foi baleado, houve a desistência de Biden, houve a candidatura de Kamala, e de J.D. Vance [para vice de Trump], e agora, parece que [amanhã] vamos conhecer o vice-presidente de Kamala. Ninguém imaginava…, eu pessoalmente, quando as pessoas me perguntavam há seis meses - visto que eu tinha sempre feito a previsão certa, inclusive com Trump, inclusive com Obama - eu dizia que nenhum dos dois [Biden e Trump] ia chegar à meta. E ainda é possível..Ainda acredita que Trump também não chega às Presidenciais? Ainda é possível que Trump não chegue lá. E quase tive razão com o tiro na Pensilvânia. Mas é possível ainda, porque Trump é imprevisível e, portanto, pode haver um cenário em que ele desiste, com um acordo para não ir para a prisão. Pode ser um coup de théâtre. Mas a pergunta era se esta onda é suficiente. E a onda é suficiente se for regular, como nas ondas do surf. O que surpreendeu todos foi a organização das mulheres - afro-americanas, indianas, brancas, todas - que conseguiram mudar a marca de Kamala em três horas. Foi uma equipa só de mulheres. Depois fizeram um Zoom com 140 mil, 160 mil mulheres..Esse foi o das cat ladies? Não foi o dos cat ladies. Mas também houve a reação das cat ladies [em resposta às críticas de J.D. Vance às “childless cat ladies” [as “senhoras dos gatos sem filhos” democratas]. Portanto, houve essa reação, bem como o facto de as mulheres afro-americanas terem feito um desafio às mulheres brancas para fazerem um Zoom, também houve os “Homens por Kamala”, e depois começaram os fundraisers a operar. Portanto, depende se a onda consegue manter-se, porque são três meses até às eleições e pode acontecer muita coisa. Agora, eu acho que estes três meses estão bastante bem delineados. Biden vai tratar do legado, da sua herança. Já começou. Com a troca de reféns [com a Rússia] mostrou quanto é importante trabalhar com os Aliados. É muito interessante, porque conseguiu mobilizar a Eslovénia, Noruega, Turquia e muitas outras nações e, sobretudo, a Alemanha, que era muito reticente. Ele conseguiu resolver um quebra-cabeças. Portanto, Biden vai tratar da herança - vai tratar da economia, vai tratar da política externa, vai tratar das grandes linhas -, enquanto Kamala faz a campanha eleitoral. Essa é a divisão de tarefas. O problema dos republicanos é que não sabem onde atacar. Atacar Biden já não vale a pena. Para atacar Kamala, têm um problema. Viu-se há dias, com Trump a questionar se afinal ela é afro-americana ou é indiana? Isto é uma espécie de código para dizer que Kamala não é branca. Portanto, a segunda leitura de todas estas questões é o tema racial. Sempre foi ao longo da História dos Estados Unidos. Trump olha para duas coisas, ele olha para as sondagens e olha para o que pode ganhar com uma situação. E até já desmentiu o seu vice-presidente, disse que este não é assim tão importante. Uma atitude destas, tão rápida, da parte de um candidato à Presidência, a puxar para baixo o seu vice, eu nunca vi. É uma coisa sem precedentes para mim..Acha que ele já se arrependeu de ter escolhido J.D. Vance. É demasiado parecido com ele? É parecido, é uma espécie de versão 2.0 de Trump. Ele pode arrepender-se, mas vai sempre ter este problema com o vice-presidente, sempre o teve com [Mike] Pence. Mas o que eu vi, há pouco tempo, quando estive nos EUA, foi a retórica de Trump e como os americanos sabem muito bem o que ele acha importante. Um tema é a imigração. Ele faz uma equação: imigração é igual a crime. Mas esta é uma equação que não funciona, porque as pessoas sabem que os imigrantes costumam ser mais trabalhadores do que os outros. Nos EUA, o mais provável é que os brancos, em 2044, já sejam uma minoria. E, portanto, o medo dessa onda de diminuição das pessoas de origem branca é uma coisa que atravessa todas as considerações de Trump sobre o futuro. Trump tenta consolidar o apoio de uma parte da população que tem medo da chegada não só dos afro-americanos, mas também dos indianos. Nos últimos 20 anos, quatro milhões de imigrantes da Índia chegaram aos EUA. Eles dominam entre os engenheiros da Silicon Valley. E é interessante que, ganhe um candidato ou o outro, haverá sempre uma componente indiana, porque Kamala é de origem indiana e jamaicana e J.D. Vance é casado com uma indiana. Muitas das empresas da Silicon Valley, a Microsoft e outras, têm CEO de origem indiana. O que é que acontece? A nível das escolas, até dos liceus, os estudantes indianos trabalham muito mais diligentemente do que os brancos. E têm resultados académicos ótimos. É o caso também da mulher do J.D. Vance, que estudou em Yale, trabalhou para dois juízes do Supremo Tribunal, trabalhou num grande gabinete de advogados. Mas Trump tem de instigar esse medo das pessoas de cor nos americanos. Nos comícios, ele tem pouquíssimos afro-americanos. E quando foi a uma conferência de jornalistas afro-americanos, escapou às perguntas. Portanto, a questão dos imigrantes, a questão da cor, a questão racial, o medo da diminuição dos brancos, é a primeira coisa que os americanos sabem que faz parte do discurso de Trump, que diz que quer regular a entrada dos imigrantes. A segunda coisa é a economia. E aí ele garante que os americanos estavam muito bem durante a sua Presidência, mas não é verdade, porque houve o período da covid e a economia foi para baixo. O que aconteceu depois e durante a Presidência Biden foi que muitos americanos utilizaram os fundos que tinham amealhado durante a Presidência Trump. Durante a covid, Trump mandou dois cheques aos americanos, uma espécie de subsídio. Esse dinheiro entrou na economia, as pessoas gastaram mais e, explicado de maneira simples, houve um excesso de dinheiro, o que causou uma inflação muito grande. Tanto que muitos americanos sentem que os preços nos supermercados aumentaram muito. Agora, a inflação está a diminuir bastante, mas o americano olha para duas coisas: o preço no supermercado e o preço da gasolina. Só essas duas coisas é que lhes interessa. Se essas duas coisas estão altas, se o galão de gasolina vai além dos três dólares, o americano começa a ficar chateado. Mas a economia continuou a funcionar, apesar da inflação. Nos EUA, durante a carreira laboral, o empregado deduz 10% do ordenado, que põe num fundo, e a empresa deduz 5%. Portanto, esses 15% ficam nesse fundo até a pessoa se reformar ou até comprar uma casa, ou algo assim importante. E ficam ali bloqueados, sem pagar impostos. Esses fundos estão cheios de dinheiro. Portanto, a ilusão de que a vida está mais difícil, é verdade, mas há economias, e a Bolsa nunca esteve tão alta. O terceiro tema de Trump são as forever wars. O desafio de Trump é dizer: “Durante a minha Presidência não haverá guerras.” Por isso faz-se amigo do Putin. Essas três coisas, apesar de todo o show que ele faz, as pessoas percebem que são a moral de Trump. E a pergunta é: Kamala, com essa nova onda, é capaz de mudar o discurso? É possível. Mas só vamos saber isso, eu acho, nos últimos dias da campanha. Mas nos Estados Unidos pode votar-se com muita antecipação, pode-se votar até um mês antes das eleições..Portanto, a decisão pode não ser só nos últimos dias, há quem já tenha votado bastante antes. Exatamente, essa é uma coisa que os europeus talvez não compreendam, é que em alguns Estados pode-se votar muito cedo. E os próprios republicanos, sabendo que é um perigo, antes pediam aos eleitores para só votarem no último dia, no dia da eleição. Agora mudaram de ideias, porque viram que era uma estratégia que podia ser um boomerang. As ideias de Kamala vão ser, pouco a pouco, expressas. Por enquanto, ela está a apresentar-se ao público, e, para uma campanha organizada no último minuto, está com boa pinta, muito melhor do que um Biden cansado e velho..Já falou, há pouco, do vice de Kamala e de como amanhã este deverá ser apresentado… Sobre o vice, parece que será um homem mais jovem e um homem de um Estado-chave. Ora há dois Estados-chave e dois homens a estar atentos. Um é Mark Kelly, que foi astronauta, que passou 25 anos na Marinha, que é uma espécie de figura nacional, casado com [a ex-congressista Gabrielle Gif- fords], que foi ferida com uma arma de fogo. O segundo nome que está em grande subida e que tem o apoio de Michael Bloomberg, que foi presidente da Câmara de Nova Iorque, é Josh Shapiro, governador da Pensilvânia. Este é um Estado-chave que vale 19 votos [no Colégio Eleitoral], é o Estado onde Trump foi ferido, é o Estado onde houve uma grande mudança na indústria, o Estado que ele está a transformar. Shapiro é muito eficiente, transmite mensagens claras, reconstruiu o Estado, trabalhou com os republicanos e é muito ativo. Outra coisa interessante é que ele é judeu, como o marido de Kamala. Se for Shapiro o vice, haverá uma grande discussão sobre religião nos próximos três meses. A discussão poderá mudar-se para uma questão religiosa mais do que a questão racial. Todos os analistas dizem que não é possível ter uma afro-americana ou um judeu [no Ticket]. Mas Kamala é casada com um judeu e, portanto, acho que os americanos já digeriram o facto de terem uma vice-presidente com uma costela hebraica. Última coisa: amanhã, a apresentação vai ser num comício na Pensilvânia. Portanto, ficarei muito surpreendido se não for Shapiro a escolha..PAULO SPRANGER/Global Imagens.Como disse, o marido de Kamala é judeu, o seu vice talvez também seja, mas uma das diferenças entre Kamala e Biden é a posição sobre o conflito israelo-palestiniano. Apesar de ter reafirmado o apoio a Israel no encontro que teve com Benjamin Netanyahu, Kamala é mais crítica da atuação de Israel e mais veemente na denúncia do sofrimento dos palestinianos. Isso pode ter também um efeito positivo para os democratas nestas eleições, sobretudo depois dos protestos pró-Palestina que houve nas universidades? Depende muito do que acontecer no exterior, acho eu. Porque nestas três semanas sísmicas, não podemos esquecer que houve dois assassínios [de um líder do Hezbol- lah e de um líder do Hamas]. E sabemos que, quando há um momento de tensão como este, não é de excluir que alguns grupos islâmicos tomem americanos como alvo. Não podemos também esquecer, e fala-se disso regularmente, que os reféns [em Gaza], se ainda estão vivos, incluem vários americanos, pessoas com dois passaportes, israelita e americano. Portanto, a política americana em relação a Israel não vai mudar no que diz respeito ao apoio. Mesmo quando houve a transição de Trump para Biden, a Embaixada dos EUA continuou em Jerusalém, por exemplo. Uma das causas do ataque de 7 de outubro é que se estava na véspera de um acordo mais amplo com a Arábia Saudita. A minha resposta, portanto, é que depende dos acontecimentos externos, mais do que dos internos..Muitos, na Europa, não escondem o receio de ver Trump voltar à Presidência. Se isso acontecer, é de esperar que ele faça mesmo aquilo que ameaça - desde sair da NATO até cortar na ajuda à Ucrânia? Ou, na Presidência, poderá ser menos radical, digamos assim? Bom, ele sempre foi menos radical do que se pronunciou. Não há dúvida de que ele sabe, como Biden sabe, que a América não pode ter uma guerra em três frentes: a Ucrânia, o Médio Oriente e a China. Não é possível sustentar três guerras, mesmo que o envolvimento dos EUA seja em medidas diferentes. É por isso que Trump e J.D. Vance são campeões do recuo no apoio à Ucrânia. Os europeus sabem muito bem que essa é uma possibilidade e o próprio Vance disse numa entrevista que a Europa não tem o desenvolvimento industrial para aumentar a sua Defesa. Os europeus precisam realmente investir e Trump colocou esse desafio ao reforçar o medo dos europeus. O que tanto poderá acontecer numa Presidência Trump, como numa Presidência dos democratas é um congelamento das fronteiras da Ucrânia, um pouco ao estilo das Coreias ou de Chipre. Ninguém ganha, o conflito é congelado. Acho que, seja um ou outro a vencer, estamos a caminhar para isso, porque os americanos não querem uma guerra em três frentes. Os europeus também se deram conta de que não querem que os filhos vão para a guerra - com exceção talvez dos países bálticos e da Polónia. A indústria da Defesa da Europa não está pronta para isso, então a única coisa a fazer é negociar. O problema é quanto e o que negociar. Esta é uma ameaça de Trump. A outra é o aumento das tarifas. O que ele não calcula, ou não quer calcular, é a consequência que isso teria sobre a inflação nos EUA. Os americanos estão habituados aos queijos franceses, ao vinho italiano, ao azeite espanhol e, se as tarifas subirem, isso vai causar inflação. Portanto, Trump pode defender estas medidas, mas no final ele vai olhar para a economia e vai ter de reconsiderar, dependendo também de quem ele trouxer para a sua equipa económica. Outra coisa importante na campanha de Trump, nos últimos dias, tem sido o papel das empresas tecnológicas e de Silicon Valley. Houve um apoio da parte de Silicon Valley a Trump bastante intenso, e sobretudo dos investidores em criptomoeda. No outro dia li um número impressionante e que vai provavelmente obrigar os democratas a reajustar um pouco a sua estratégia: dizia que 40 milhões de americanos têm investimentos em criptomoeda. E Trump já se pronunciou a favor, apesar de nem saber o que é ou como funciona. As pessoas não se dão conta da dimensão que este mundo tem. E o próprio Silicon Valley, através de um dos seus tycoons, está a dar apoio a J.D. Vance. É ele quem está a gerir toda aquela área para Trump. Portanto, o efeito de Silicon Valley, como se pronuncia, e como vai contribuir para a economia, é uma outra coisa a ter em conta..Seja qual for o próximo presidente, vai ter de liderar um país profundamente dividido. O Dennis já viu a América passar por tempos muito conturbados no passado e ultrapassá-los - o país é mais forte e resiliente do que o seu líder, seja ele qual for? Pergunta difícil. Porque a força da América é a descentralização. Os países europeus são muito centralizados, nos EUA há mais liberdade. Até em relação ao aborto, a solução dos republicanos é descentralizar, deixar cada Estado decidir por si próprio. Nesse caso é uma forma de lavar as mãos e de não garantir liberdade para as mulheres determinarem o destino do seu próprio corpo. Mas a grande salvação dos EUA é essa descentralização. Se conseguir continuar com essa descentralização, é possível que a América supere. Por essa razão, por um lado, e, por outro, por causa do Sistema Educativo, das universidades, e do sonho americano de poder realizar o sucesso na carreira. Essas duas coisas, descentralização e mobilidade das carreiras, são o que pode salvar a América de si mesma..No fundo, é o sonho americano... É o sonho americano, porque isso está muito enraizado. E, no fundo, todas as histórias dos candidatos, seja Trump que já tinha dinheiro, mas fez uma fortuna, seja Kamala, seja J.D. Vance, são todas histórias de sucesso americano. O facto de poder haver esse sonho, essa ambição, cria um país onde existe estabilidade e permite o progresso da própria nação. Quer o presidente seja Trump, Kamala ou qualquer outro, isto vai ficar..Só para terminar, o Dennis conhece muito bem Portugal há 60 anos. Que futuro antevê para as relações entre Portugal e os EUA? Eu posso dizer que, quando vivi aqui nos Anos 60, os americanos não sabiam o que era Portugal, nem sabiam que ficava na Europa. Hoje os americanos sabem muito bem o que é Portugal, tenho muitos amigos que já vieram a Portugal. E isso tem a ver com as próprias comunicações: os americanos deram-se conta de que é mais perto ir de Nova Iorque ou de Boston para Lisboa do que para a Califórnia. E esta proximidade criou laços muito fortes. Em segundo lugar, eu acho que a política externa portuguesa tem de tentar alargar o espetro para o Atlântico e tem de vender junto dos americanos as possibilidades que isso cria. Portugal tem também de vender melhor a sua abertura em relação ao mundo. Por exemplo, falámos há pouco de indianos. Se eu examinar isto de uma perspetiva puramente americana, eu diria a um português: “Vocês também têm indianos de sucesso como Kamala, têm António Costa.” Mas os portugueses não veem as coisas dessa forma, não veem António Costa como indiano. Os americanos veem que ele é de origem indiana. É preciso que Portugal mostre a sua experiência do mundo, a sua experiência africana também, essa multiculturalidade, que os americanos têm de reconhecer. Os americanos trabalham muito bem com os portugueses, quer seja com Guterres, quer seja com Costa, quer seja com outras figuras do passado, da História. A relação está muito bem consolidada e implantada. Portanto, só vejo otimismo. E o meu medo é que o país fique até demasiado dependente dos americanos e que não haja uma diversidade de investidores de outras nações.