Faltam dois meses para Joe Biden sair da Casa Branca e já decorreram 1000 dias desde que a guerra travada pela Federação Russa - encoberta, a partir de 2014, na Península da Crimeia - se transformou numa invasão no leste da Ucrânia. Numa altura em que pessoas próximas do seu sucessor, Donald Trump, multiplicam mensagens cada vez mais acrimoniosas para com o presidente ucraniano e afirmam querer impor a paz o quanto antes, e quando na frente de batalha os russos continuam a progredir a leste e a retomarem Kursk com milhares de norte-coreanos, o democrata envia uma mensagem de alento aos ucranianos ao permitir o uso de armas de longo alcance norte-americanas em solo russo. O regime russo diz que irá dar uma “resposta apropriada”. O presidente norte-americano prometeu estar sempre do lado de Kiev e, apesar de o seu país ter sido o que mais forneceu assistência militar, alguns dos sistemas ou capacidades fornecidos só o foram após meses de reiterados pedidos de Volodymyr Zelensky e da sua equipa: foi assim com os lançadores múltiplos de foguetes, com os tanques de guerra ou com os aviões de caça. O míssil ATACMS, já na posse dos ucranianos há mais de um ano, não podia ser usado em território russo - apesar de ter destruído alvos militares na Crimeia, península que o Kremlin considera sua. Essa limitação caiu agora, e para já na Região de Kursk, onde a Ucrânia se aventurou em agosto a tomar território - com o triplo objetivo de obter uma moeda de troca em futuras negociações, desviar tropas russas e tomar prisioneiros de guerra..As restrições da Administração Biden sobre os ATACMS baseavam-se num argumento discutível, de que tinha poucos em stock - não se sabe qual é o número, apenas que com o início da guerra na Ucrânia, a sua produção aumentou e está agora em cerca de 500 unidades anuais - e que são necessários noutros lugares, como a Coreia do Sul. A importância deste míssil balístico também foi menorizada no contexto da guerra na Ucrânia por Washington, quando os seus oficiais declaravam que Kiev já tinha capacidades próprias de atingir alvos militares russos longínquos com drones. Além disso, semanas depois de o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, com sede em Washington) ter localizado 245 alvos militares em solo russo ao alcance dos ATACMS, o Pentágono disse que 90% dos aviões de caça russos que têm lançado bombas planadoras já não estavam em bases ao alcance dos mísseis norte-americanos. Por fim, o mais importante motivo da recusa: o risco do agravamento da guerra. A ameaça nuclear tem sido recorrente por parte do regime russo, mas ninguém na Ucrânia a toma por crível. Além disso, ao já referido ataque com ATACMS na Crimeia, a Rússia não respondeu de forma diferente, uma vez que já ataca de forma indiscriminada zonas residenciais, hospitais ou infraestruturas energéticas. Também convém recordar que, em maio, quando as forças russas ensaiaram uma segunda invasão à região de Kharkiv, os Estados Unidos permitiram o uso de artilharia e de foguetes disparados dos lançadores HIMARS para território russo - e também então a Rússia não tomou medidas especiais. .“Falam disso para deitar lenha na fogueira e aumentar ainda mais a tensão em torno deste conflito”, comentou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, as notícias avançadas pelos media norte-americanos. E considerou, caso se confirmem, que há “uma situação qualitativamente nova no envolvimento dos EUA”. Peskov recordou que em setembro Vladimir Putin advertira que a autorização da utilização destes projéteis em território russo “significará que os países da NATO, os EUA e os países europeus, estão em guerra com a Rússia”. Horas depois, foi a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, a afirmar que o seu país vai adotar uma “resposta apropriada” no caso de a Ucrânia disparar mísseis norte-americanos contra o seu território. “O uso de mísseis de longo alcance por Kiev para atacar o nosso território significaria a participação direta dos Estados Unidos e dos seus satélites, bem como uma mudança radical na essência e na própria natureza do conflito”, declarou em comunicado. A decisão de Joe Biden - não comunicada de forma oficial - também tem de ser lida na sequência da notícia do The New York Times de que o plano de vitória que Zelensky apresentou aos aliados - e em especial ao presidente dos EUA - tinha uma cláusula secreta, a transferência de mísseis Tomahawk, com um alcance de 2400 quilómetros, para Kiev. .Não é de esperar que os ATACMS mudem o curso da guerra, mais a mais se de facto a limitação for apenas levantada na região de Kursk. “Não vai mudar nada à escala global”, disse à ABC News o antigo agente do serviço de segurança da Ucrânia Ivan Stupak, o qual prevê, nestas condições, até 2 mil militares russos e cerca de 150 unidades de equipamento pesado eliminados. Stupak disse que os mísseis seriam de maior utilidade se visassem os principais armazéns militares, centros de manutenção e aeródromos, em vez de concentrações de pessoal russo e norte-coreano. Ideia semelhante tem o general na reserva Ben Hodges. “É possível derrotar a massa se tivermos armas de precisão suficientes para destruir o quartel-general, a logística e a artilharia”, afirmou o norte-americano à Voice of America. O número a ser transferido para a Ucrânia é outra incógnita. Segundo estimativas do analista militar Colby Badhwar, os EUA têm cerca de 2400 ATACMS, sendo que quase metade dos quais fora de validade. .No domingo, após as primeiras notícias sobre a autorização dos ATACMS, o Le Figaro noticiou que a França e o Reino Unido também teriam seguido o caminho dos EUA e permitido o mesmo com os mísseis SCALP/Storm Shadow. “Nada de novo debaixo do sol”, comentou o ministro francês Jean-Noël Barrot, lembrando que Emmanuel Macron já tinha expressado o apoio a essa solução. Ao que consta, foram os EUA quem impediram o uso dos mesmos por terem componentes de fabrico norte-americano. .Em Bruxelas, o ainda chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, levantou a questão junto dos 27 ministros dos Negócios Estrangeiros: “Tenho dito repetidamente que os ucranianos devem poder utilizar as armas que fornecemos não só para parar as flechas, mas também para atingir arqueiros.” O catalão lembrou que “a administração norte-americana, depois de muito tempo a dizer não e não, finalmente disse sim”, atirando a pressão para a Alemanha, o outro país com armas de longo alcance disponíveis, mas cujo chanceler recusa tal cenário. .O que é o ATACMS.Projetado pelo Exército dos Estados Unidos (daí o nome Army Tactical Missile System, ou seja, Sistema de Mísseis Táticos do Exército) no final dos anos 1970, o MGM-140 ATACMS entrou em fases de testes em 1988 e, por fim, entrou ao serviço em 1991, durante a Guerra do Golfo. Fabricado pela Lockeed Martin, trata-se de um míssil balístico lançado de plataformas móveis terrestres já fornecidos pelos Estados Unidos (M270 MLRS e HIMARS) à Ucrânia. No seu interior está um motor de foguete de combustível sólido para propulsão, o que contribui para a sua fiabilidade, e a combinação do sistema inercial de navegação (INS) e o sistema GPS, para a sua precisão. O ATACMS pode ser equipado com diferentes ogivas tendo em conta o alvo a atingir, e essas variantes dividem-se entre o míssil de ogiva única e o míssil com munições de fragmentação (cluster). Há pouco mais de um ano que a Ucrânia recebe estes mísseis que atingem a velocidade de 3700km/h e uma precisão em redor dos dez metros, mas só agora é que pode explorar o seu alcance - até 300 quilómetros - em território russo. Desconhece-se o número fornecido a Kiev, mas em maio a Administração Biden disse ao Politico estarem muitos em produção.