Da unidade da Igreja às finanças do Vaticano: os desafios do novo papa
Não se espera que o ducentésimo sexagésimo sétimo chefe da Igreja Católica se limite a presidir às cerimónias religiosas que o cargo implica. O papa é o guia espiritual dos católicos e pode ser inspiração até para ateus, como deram a conhecer reportagens na praça de São Pedro e na basílica de Santa Maria Maior, em Roma, local onde Francisco foi sepultado. Voz – em teoria – de 1,4 mil milhões de fiéis, o também bispo de Roma terá de enfrentar um conjunto de questões.
Unidade
O maior desafio do novo pontífice é o de manter a unidade no interior da Igreja. Este é um tema que parece reunir consenso entre comentadores, sejam leigos, sejam da cúria, e para o qual os cardeais foram industriados na missa que precedeu o conclave. O decano do colégio cardinalício, Giovanni Battista Re, fez um “forte apelo à manutenção da unidade da Igreja, conforme o caminho indicado por Cristo aos apóstolos”. Para o cardeal italiano, “a unidade da Igreja, desejada por Cristo, não significa uniformidade, mas uma comunhão sólida e profunda na diversidade, desde que se mantenha a plena fidelidade ao Evangelho”.
A chegada do argentino Jorge Bergoglio à cadeira de São Pedro foi comparada a uma abertura de janelas de um vetusto e enclausurado edifício. Francisco levou para a agenda da Santa Sé a visão de que as periferias devem estar no centro das atenções. Direitos dos imigrantes, ambientalismo, políticas de justiça social ou a inclusão passaram a fazer parte dos discursos do papa. Afirmou que ser homossexual não é um crime e autorizou a bênção de casais do mesmo sexo, por exemplo. Os setores mais tradicionais da Igreja a muito custo viram este novo rumo. O cardeal alemão Ludwig Müller classificou de “blasfémia” a bênção de casais homossexuais. No ano passado, os cardeais africanos emitiram um inédito comunicado conjunto a recusar a declaração de Francisco sobre o mesmo tema, tendo alegado que essas uniões “são contrárias à vontade de Deus”.
Um papa que extremasse as posições adotadas no anterior pontificado ou, pelo contrário, desse uma guinada total, poderia levar a uma dissensão e, na pior e remota das hipóteses, a um cisma. Isabelle de Gaulmyn, presidente da associação Semaines Sociales de France, questiona nas páginas do jornal católico La Croix: “Numa altura em que a guerra voltou a ser a norma nas relações humanas, em que a regulação e a mediação internacional, nacional e local estão desacreditadas em favor das lutas pelo poder, em que a democracia é cada vez mais contestada, não será tempo de atualizar a noção cristã de bem comum, em resposta às exigências do início do século XXI, quando parece tão difícil construir um terreno comum?”. A questão é como assegurar esse terreno comum, e sobre isso não há unanimidade. Por exemplo, o cardeal italiano Baldassare Reina defende que “não é altura para compromissos, nem para táticas, nem para equilíbrios”, pelo que “a navegação da Igreja deve ser ampla”.
Reformas
As reformas são outro ponto quente. Por exemplo, desde 2022, qualquer leigo pode ser nomeado para cargos de administração no Vaticano (dicastérios). Uma das últimas medidas de Francisco foi a aprovação de um novo ciclo de três anos de reformas, depois de uma assembleia dos bispos (sínodo) realizada em outubro de 2024 não ter avançado como desejaria. O pontífice argentino fez da reorganização da Igreja através da sinodalidade, isto é, da realização de sínodos, uma prioridade, com o objetivo de “tornar a Igreja mais participativa e missionária”, como se lê no documento final saído do sínodo. Este caminho prevê a adoção de medidas descentralizadas e adaptadas à realidade local, embora fique por decidir se há competências que ficam na alçada do papa e outras na dos bispos.
O papel das mulheres também foi abordado no sínodo. “Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto e é necessário prosseguir o discernimento a este respeito”, concluíram. Francisco não foi tão longe quanto grupos de mulheres católicas, como a Conferência pela Ordenação de Mulheres exigem, mas deu o exemplo ao nomear para a governação da cidade do Vaticano a freira Raffaela Petrini. Há um dado que a cúria romana não pode ignorar: o número de freiras tem vindo a decrescer. Em 2014 eram 700 mil e em 2022 o número tinha sido reduzido em mais de 100 mil. Cada vez mais mulheres católicas querem deixar de ser invisíveis e de ter responsabilidades menores. "Somos a grande maioria do povo de Deus. É uma questão de justiça. Não é uma conquista do feminismo, é do interesse da igreja", disse à Associated Press Maria Lia Zerbino, a primeira mulher nomeada para aconselhar o Vaticano sobre nomeações de bispos.
Resposta aos abusos
Outra questão que tem de continuar a ser encarada é a resposta aos abusos sexuais praticados ao longo de décadas. Bento XVI deu os primeiros passos e Francisco deu continuidade ao aprovar o documento Vos estis lux mundi (Vós sois a luz do mundo), o qual instrui cada diocese a informar os superiores sobre denúncias de abuso e de encobrimento (que é equiparado ao abuso em si). Porém, as associações de defesa das vítimas dizem que este avanço é insuficiente, sugerindo que as queixas sejam reportadas à polícia e não à hierarquia católica. Um mês antes de Francisco ter morrido, a associação de vítimas SNAP enviou ao Vaticano uma queixa sobre as ações ou inações de seis cardeais em relação a clérigos que tinham sido sinalizados, mas que, apesar das suspeitas ou até das condenações em tribunal, permaneceram no seio da Igreja. Os cardeais em causa são o camerlengo Kevin Farrell, Péter Erdo, Victór Manuel Fernández, Mario Grech, Luis Antonio Tagle e Robert Francis Prevost -- nada menos do que Leão XIV . Entretanto, a SNAP publicou no seu site suspeitas de encobrimento por parte de outros 21 cardeais.
Finanças vaticanas
Temas de alcance global como as guerras (Francisco tentou, sem sucesso, mediar a Rússia e a Ucrânia e pediu que se investigasse se decorre um genocídio em Gaza), as alterações climáticas (o pontífice argentino dedicou a encíclica Laudato Si' ao tema) ou as mudanças expectáveis com a Inteligência Artificial não deverão ser ignorados pelo bispo de Roma; já a forma como irá encará-los depende da sua visão. O que vai exigir decerto a sua atenção é um tema terreno: as finanças do Vaticano. Bento XVI não teve forças para contrariar o escândalo financeiro que ficou conhecido como Vatileaks; o pontificado de Francisco tomou uma série de medidas de transparência e de alinhamento com os padrões internacionais. No entanto, em 2022, ano do último relatório publicado, o Vaticano teve um défice de 33 milhões de euros e, em 2024, segundo a Reuters, o valor disparou para 83 milhões de euros. Em fevereiro, Francisco enfrentou oposição dos cardeais para cortar a direito nas despesas e procurar fontes de receitas externas.