Cultura. Como curar a ressaca do bolsonarismo?
Especialistas acreditam que a arte brasileira resistirá, após quatro anos sob fogo de secretários de cultura aberrantes. "Porque no Brasil ser criativo é questão de sobrevivência", sublinham. O DN está a publicar desde 1 de setembro um conjunto de reportagens sobre os 200 anos da independência do Brasil, que se celebram no próximo dia 7.
Consegue-se medir a importância que o governo de Jair Bolsonaro atribuiu à Cultura através dos cinco secretários de estado da pasta que escolheu em quatro anos no poder - dois desconhecidos, um fã do nazi Joseph Goebbels, uma atriz de passagem por Brasília e um ex-galã da novela juvenil Malhação. O principal foco da política bolsonarista, entretanto, foi sempre o mesmo: atacar a lei, chamada Rouanet, de apoio a projetos artísticos para asfixiar os agentes culturais, conotados, segundo os adeptos do presidente, com o comunismo, a homossexualidade e o uso de drogas.
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Nesse cenário de guerra, a música, o cinema, a literatura e todas as demais formas de arte sofreram no bolsonarismo - haverá esperança, depois dele? Matheus Pichonelli, crítico de cinema nos portais UOL e Yahoo, acredita que sim, "apesar da paulada". "O cinema brasileiro sempre foi um resistente, sempre teve de vender o almoço para garantir o jantar, mas sobrevive, "sobrevive sempre", como me disse um dia [o cineasta] Cacá Diegues, o país é muito imagético, tem possibilidades infinitas de ser colocado em tela, ainda assim, o bolsonarismo foi uma paulada, tanto nas formas de financiamento, como no discurso de ódio contra os artistas, é um governo que despreza manifestações artísticas e populares".
Neste tipo de períodos, entretanto, a arte muitas vezes floresce. Pichonelli concorda mas acha que ainda não houve tempo para se medir a qualidade do cinema brasileiro durante o bolsonarismo. "Os filmes que surgiram no bolsonarismo, pelo tempo que demoraram a serem pensados e produzidos, são, na verdade, anteriores ao bolsonarismo, Bacurau [de Kléber Mendonça Filho, 2019], por exemplo, é um filme premonitório, que entende o espírito de um tempo que começara desde, pelo menos, o impeachment de Dilma Rousseff".
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"Não existiu política cultural, o pensamento que guiou o governo Bolsonaro é de que os comunistas tomaram intelectualmente o país através da cultura e da educação"
"E os filmes que se destacam depois, A Vida Invisível [Karim Aïnouz, 2019], sobre liberdade das mulheres, Democracia em Vertigem [Petra Costa, 2019], um documentário sobre o impeachment, e Deserto Particular [Aly Muritiba, 2021], um amor proibido entre um polícia e uma menina trans, só para citar indicados ao Óscar, todos dialogam com o Brasil que estava a embrutecer mas todos foram feitos também antes do bolsonarismo. Os filmes no bolsonarismo, em rigor, ainda não existem".
O jornalista Fernando Vives, autor do podcast musical Travessia, mede o impacto do bolsonarismo na sempre celebrada música brasileira: "A música brasileira como conhecemos já vem mudando muito antes do bolsonarismo, mas este fenómeno político golpeou, por um lado, a indústria e o soft power que dela provinha, a Lei Rouanet está longe de ser perfeita, mas é um jeito de fazer produção cultural. Ao mirá-la como inimiga e o mundo artístico como um conjunto de vagabundos que querem "mamar nas tetas" do governo, até os que nunca captaram dinheiro através dela, o bolsonarismo transformou em inimigo o que deveria ser, e é, orgulho popular, como se não houvesse dinheiro do governo dos EUA em Hollywood, como se o governo sul-coreano não tivesse despejado verbas no cinema e música, hoje premiados".
"Por outro lado, o bolsonarismo age com uma ignorância arrogante sobre a cultura: quando João Gilberto morreu, o planeta comoveu-se com a morte de alguém que influenciou a música em todo o lugar, Bolsonaro, só com muita insistência de jornalistas, declarou "era uma pessoa conhecida, os nossos sentimentos à família, tá ok?"", lembra Vives. "Já sobre um tal MC Reaça, que lhe fazia vídeos de apoio e que se matou após supostamente agredir a namorada, declarou que "será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil".
Thaís Seganfredo, editora do Observatório da Censura nas Artes, lembra a suspensão de quatro séries sobre diversidade e temas LGBT nas televisões públicas e o cancelamento de espetáculos teatrais como Abrazo, da companhia Clowns de Shakespeare, e Gritos, da Dos à Deux, o primeiro por trazer a história de um governo que proibia cidadãos de falar e o segundo por ser protagonizado por um travesti. "Além dos casos de censura, não existiu política cultural, o pensamento que guiou o governo Bolsonaro é de que os comunistas tomaram intelectualmente o país através da cultura e da educação".
E o futuro? O Brasil pode, enfim, ganhar o Óscar que já vem prometendo? "O Brasil é sempre candidato a um Óscar, o Central do Brasil [Walter Salles, 1998] foi o que ficou mais perto. O Óscar está para o Brasil agora como o Mundial de Futebol no passado - podia ter sido campeão em 1950 e não foi, teve de esperar até 1958, com o Óscar será parecido. O Brasil tem batido na trave mas a qualquer momento vai ganhá-lo".
Fernando Vives também é otimista em relação à música brasileira e discorda de quem a vê numa crise. "Discutir crise na qualidade musical é uma areia movediça. O ponto fundamental é que a música mudou nas últimas décadas no mundo inteiro, e o Brasil acompanhou. O ritmo, a harmonia, a poesia, tudo isso hoje em grande parte, mas não toda, na música mainstream é diferente do que era até há 20 ou 30 anos, mais eletrónica e visual".
"Então", prossegue, "ouvir o funk brasileiro, por exemplo, com os ouvidos da minha geração e das anteriores soa muito mal, como alguém que cresceu ouvindo Beatles tende a achar estranho o K-Pop, mas não quer dizer que seja necessariamente ruim, assim como não dá pra dizer que Chico Buarque, Caetano Veloso e Tom Jobim são os Beethoven, Mozart e Bach da música brasileira, e que os génios do funk, se já existem ou se existirão, estarão num outro compartimento".
"Aquela geração foi a versão brasileira daquela que o mundo ocidental viveu com Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan e afins: são o retrato muito específico não só de um contexto histórico como também de um outro estágio do capitalismo, com menos controle da indústria na produção cultural. Como seus pares do mundo anglo-saxão, estes génios são únicos. Porém, o brasileiro é criativo por uma questão de sobrevivência, ao mesmo tempo que o legado destes artistas segue vivo, não tenho dúvida de que outros génios, de diferentes contextos, surgirão".
Entrevista a Sérgio Rodrigues (jornalista e escritor): "Este governo fascistóide torturou a nossa cultura"
Qual a dimensão da herança do governo Bolsonaro para a cultura brasileira?
Para a máquina estatal de incentivo à cultura, uma dimensão catastrófica. O cálculo preciso só poderá ser feito quando essas pessoas forem retiradas do poder e gente séria reassumir tais posições, mas o estrago parece ser o que provoca uma nuvem de gafanhotos numa plantação de trigo. Trata-se de pessoas ressentidas que têm ódio à cultura e à arte, por nelas terem fracassado, ou são dominadas por uma visão ideológica que não hesita em subordiná-las aos interesses de um grupo político. A cultura brasileira só não está moribunda porque nunca dependeu do Estado para viver. Nessa área, o papel de ministérios ou secretarias sempre foi limitado, ainda que relevante.
Em caso de vitória de Lula da Silva, tendo em conta os governos do PT no passado, a cultura será vista com mais atenção?
Sem dúvida alguma. Mesmo porque, para tratar a cultura com mais carinho do que a trata esse governo fascistóide, bastaria parar de torturá-la. Até a indiferença e o descaso seriam mais carinhosos do que a hostilidade aberta de hoje. Nos seus mandatos anteriores, Lula teve grandes acertos nesse campo, sobretudo quando Gilberto Gil era ministro, e também sofreu críticas pelos orçamentos modestos e por muito que deixou de fazer. A expectativa é a de que possa haver mais avanços desta vez.
O Brasil, apesar de tantos gigantes, nunca ganhou um Nobel da literatura - ele pode aparecer num curto, médio prazo?
Não tenho bola de cristal, mas acho improvável. A difusão internacional da literatura brasileira é precária, e até hoje não temos um Instituto Machado de Assis ou uma política de apoio à tradução mais consistente, menos dependente dos humores do governante de plantão. O Brasil é um país bastante autocentrado, talvez devido às suas grandes dimensões, e acaba, por pura incompetência e falta de visão, desperdiçando um potencial imenso para aquilo que em inglês se chama de soft power. Nos últimos quatro anos, nem se fala. Até aquela simpatia gratuita e vaga que os brasileiros costumavam angariar mundo fora vem sendo dilapidada.
Os escritores brasileiros queixam-se de os portugueses serem mais lidos no Brasil do que eles em Portugal. Porque isso acontece, se, por exemplo, nos outros campos culturais se dá fenómeno inverso, como, por exemplo, na música?
Essa pergunta deveria ser dirigida aos portugueses. A literatura brasileira vive um bom momento, mas acredito haver em Portugal certa prevenção contra o português brasileiro, que não é nem poderia ser idêntico ao português europeu, uma animosidade linguística que foi agravada pelas querelas em torno do Acordo Ortográfico. Me parece que os portugueses se sentem donos exclusivos da língua, e a língua, como se sabe, é a matéria-prima dos escritores. Música envolve outras dimensões e talvez por isso seja mais palatável.
Como sonha o Brasil de daqui a 200 anos, sobretudo nas áreas, literatura e linguística, a que mais se dedica?
É muito tempo, não sei se haverá Brasil ou mesmo vida na Terra nessa altura. Se houver, gostaria que fôssemos um país de alfabetização plena, altos índices de leitura e uma exuberante autoestima linguística. Um país inteiramente à vontade com o seu pertencimento à família lusofónica e, ao mesmo tempo, com o sabor inconfundível de sua língua mestiça, tão portuguesa quanto indígena e africana.
dnot@dn.pt
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