Como o Brexit desencadeou a "guerra da pesca" na ilha de Jersey

Atraso das autoridades em emitir licenças de pesca aos franceses desencadeou ameaça de bloqueio e de corte de luz. Britânicos a responderam enviando navios-patrulheiros da Marinha.

Após um protesto de seis horas ao largo do porto de Saint Heller, na ilha de Jersey, no Canal da Mancha, cerca de 60 barcos de pesca franceses voltaram para casa. Tal como os patrulheiros da Marinha britânica (o HMS Severn e o HMS Tamar), destacados pelo Reino Unido na quarta-feira à noite. Nas águas francesas continuam dois navios da polícia marítima de França (o Athos e o Themis). Mas afinal, o que está por detrás desta "guerra da pesca" entre Londres e Paris nas águas de Jersey? A resposta simples: o Brexit. Mas a situação é mais complicada.

Jersey é uma dependência da Coroa Britânica, mas não faz parte do Reino Unido e tem autonomia de governo. Contudo, Londres é responsável pela defesa da ilha, assim como assegurar que cumpre as suas obrigações internacionais. Por isso, apesar de Jersey nunca ter feito parte da União Europeia, os direitos de pesca nas suas águas fazem parte do acordo de comércio assinado entre Londres e Bruxelas depois do Brexit.

O tema das pescas e do acesso às águas britânicas foi um dos mais complicados da negociação, que só ficou decidida na véspera de Natal, a dias do fim do prazo do período de transição (31 de dezembro de 2020) após a saída do Reino Unido da União Europeia (31 de janeiro de 2020). No final, foi estabelecido um período de transição no setor até ao verão de 2026, a partir do qual os pescadores europeus têm que renunciar a 25% das suas capturas nas águas britânicas.

Mas, até lá, estes mesmos pescadores mantêm o acesso às zonas entre as 6 e as 12 milhas náuticas, onde normalmente já pescavam. Precisam, contudo, desde a semana passada, de uma licença, devendo demonstrar aos britânicos que já pescavam nessa zona no período entre 2012 e 2016 (pelo menos 10 dias consecutivos em cada ano).

O problema é que, no caso de Jersey, só 41 barcos franceses (num total de 344 pedidos) foram autorizados a pescar nas suas águas (os que estão equipados com tecnologia que permite localizá-los e que por isso facilmente tinham os dados exigidos), tendo-lhes contudo sido feitas novas exigências não previstas no acordo. Entre elas, por exemplo, que os dragadores só podiam ter 12 linhas.

Diante desta situação, Paris alega que há uma violação de acordo por parte dos britânicos, tendo ameaçado cortar a eletricidade a Jersey. Estima-se que 95% da energia da ilha venha dos três cabos submarinos que a ligam a França, que fica a apenas cerca de 12 milhas náuticas (22 quilómetros). A ameaça de corte de eletricidade foi feita pela ministra do Mar francesa, Annick Girardin, na Assembleia Nacional. Os pescadores franceses resolveram entretanto montar um protesto, ameaçando bloquear os portos da ilha.

Em resposta, o primeiro-ministro britânico enviou os dois navios de guerra para a zona: "Ameaçar Jersey assim é claramente inaceitável e desproporcionado", disse um porta-voz do governo britânico. Em dia de eleições regionais na Escócia e País de Gales e locais em Inglaterra, o tema fez capa em vários jornais - "Boris envia navios de guerra para defender Jersey", escrevia o tabloide conservador Daily Express - com os críticos a apontar uma tentativa de ganhar votos.

"Não seremos intimidados por estas manobras", disse por seu lado, à AFP, o ministro francês para a Europa, Clement Beaune, indicando que o desejo de França "não é ter tensões, mas uma rápida e total aplicação do acordo de Brexit". Entretanto, Paris respondeu destacando também dois navios para as suas águas na área junto a Jersey. O objetivo era garantir a "segurança da navegação e a salvaguarda da vida humana no mar".

O protesto da armada de barcos de pesca franceses durou seis horas. "A demonstração de força acabou, agora é hora dos políticos pegarem no leme", indicou o presidente da Associação de Pesca da Normandia, Dimitri Rogoff. Ao final do dia, os britânicos anunciavam que os navios da Marinha iam voltar para casa. "Dado que a situação está resolvida, por agora, os navios de patrulha vão preparar-se para voltar ao porto no Reino Unido", disse o gabinete de Johnson.

O responsável pela Associação de Pescadores de Jersey, Don Thompson, tinha falado de uma reação francesa parecida com o que se poderia esperar do Irão ou da Rússia. "Eles não estão apenas a dizer que podem cortar o fornecimento de eletricidade, os pescadores franceses estão a dizer que vêm amanhã [quinta-feira] bloquear o porto a tempo de travar a chegada dos ferries, para que não haja fornecimento de comida à ilha. Por isso chega muito perto de um ato de guerra", afirmou, citado pelo jornal britânico The Guardian.

Mas a situação vai mais além de Jersey, com os franceses a denunciar que o próprio Reino Unido está a atrasar a emissão de licenças. No final de abril, mais de uma centena de pescadores franceses bloquearam brevemente os camiões que seguiam carregados de peixe capturado pelos britânicos para as fábricas do porto de Bolonha-do-Mar, por essa mesma razão.

susana.f.salvador@dn.pt

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