Burhan Sönmez: “Cerca de 40 milhões de curdos lutam e são oprimidos há 100 anos”
(Esta entrevista foi originalmente publicada no Diário de Notícias de dia 6 de janeiro de 2025)
Em Pedra e Sombra há momentos em que fala sobre a expulsão dos turcos da Bulgária pelos comunista, outros em que aborda a cedência do Hatay pelos franceses à República da Turquia. E por aí fora, sempre a História , com várias comunidades como pano de fundo, incluindo os curdos. É um romance que fala de temas que se imaginam complicados para o leitor comum. Isto é porque a História turca, a História em geral do Médio Oriente, é complicada?
Penso que a história na Anatólia, na Mesopotâmia, no Médio Oriente, é muito complexa e complicada, como é em todo o lado, creio eu. Se formos mais fundo, por exemplo, em Portugal ou noutro país, veremos que existem diferentes camadas, e de algumas talvez nos tenhamos esquecido, ou simplesmente, foram apagadas. O mesmo acontece na Turquia. Se falar com as pessoas na rua, não vai ouvir grande coisa sobre o passado, apenas lugares comuns. Mas quando vamos mais fundo, quando fazemos investigação, vemos que essa terra tem uma História, pelo menos a História conhecida, de dez mil anos, e centenas de civilizações. E todas as civilizações, quando chegam, afirmam que são as melhores, e menosprezam o resto. O resto são bárbaros ou infiéis. Porém, se tentarmos olhar para todas essas civilizações de uma forma justa, então veremos que são na verdade como um mar de diferentes navios à vela. Alguns deles antigos, outros novos. Se eu enumerar, alguém dirá sempre que me esqueço de alguma. Mas arrisco: turcos, curdos, árabes, arménios, gregos, circassianos, persas. A diversidade é, claro, muito maior. Como podemos manter viva a nossa História e a nossa sociedade feliz, vivendo em paz? Penso que será compreendendo a multiplicidade na vida social, e respeitando-nos uns aos outros.
Quando fala deste legado de diferentes culturas, não está a falar apenas de vestígios arqueológicos? Ainda estão presentes as marcas dessas culturas no povo da atual Turquia, mesmo que a cultura seja mais homogénea do que no passado, mesmo que os muçulmanos sejam hoje a grande maioria, mesmo que os de língua turca sejam a clara maioria?
Sim, porque não estamos a falar de romanos, hititas ou sumérios. Esses já não existem. Mas temos ainda caldeus ou yazidis e outros, mesmo que as pessoas não mencionem os seus nomes. E temos ciganos rom por toda a Turquia. E mesmo que muitas pessoas os desprezem, vivem connosco. Neste livro, tentei ver esse mapa de cores, o verdadeiro. Quando acedemos à internet, apenas vemos o mapa dos países, todos com determinada cor. Uma só cor para os franceses, outra para os alemães, outra para, digamos, os portugueses. Mas se formos ao pormenor, vemos ali tons diferentes. Não existe uma única cor em cada país. Sou curdo da Anatólia, e o meu vizinho, o tártaro da Crimeia, chegou há mais de 200 anos. E há umas décadas vieram os imigrantes búlgaros-turcos. E todos vivemos juntos. E precisamos de compreender e ver isso como positivo. Se não o fizermos, isso significa que estamos muito abertos à intolerância e também aos nacionalistas radicais e às opiniões autocráticas. Porque dizem sempre que temos uma identidade única, que há que aceitar ou, caso contrário, teremos alguns problemas.
Como curdo da Turquia faz parte dessa História. Qual foi a sua experiência antes do exílio nos anos 1990? O regime laico fundado por Atatürk era forte. Os militares tinham muito poder e o nacionalismo era fortíssimo. Agora está novamente forte, mas de uma forma diferente. Qual foi a sua experiência como cidadão antes de ter de fugir para o Ocidente?
Nasci numa aldeia curda. Cresci com o curdo como língua materna. Mas quando se muda para a cidade, quando se começa a estudar, a única língua é o turco, e há que começar a aprendê-la. Mas, ao mesmo tempo, somos obrigado a esquecer a língua materna, a sentir até vergonha, porque está marcada como uma língua primitiva. A linguagem dos povos da montanha. Era esse o sentimento que o governo dava à sociedade. Foi uma época muito política essa década de 1970 em que eu cresci. Agora as pessoas esquecem-se disso, mas antes da guerra civil curda, houve outra guerra civil na Turquia. Estávamos em plena Guerra Fria. E a Turquia, membro da NATO, era vizinha da União Soviética. Podemos imaginar o que estava a acontecer. E o ponto de viragem foi o golpe militar de 1980. O exército turco iniciou um golpe de Estado. E foi a intervenção política mais devastadora da nossa história.
Foi pior do que os anteriores golpes militares?
Sim, certamente. Mudou tudo. E começaram, na altura, a apoiar grupos islamitas. Para travar as ideias de esquerda. Sobretudo nas gerações mais novas. Foi a altura em que entrei na universidade. Depois fui preso. E vi como o espírito de um país estava a ser corrompido e mudado. Agora, na Turquia, temos um governo islamita, que está no poder há 20 anos. As pessoas perguntam como é que na Turquia, que era um país laico e protegido por um exército laico, os islamitas conseguiram chegar ao poder? A resposta é simples. O exército turco laico plantou-os. Deu-lhes água e comida na década de 1980. Para travar os movimentos de esquerda. E agora aquela árvore, a árvore do islamismo, tornou-se maior do que o exército. Ao longo deste período, pessoas como eu sempre lutaram para ter uma sociedade democrática, aberta à liberdade de todos. Não apenas para as diferentes etnias ou nações, mas especialmente para as mulheres, num país como a Turquia, com uma longa história de império islâmico e onde a cultura religiosa ainda é muito importante. Como podemos manter o equilíbrio? Respeitar a crença religiosa, mas também permitir a liberdade a todos. Principalmente para as mulheres. Esta é a principal questão agora na Turquia. É por isso que pessoas como eu sempre lutaram. Não apenas pelo direito da minha nação, os curdos. Como temos sido tratados? Fomos oprimidos, torturados, assassinados, exilados. É algo para ficar, digamos, infeliz? Não estou contente com isso, mas é a realidade da minha História. Acredito que o regime autoritário na Turquia, como em todo o lado, tem uma longa História. Toda esta opressão sobre os intelectuais na Turquia começou nas décadas do Império Otomano, quando os sultões começaram a punir um movimento intelectual emergente, os modernizadores do império. E desde então, durante mais de século e meio, todos os governos turcos oprimiram os intelectuais. Isto significa que existe uma história de violência. Mas isso significa também que existe uma forte tradição de resistência.
Está reconciliado com o país onde nasceu? Vive agora entre a Grã-Bretanha e a Turquia.
Estávamos em 1996, fui atacado e fiquei gravemente ferido. Fiz tratamento em vários países, na Alemanha, na Suíça, na Grã-Bretanha. Tornei-me num refugiado político. Consegui regressar à Turquia passados cerca de 10 anos. Depois fiquei na Turquia mais 10 anos. Mas agora voltei com a minha família à Grã-Bretanha, principalmente por causa do meu trabalho. Como trabalho com a PEN International, e a nossa sede é em Londres, é lá que operamos. A minha vida agora é entre Cambridge, onde sou professor, e Istambul.
É visitante regular da Turquia?
Sim. Quando visito a Turquia, vou sobretudo a julgamentos, para apoiar no tribunal escritores, jornalistas, académicos. Ou vou à prisão visitar os meus amigos.
Como advogado?
Como advogado. De outra forma é impossível autorização. Como advogado, tenho liberdade para ir a qualquer prisão visitar pessoas.
Mencionou a nação curda, que considera ser a sua. Mas é igualmente cidadão turco. É possível conciliar as duas identidades?
Neste momento, é essa a minha posição. Sou, aliás, cidadão de dois países neste momento. Turquia e Grã-Bretanha. Tenho dois passaportes. Mas não tenho liberdade para ter uma relação legítima e também uma espécie de unidade com outras comunidades curdas, as que vivem nos nossos vizinhos Síria, Iraque e Irão. Porque a nossa terra está dividida por quatro países. Dizem-nos: esqueçam os vossos parentes noutras partes do Médio Oriente. Apenas valorizem ser cidadão da Turquia. E o mesmo está a ser dito aos curdos no Irão.
Têm de escolher entre ser persa ou curdo...
Vocês são curdos, dizem, mas sobretudo iraniano-persas. No Iraque, na Síria também acontece. Este é o maior ponto negro do Médio Oriente neste momento. Cerca de 40 milhões de curdos lutam e são oprimidos há 100 anos. Não começou há um ano, nem há 50 anos. Precisamos de encontrar uma solução. E o objetivo deveria ser este: respeitar a identidade e o sonho de todos e criar um Médio Oriente onde todas as nações vivam felizes e em harmonia. Mas olhamos para os países da região e vemos que são os melhores compradores de armas. Será este um mundo ideal?
Quando fala em respeitar os curdos, isso não significa criar um Curdistão independente automaticamente? Fala sobretudo sobre o respeito pelos direitos culturais, linguísticos em especial.
Existem diferentes receitas políticas sobre como tratar a questão do Curdistão. Entre os curdos existem diferentes partidos políticos, diferentes opiniões. Não recomendo nada em termos de solução política, mas tenho uma recomendação: em primeiro lugar, respeitem os nossos direitos. Isto significa a nossa cultura, a nossa língua. Em segundo lugar, respeitem o nosso direito à autodeterminação. Devem ser os curdos a decidir o que fazer. Ninguém nos perguntou até agora o que queremos. Queremos ter direito à autodeterminação. Depois decidiremos se gostaríamos de viver com turcos, árabes, persas ou não.
Olhando para a Turquia de hoje, recordo-me que nos primeiros anos de poder do presidente Recep Erdogan, ainda como primeiro-ministro, houve esforços para lidar com a situação curda. Foi o momento em que foram reconhecidos direitos culturais. Existe hoje uma melhor relação entre o poder turco e os curdos do que durante o regime laico?
Não quero comparar o governo islamita com os governos anteriores, digamos, laicos. O Estado é o mesmo. A mentalidade do regime é a mesma. Apenas a diferença é que um era laico e o outro é islâmico. Mas quando se trata da questão curda, não há diferença.
Sobre os seus livros editados em Portugal, Istambul, Istambul é o mais pessoal?
Como romancista, não posso responder a esta questão [risos].
Mas nos seus livros há sempre a sua experiência pessoal.
Sim.
Imagina escrever um livro sobre, por exemplo, a Grã-Bretanha?
Sim, é possível. A maioria dos meus livros reflete parcialmente a minha própria experiência. Talvez não pessoal, mas a minha experiência social. Portanto, a ideia e também a inspiração vêm das coisas que estão a acontecer à minha volta na Turquia, no Médio Oriente, na Europa também. E, respondendo indiretamente à sua pergunta sobre a Grã-Bretanha, o meu novo livro, que estará disponível em inglês em abril, é sobre o Kafka. E escrevi-o em curdo.
Pela primeira vez…
Sim. É algo muito, muito novo para mim.
Foi escolarizado em turco. Qual é o seu nível de escrita em curdo?
Ah, isso foi um desafio, porque não li nenhum romance em curdo até aos 35 anos. Consegue imaginar? Um homem que não leu um único livro na sua língua materna. Porque não tem acesso ou nem sequer existem. Na diáspora na Europa, há escritores em língua curda. Na Turquia, talvez, ilegalmente, por baixo da mesa. Por vezes as pessoas partilhavam livros, mas eu não tinha acesso. E também não procurei porque não sabia ler e escrever curdo corretamente. Porque a gramática curda é diferente da gramática turca ou da gramática inglesa. É preciso ser educado, por exemplo, como transformar o som numa letra. Por exemplo, em turco existe V, não têm W. Em curdo temos V e W. Que som reflete V ou W?
Precisou de ser educado já adulto para escrever na língua materna.
Sim. Comecei a estudar a minha língua materna pouco antes da pandemia. Eu falo curdo. E conto histórias. Mas escrever é diferente e disse, para mim próprio, está na hora. Preciso de aprender a gramática da minha língua materna. E à medida que ia estudando, comecei a escrever. Ainda estou a aprender. O interessante para mim foi decidir qual o livro que deveria escrever primeiro nessa língua. E escrevi sobre Kafka por vários motivos, um deles porque não queria falar da ferida do povo curdo na língua curda.
O livro é uma declaração política, mas não quer que seja completamente uma declaração política?
Sim. Eu queria fazer isto num idioma diferente. E a mesma coisa para o próprio Kafka. Escreveu em alemão. Ele era checo. Escreveu em alemão. Era judeu, mas não sabia falar hebraico. No final da vida, começou a estudar hebraico.
Identificou-se com este escritor checo, membro de uma minoria, tanto religiosa como linguística? De novo, há algo de pessoal num livro seu.
Sim. Foi para mim um grande prazer conseguir escrever finalmente um livro na minha língua materna. E queria também deixar uma mensagem à jovem geração de escritores curdos. Porque a maioria dos curdos começa a escrever noutras línguas, como o turco, o árabe ou o persa, e, na Europa, em alemão ou inglês. E quis mostrar-lhes que é possível voltar à língua materna, mesmo depois de cinco romances.