A questão curda

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O fim do Império Otomano deixou órfãos vários povos do Médio Oriente, que tiveram de se adaptar à nova lógica de fronteiras nacionais, como é o caso dos drusos, de repente obrigados a ser libaneses, sírios ou, mais tarde, israelitas. Este povo de língua árabe, que pratica uma religião que se separou do Islão há cerca de 1000 anos, é, aliás, um excelente caso de estudo sobre como sobreviver em ambiente hostil, e a lógica de fidelidade ao Estado é parte da fórmula, como mostram os drusos israelitas, que fazem serviço militar, tal como os judeus. Mas estamos a falar de um povo de cerca de um milhão de pessoas, que vive em regiões montanhosas que lhes oferecem proteção em momentos difíceis, como aconteceu nos últimos anos aos drusos da Síria, ameaçados pela guerra.

Outra situação muito mais complexa é a dos curdos, que se calcula serem cerca de 40 milhões, que primeiro estavam divididos entre os Impérios Otomano e Persa e, nos últimos 100 anos, passaram a ser cidadãos de quatro países, Turquia e Irão, mas também Iraque e Síria. De língua indo-europeia, têm algumas afinidades linguísticas com os iranianos, mas pouco em comum a esse nível com turcos e árabes. Aquilo que os aproxima mais das populações maioritárias dos países onde vivem é a fé islâmica, mesmo que não sendo exclusiva entre eles.

Pelo número, os curdos, de facto, destacam-se entre os chamados povos sem Estado. E a sua integração nos quatro países tem sido complexa, indo desde setores que optam pela integração, a outros que defendem a independência pela via armada, como o PKK. A maioria, provavelmente, ficaria satisfeita com o reconhecimento alargado dos seus direitos culturais e linguísticos, algo que demorou muito a acontecer, mesmo num país com prática democrática, como é o caso da Turquia.

Hoje, o presidente Recep Erdogan é visto como hostil ao separatismo curdo no Leste do país, via PKK, e também nas regiões curdas da Síria, mas nos seus tempos iniciais no poder, ainda como primeiro-ministro, foi muito mais além do que os anteriores governos laicos no reconhecimento da comunidade curda, que poderá ser cerca de 15 a 20% dos turcos.

Em entrevista ao DN, o presidente do PEN International, Burhan Sönmez, um curdo que é cidadão turco, fala do sofrimento de uma nação que assume como a sua. Nunca ter podido estudar na língua materna, ou só aos 35 anos ter lido um romance em curdo, servem de exemplos para as limitações de direitos que foram historicamente impostas, no caso por uma República da Turquia que se quis afirmar como pátria dos turcos depois do fim do Império Otomano, a seguir à Primeira Guerra Mundial.

De uma forma ou outra, o mesmo tipo de constrangimento aconteceu nos restantes países com população curda, mesmo que no Curdistão Iraquiano a autonomia tenha trazido um novo fulgor à cultura curda, escassa compensação dos tempos em que aldeias curdas chegaram a ser massacradas pelas tropas de Saddam Hussein, até com armas químicas.

A fragilidade dos curdos iraquianos frente a Saddam - até este ter sido atacado pelos americanos - deveu-se muito às divisões internas. Aliás, uma das dificuldades dos curdos em ganharem peso político, mesmo quando se destacam (como na Síria no combate aos jihadistas) é a sua crónica incapacidade para serem uma frente unida. Há diferenças linguísticas, rivalidades clânicas, divergências religiosas e até oposição política dentro dos 40 milhões de curdos, às vezes até mais relevantes que a separação estatal. Talvez, além da força dos Estados onde vivem e do alheamento das grandes potências, seja esse um obstáculo maior à conquista de um reconhecimento mais amplo, que, para muitos, teria de passar pela autodeterminação.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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