Bolsonaro irrita EUA por visitar Putin em plena crise na Ucrânia
"O senhor expressou as melhores qualidades masculinas e de determinação. O senhor foi buscar a solução de todas as questões, antes de tudo, na base dos interesses do seu povo, deixando para depois as soluções ligadas aos problemas da sua saúde pessoal". Com estas frases, ditas em novembro de 2020, Vladimir Putin conquistou de vez Jair Bolsonaro. Ao ponto de um ano e três meses depois, o presidente do Brasil ter decidido visitar o homólogo russo, nos próximos dias, resistindo a todas as recomendações em sentido contrário.
As recomendações começaram logo pelos EUA: segundo reportagem do jornal O Globo da semana passada, representantes do secretário de estado americano Antony Blinken fizeram chegar ao conhecimento do ministério das Relações Exteriores brasileiro, liderado por Carlos França, que consideram o momento impróprio para uma aproximação entre Bolsonaro e Putin - as maiores potências do Ocidente trabalham, de forma coordenada, para isolar o presidente russo com pressões diplomáticas, sanções económicas e ameaças militares no contexto da tensão na fronteira com a Ucrânia.
Em paralelo, o encarregado de negócios da embaixada da Ucrânia em Brasília, Anatoliy Tkach e o assessor para Assuntos Internacionais da presidência do Brasil, Filipe Martins, sugeriram que, para diminuir eventuais estragos diplomáticos, Bolsonaro também visitasse a Ucrânia, demonstrando não estar a tomar partido na disputa. O presidente brasileiro, porém, não se convenceu.
"Não vou falar desse assunto [Ucrânia], se vier à conversa será por vontade do presidente Putin", afirmou em entrevista à TV Record.
Mesmo que o Brasil não tenha qualquer interesse particular na tensão Rússia-Ucrânia-NATO, o país voltou a integrar em janeiro, depois de 11 anos, o Conselho de Segurança da ONU, órgão que tem o poder de autorizar o uso legal da força na relação entre países - esse dado, segundo observadores, coloca um peso maior a qualquer sinal emitido pela diplomacia brasileira a respeito de impasses militares entre países-membros.
"Bolsonaro podia adiar a visita uma vez que o Brasil corre o risco de ser arrastado para uma crise para a qual o país, visto como um pária no cenário internacional, não tem capacidade alguma, ao contrário do que se passava há mais ou menos uma década, quando tinha voz ativa", diz ao DN Vinícius Vieira, professor de Relações Internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado.
"Ele, sem qualquer habilidade diplomática, pode levar a que o Brasil troque os pés pelas mãos aos olhos dos europeus e logo numa altura em que o país foi convidado a entrar na OCDE, esta visita, um abraço de afogados, serve sobretudo aos propósitos de Putin, que procura interlocutores no Ocidente", conclui.
O objetivo de Bolsonaro, segundo fontes do governo, é, além de agradar a Putin, satisfazer os setores agropecuário e militar, duas das suas principais bases de apoio. Combinada no final do ano passado, quando Carlos França se reuniu com o homólogo russo Sergei Lavrov, em Moscovo, a visita será curta e deverá incluir, além do encontro com Putin no Kremlin, uma visita à Duma, câmara baixa do parlamento russo, e um evento empresarial que visa manter aberto o fluxo de exportação de fertilizantes para a agropecuária brasileira. Em sentido contrário, em 2020, as exportações do Brasil para a Rússia geraram uma receita de 1,52 mil milhões de dólares, sendo que mais de 90% do que os russos compraram dos brasileiros foram produtos agropecuários, sobretudo carne bovina. Os dois países têm ainda parcerias nas áreas aeroespacial e de defesa militar.
"Eu vou estar lá sim, atrás de melhores entendimentos, relações comerciais, o mundo todo é simpático com a gente", disse Bolsonaro a apoiantes à entrada do Palácio do Alvorada.
Outra motivação de Bolsonaro apontada pela imprensa do Brasil é responder ao recente périplo pela Europa do candidato presidencial Lula da Silva, recebido com honras de chefe de estado em França e na Alemanha, por exemplo.
Mas como um militar e deputado de extrema-direita no Brasil, como Bolsonaro, e um ex-espião do KGB soviético, como Putin, se tornaram politicamente próximos? "O que os une é muito menos afinidades políticas naturais e muito mais o isolamento internacional de ambos, é um casamento de conveniência", afirma Vinícius Vieira.
Para o académico, entretanto, "na sequência de Putin ter elogiado a masculinidade de Bolsonaro e de este ter retribuído as amabilidades, notam-se, de facto, conexões entre eles".
"Ambos são nacionalistas, ambos veem o estado como meio de ajuda aos amigos mais próximos, seja à oligarquia russa, seja às milícias brasileiras, além de ambos revelarem um conservadorismo nos costumes centrado no homem branco e cristão e com mensagens de intolerância contra homossexuais e outras minorias".
Como disse Bolsonaro, tranquilizando os seus apoiantes no Alvorada, "o Putin é conservador, ele é conservador sim!".
Historicamente, o Brasil foi o primeiro país da América do Sul com o qual a Rússia estabeleceu relações diplomáticas, em 1828, conforme recorda João Paulo Charleaux em artigo no jornal Nexo. Mas foi em 2002, no fim do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, década e meia depois a redemocratização no gigante sul-americano e uma década após a Perestroika, que a relação passou à condição de "parceria estratégica", aprofundando trocas nos campos comercial, científico, cultural e, principalmente, aeroespacial e militar.
Nos dois governos seguintes, de Lula, tanto Brasil como Rússia passaram a integrar, juntamente com a China, a Índia e a África do Sul, um bloco alternativo às grandes potências ocidentais, batizado de BRICS, acrónimo formado pelas iniciais dos cinco países em inglês e que soa como a palavra "tijolos" naquele idioma.
O objetivo dos cinco era aumentar o protagonismo de cada um e reivindicar maior espaço para o chamado "Sul Global". O bloco criou mesmo o seu banco, Novo Banco de Desenvolvimento, para competir com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, em 2014, mesmo ano da crise da Crimeia, génese do atual problema entre russos e ucranianos.
Como recorda Vinícius Vieira, "foi nessa altura que a presidente Dilma Rousseff abriu um precedente grave ao relativizar a crise na Crimeia para manter o grupo BRICS coeso na criação do banco, uma visão de curtíssimo prazo que abre espaço agora à atitude semelhante de Bolsonaro".
Início: dia 12, 14 ou 17 de fevereiro (ainda sem confirmação)
Duração: três dias
Eventos: encontro formal de Putin e Bolsonaro no Kremlin, visita do presidente brasileiro à Duma, câmara baixa do parlamento russo, encontros com empresários para tratar de assuntos económicos