Birmânia: sucesso de Obama é o primeiro desafio de Biden. Com China à mistura
Os EUA ameaçaram os militares com sanções após a prisão de Aung San Suu Kyi e de outros líderes, no golpe de 1 de fevereiro. Mas isso pode aproximar mais o país de Pequim, que, devido aos interesses económicos, também não estará feliz com a instabilidade que se vive.
As reformas democráticas iniciadas em 2008 pela junta militar, que há décadas governava em Myanmar, foram seguidas e incentivadas pelos EUA de Barack Obama, que no meio dessa abertura se apressaram a rever as sanções. Obama foi mesmo o primeiro presidente norte-americano a visitar a antiga Birmânia, em 2012. Mas o seu sucesso acaba por se transformar no primeiro desafio de política externa para o novo inquilino da Casa Branca, o seu antigo vice-presidente Joe Biden, depois de os militares terem de novo assumido o poder. Um desafio que fica mais complicado pelo papel da China.
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"Durante os anos Obama, os valores e interesses norte-americanos pareceram alinhar-se perfeitamente em Myanmar: a abertura democrática do país, encorajada por Washington, coincidiu com um estreitar das relações com as democracias ocidentais e um rejeitar da influência sufocante da China", escreveu a revista The Diplomat (especializada na região da Ásia e Pacífico). Agora, o golpe militar é um exemplo "da crescente tensão entre os valores e os interesses na política externa norte-americana", acrescentaram.
A 1 de fevereiro, os militares liderados pelo general Min Aung Hlaing, alegando que houve fraude nas eleições de novembro (os observadores internacionais rejeitam-no), prenderam os líderes civis do país. Entre os detidos está Aung San Suu Kyi, a líder da Liga Nacional pela Democracia (LND), que venceu essas eleições. Suu Kyi passou vários anos na prisão durante o governo da junta, mas acabou por se aliar aos militares. A Nobel da Paz de 2001 só não é presidente porque a Constituição não o permite (visto ter sido casada com um estrangeiro), tendo sido criado o cargo de Conselheiro do Estado.
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A resposta dos EUA a estes acontecimentos foi ameaçar com sanções. "Os EUA removeram as sanções à Birmânia na última década com base no progresso em direção à democracia. A reversão desse progresso irá exigir uma revisão imediata das nossas sanções, seguida de ação apropriada", lia-se no comunicado de Biden, que não descrevia os eventos como um "golpe de Estado" porque isso iria implicar uma resposta legal mais forte, incluindo a suspensão de toda a ajuda ao país.
Mas a aplicação de sanções à Birmânia servirá para empurrar ainda mais o país para o lado da China, seu principal parceiro comercial e um dos maiores investidores - Pequim investiu milhões de dólares nas minas, nos oleodutos e gasodutos do país, assim como noutras infraestruturas. Mesmo se os chineses também não ficaram satisfeitos com o que aconteceu na vizinha Myanmar.
"Grande remodelação"
A "grande remodelação governamental", como foi apelidada pela agência de notícias oficial chinesa Xinhua, surgiu três semanas após a visita do chefe da diplomacia chinesa, Wang Yi, à Birmânia. Nessa ocasião, encontrou-se não só com Suu Kyi como com os militares, havendo quem alegue que lhes foi dado o consentimento implícito à ação que já estaria a ser preparada desde as eleições. Afinal, Wang Yi expressou o apoio ao "papel merecido" dos militares "na transformação e no desenvolvimento nacional".
A primeira reação oficial chinesa após o golpe, da parte do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Wang Wenb, foi de que a China estava a estudar a situação, apelando à Birmânia que a resolvesse de acordo com as suas leis e Constituição de forma a manter "a estabilidade política e social". Dessa estabilidade dependem os investimentos chineses e, neste momento, os birmaneses não parecem preparados para abandonar as ruas.
Os especialistas lembram ainda que a relação entre os militares e o Partido Comunista Chinês nem sempre foi boa. Mesmo nos anos de junta militar, os primeiros mantiveram uma forte desconfiança em relação aos segundos, pelo apoio que Pequim dava aos insurgentes comunistas e a grupos armados na Birmânia. A abertura democrática empreendida pelos militares também já foi em parte uma resposta à crescente influência da China no país. E o presidente Thein Sein (antigo general) foi quem cedeu à pressão para cancelar a construção de uma barragem que era do interesse dos chineses - algo que Pequim não quer ver repetido.
Até porque a China estava a beneficiar dos anos de governo da LND. O "isolamento de Suu Kyi do Ocidente nos anos pós-Obama têm-na aproximado mais da China, que a cultivou como uma amiga de confiança que podia ajudar a reforçar os interesses económicos do seu país", escreveu a revista The Atlantic. Esse isolamento nos últimos anos prende-se com a situação da minoria muçulmana rohingya, que é privada de nacionalidade. Em 2019, a Nobel da Paz defendeu os militares de acusações de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça e tem recusado assumir que os rohingyas têm sido alvo de massacres.
Seguindo a sua posição de não ingerência nos assuntos de outro país, Pequim irá procurar fazer o melhor com o que aparecer - ao mesmo tempo que travará qualquer condenação mais forte aos militares no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde tem poder de veto (tal como a Rússia, que também foi para uma posição mais suave). E tentará ajustar-se no terreno à situação que sair da Birmânia, onde grande parte do poder económico está nas mãos dos militares. Outros países asiáticos, como Singapura ou Japão, também têm investido em força em Myanmar e não quererão ver os EUA a impor sanções que os podem prejudicar.
Balas de borracha
Pelo quarto dia consecutivo, e apesar da entrada em vigor da lei marcial e da proibição de ajuntamentos de mais de cinco pessoas, os birmaneses voltaram nesta terça-feira às ruas. Desta vez, as autoridades responderam não só com canhões de água, mas também com balas de borracha e gás lacrimogéneo para tentar dispersar os manifestantes. A nova geração, munida das redes sociais e da internet (apesar de uma tentativa de desligar o serviço no país), inspirou-se nos protestos em Hong Kong ou na Tailândia.
A repressão violenta, e os receios do que tal possa significar nos próximos dias, gerou uma nova onda de críticas internacionais, com a condenação do uso de força contra os protestos pacíficos da parte das Nações Unidas, dos EUA ou de vários países europeus, incluindo Portugal. "Apoiamos todos quantos, em Myanmar, se manifestam a favor do regresso à ordem democrática. Condenamos a repressão policial e militar das pessoas que exercem pacificamente o seu direito de protestar e lembramos a obrigação de respeitar os direitos humanos e o Estado de direito", lia-se numa mensagem publicada no Twitter do Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
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