“Austrália e Portugal deveriam trabalhar juntos para ajudar Timor-Leste”
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

“Austrália e Portugal deveriam trabalhar juntos para ajudar Timor-Leste”

As relações entre a Austrália e a UE estiveram em debate no ISEG, em Lisboa. O DN falou com Nick Bisley, professor de Relações Internacionais da Universidade La Trobe, em Melbourne, sobre como no Indo-Pacífico se sente a guerra na Ucrânia, mas sobretudo a ascensão da China. Timor foi outro tema abordado na conversa.
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Para um país tão distante da Europa como é a Austrália, qual o impacto que tem a atual  guerra na Ucrânia?
Há algumas coisas importantes que afetaram os australianos de forma bastante significativa. Uma delas foi, creio eu, um verdadeiro choque, pelo facto de uma guerra em grande escala ser algo que um Estado pode fazer novamente, um país usar a força militar para conquistar o território de um vizinho, desrespeitar a soberania deste, violar a Carta das Nações Unidas. E do ponto de vista dos australianos, cidadãos de uma potência média no sistema internacional, as grandes potências exercerem o seu peso com recurso a força militar faz com que se fique bastante preocupado. A segunda coisa tem a ver com a China e a relação da Rússia com a China, e o facto de Vladimir Putin ter premido o botão de início da invasão dias depois de se encontrar com Xi Jinping em Pequim para a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno. Claramente, teve algum tipo de bênção do líder chinês.

A Austrália está preocupada com a aliança entre a China e a Rússia?
Sim. Duas potências autoritárias a trabalhar em conjunto para promover interesses partilhados é muito desconcertante para um país como a Austrália, que tem um interesse grande no statu quo e no primado do direito internacional. O que nos deixa também um pouco preocupados é o facto de as dimensões mais ambiciosas e de maior risco na política externa chinesa parecerem ter ganho peso, evidenciado por isso. Se tivéssemos uma China cautelosa, cuidadosa e moderada, estou bastante confiante de que Putin teria ouvido um não de Pequim. Portanto, nós, australianos, ficámos muito desconcertados com a invasão da Ucrânia e com o papel que a China desempenha com o seu apoio tácito e cada vez mais explícito. Portanto, é realmente reforçado o sentimento que temos no Indo-Pacífico de que a China está decidida a mudar o ambiente internacional, está preparada para assumir alguns riscos para o fazer, e estamos a começar a descobrir como fazê-la recuar, trabalhando com outros para o conseguir.

Quando a China fala do mar do Sul da China e de Taiwan e diz que são assuntos internos, como reagem os australianos? Vê essa ambição estratégica e territorial da China como uma ameaça para a Austrália?
Não vejo como uma ameaça no sentido de que não temos nenhuma disputa territorial com a China, não somos como o Japão, que tem reivindicações territoriais concorrentes. Mas vemos como ameaça haver um país que não está preparado para aceitar as regras existentes. Por exemplo, a decisão do Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia em 2016 a favor das Filipinas a China ignorou-a, o que é um alerta vermelho para a Austrália. A questão de Taiwan é complexa para a Austrália, pois temos uma política de “Uma Só China” como a maioria dos países, o que torna difícil a gestão da diplomacia, mas claramente, como quase todos os países da região e certamente todos os países liberais do mundo, não quer ver  uma solução implementada pela força. E o que vemos neste momento é uma China que se sente cada vez mais confortável a usar a força, a desrespeitar o direito internacional, a desconsiderar as opiniões e pontos de vista dos seus vizinhos e a agir cada vez mais como uma potência intimidante na região, e isso não é algo com que estejamos felizes.

AUKUS e QUAD são completamente diferentes, mas ambos são respostas da Austrália a estas ambições da China?  Como funcionam?
Então comecemos pelo AUKUS, que na realidade tem duas partes. Uma parte é simplesmente um programa de aquisição de submarinos. Portanto, trata-se da aquisição, manutenção e implantação de submarinos movidos a energia nuclear pela Austrália e realmente precisamos de ajuda em todos os aspetos. Não podemos produzi-los, não podemos mantê-los e não podemos implementá-los neste momento, por isso precisamos de um apoio significativo. O segundo componente, o segundo pilar, como é chamado, é sobre a partilha de tecnologia para desenvolver capacidades de alta tecnologia de próxima geração, algumas delas diretamente relacionadas com questões de segurança, caso dos drones submarinos e similares, mas a maior parte, na verdade, tem a ver com a infraestrutura. Trata-se de cabos submarinos, computação quântica e coisas do género, e o que a Austrália, os EUA e o Reino Unido estão a tentar fazer é dizer que nesta competição com a China não se trata apenas de Forças Armadas tradicionais, submarinos e porta-aviões, mas também é uma competição que vai ser travada nas fronteiras da alta tecnologia, no ciberespaço, e essas são áreas em que precisamos de ajuda para nos defendermos, tal como todos os outros, e que, se conseguirmos esse tipo de reforço da nossa infraestrutura, poderemos ser mais resilientes perante o que será uma competição de largo espetro em todos os domínios.

E o QUAD é mais informal?
Sim. O QUAD é engraçado, porque começou como um acordo de segurança quadripartido bastante padronizado e parecia que a Austrália, o Japão, a Índia e os EUA reuniriam as suas Forças Armadas e descobririam como colaborar, especialmente no domínio marítimo, para fazer recuar a China. E no entanto, depois de alguns anos, a questão afastou-se muito da segurança, e se falarmos com um responsável de qualquer dos quatro países, ele dirá: não, o QUAD não é sobre segurança. O QUAD é sobre infraestrutura, é sobre consciencialização do domínio marítimo, e há cerca de 18 ou 19 áreas nas quais estamos a trabalhar e todas elas estão tangencialmente relacionadas com a segurança, mas não diretamente, imagino-as um pouco como o pilar 2 do AUKUS e figuram no apoio a estes países que tentam lidar com um ambiente internacional mais competitivo. Portanto, não está a aproveitar capacidades acrescidas em termos militares tradicionais, mas sim a fornecer uma espécie de infraestrutura de segurança mais robusta para ajudar estes países a lidarem com novos desafios. Há pessoas na Austrália, na Índia, no Japão e nos EUA que querem que o QUAD seja como a NATO, ou pelo menos um tipo de organização militar mais concreta, que exista para conter a China, mas os quatro países de momento simplesmente não estão interessados em fazer isso.

Mencionou na sua conferência aqui em Lisboa que existe uma estreita relação de cooperação militar com o Japão. Podemos dizer que no Indo-Pacífico o Japão é hoje o aliado mais importante da Austrália?
Sim, depois dos Estados Unidos, o nosso parceiro de segurança mais próximo, por uma margem considerável, é o Japão. Há toda uma série de acordos que temos em torno da partilha de informações, sobre o envio de tropas, sobre o estatuto das forças. Fazemos uma série de exercícios militares conjuntos. Os seus militares, ou a sua força de autodefesa, utilizam o território australiano para fazer treino. Temos profundidade estratégica, eles não, e também colaboramos em vários fóruns multilaterais e somos ambos parceiros dos Estados Unidos. Por isso é uma grande parceria para nós e para o Japão. Não gostaria de exagerar a sua importância só porque ambos os países são relativamente pequenos em termos do equilíbrio estratégico na Ásia, mas é uma espécie de indicativo de como o Japão e a Austrália estão a olhar para uma região que ambos veem cada vez mais ameaçada e desestabilizada. Temos os EUA, que desempenham um papel muito importante, mas o trabalho que fazemos uns com os outros também é tentar lidar e gerir esse ambiente de segurança.

Sobre a influência da China na Austrália. Existem relações económicas muito estreitas, benéficas para ambos os lados, mas também existe alguma atividade menos  transparente da China. Como está a Austrália a reagir a esta busca de influência política  por parte da China?
A China continua a ser o nosso parceiro comercial mais importante. Essa é a parte notável. Continua a ser o nosso principal parceiro comercial e a relação tem vindo a crescer há anos. Mas por volta de 2015, 2016, tornou-se evidente na Austrália que o governo chinês, tanto o governo diretamente com os seus serviços de segurança, bem como vários indivíduos que tinham relações diretas com cidadãos chineses ou estavam relacionados com o Partido-Estado, estava a tentar influenciar diretamente a nossa política interna. Um senador trabalhista repetiu a propaganda do Partido-Estado sobre o mar do Sul da China num evento público. Havia alguns representantes governamentais estaduais e locais de baixo escalão que recebiam dinheiro. Portanto, houve um reconhecimento cada vez maior de que a China via a política interna australiana como um lugar onde queria competir e tentar influenciar. E isso para as elites políticas australianas foi realmente uma linha vermelha que a China tinha ultrapassado, aquela sensação de que a China estava a interferir nos nossos assuntos de formas que eram, em alguns casos, bastante desajeitadas, mas que tinham claramente a intenção de interferir nos nossos assuntos internos. E é um país que alegadamente afirma pensar que a soberania é a coisa mais importante e que ninguém deve dizer a ninguém o que fazer. A China estava claramente a agir de uma forma que considerava extraterritorial e isso foi um importante catalisador para a mudança de pensamento na Austrália, afastando-se de uma avaliação mais otimista do que a China representava para o ponto onde estamos agora, que é uma visão muito pessimista sobre o que a China significa para a nossa região e para o mundo.

Timor-Leste, do ponto de vista australiano, é visto como uma nação de sucesso nestas duas décadas de independência? A antiga colónia portuguesa é importante para a política externa da Austrália? Como lidam os australianos com este pequeno país junto à sua fronteira norte?
A Austrália tem uma relação complexa com Timor. Durante a Guerra Fria, quando aconteceu a primeira independência de Timor e depois a Indonésia invadiu o país, penso que a nossa atitude foi bastante ditada pela Realpolitik. Aceitámos a invasão decidida por  Jacarta e por isso temos um passado difícil com Timor. Penso que a sensação neste momento é que a Austrália quer paz e estabilidade em todos os países pequenos da sua vizinhança, como Timor-Leste, as Ilhas Salomão, Papua-Nova Guiné, Fiji e outros. A nossa perspetiva é que queremos que se desenvolvam, que sejam estáveis, que sejam prósperos e que encontrem o seu próprio caminho. Queremos ajudá-los a fazer isso e que façam isso nos seus próprios termos, e não sejam intimidados ou comprados por outros, de qualquer tipo. A preocupação que acho que a Austrália tem com Timor é que este país tem um recurso, os hidrocarbonetos, que está a acabar. E há alguma preocupação de que  possa estar maduro para a influência chinesa entrar e fornecer uma espécie de conjunto de saídas para o seu problema de desenvolvimento, mas que tal venha com um preço... um preço que a Austrália vê como elevado, e que é, basicamente, o país subordinar-se à influência chinesa. Então acho que a visão do governo australiano é, em primeiro lugar, não querer que os países sintam que estão em dívida com ninguém, quer que encontrem o seu próprio caminho, e certamente não deseja que estejam em dívida para com a China. Não queremos um posto avançado chinês tão perto da fronteira australiana.

É importante que haja algum tipo de parceria entre Portugal e a Austrália em relação a Timor-Leste, ou cada país age separadamente?
Claro, acho que há razões pelas quais a Austrália e Portugal poderiam, e provavelmente deveriam, trabalhar juntos para ajudar Timor-Leste, pois temos interesses comuns. Somos democracias liberais, interessadas no comércio. Queremos uma ordem estável baseada em regras, que a prosperidade e a soberania prevaleçam. E penso que há alguns interesses comuns em garantir que a Austrália e Portugal, bem como a Indonésia e outros países, possam trabalhar juntos para ajudar Timor a encontrar o seu caminho. E sobretudo garantir que o país não acabe por ser apenas uma espécie de peão numa competição entre potências. E então acho que, do ponto de vista de Portugal, há um legado histórico claro ali, o que vos dá algum interesse comum no que é para a Austrália parte do quintal.

Os EUA são o parceiro de segurança mais importante da Austrália. Todos falam sobre como os EUA poderiam ser diferentes dependendo da vitória de Joe Biden ou Donald Trump. Do ponto de vista australiano, a América é um parceiro em que sentem que podem sempre confiar? 
Penso que a sensação na Austrália agora é que, embora uma vitória de Trump seja preocupante, no geral, a experiência após a primeira Administração dele e, provavelmente mais importante, o facto de termos relações profundas, de defesa, de intelligence, empresariais, culturais, dá muita estabilidade e profundidade ao relacionamento. O próprio presidente, qualquer presidente, na verdade, parece não ter uma influência significativa nas coisas até agora. Temos um défice comercial com os EUA, o que ele gosta [risos]. Por isso temos algo que sempre nos mantém em boa situação com Trump. Trump não está muito interessado na política externa como tal, e muito dependerá da sua equipa de política externa, de quem terá a influência sobre o presidente. Creio que, genericamente, os EUA, se Trump vencer, continuarão a fazer o que estão a fazer a nível global, mais ou menos. Se  o seu foco mudar e, mais importante ainda, se o seu foco se estreitar, irá estreitar o seu foco para a nossa região. Então acho que provavelmente ficaremos bem de qualquer maneira. É a Europa que penso que provavelmente se sentirá mais preocupada, pois se nos EUA tiverem de escolher áreas nas quais se focar, se não se quiserem concentrar em tudo, então suspeito que se calhar veremos uma redução do foco na Europa, e não uma redução do foco no Indo-Pacífico. Então, sendo um pouco egoísta do ponto de vista australiano, acho que no jogo das probabilidades ficaremos bem, mas os nossos amigos na Europa podem não ter tanta sorte, infelizmente.

A Austrália tem alguma tradição de presença no Médio Oriente, desde o corpo expedicionário Anzac, na Primeira Guerra Mundial, até integrar a coligação internacional recente contra o Estado Islâmico. Este conflito entre Israel e o Hamas que dura desde o massacre de 7 de outubro tem algum tipo de repercussão na Austrália? Existe algum debate?
Há um debate surpreendentemente emocionante na Austrália, visto que fica muito longe. Temos uma comunidade judaica bem pequena. E uma pouco maior  comunidade islâmica, mas com muitas heranças nacionais diferentes. Da Indonésia e da Malásia, do Médio Oriente, de África. Bastante diversificada. Mas a questão em si é bastante emocional e vemos isso nos campus. Os nossos estudantes estão realmente entusiasmados e são em grande parte pró-Palestina, não inteiramente, mas a maioria parece ser. Politicamente falando, penso que é um problema para a Austrália, na medida em que há um conjunto de princípios que estão em jogo: quais são as regras que regem a guerra? O que se pode fazer em resposta a um ataque terrorista? As atrocidades de outubro pelo Hamas foram terríveis, então o que se pode fazer contra isso dentro do direito internacional? Se se violar o direito internacional em resposta a esse facto, o que acontece? Mas não nos vamos envolver militarmente. Na verdade, de forma mais ampla, mesmo se esse conflito se alargasse, mesmo se o Irão fosse envolvido e o conflito se expandisse, ainda penso que a Austrália ficaria muito longe disso. Dado o nosso foco no Indo-Pacífico e a forma como realmente restringimos esse foco, as probabilidades de a Austrália estar envolvida como esteve no Iraque ou no Afeganistão, se algo lá acontecer novamente, são hoje mais baixas do que eram no passado recente.

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