Um cartaz com o “casamento fúnebre” de Macron e Le Pen ao lado de outro da Nova Frente Popular, a aliança de esquerda.
Um cartaz com o “casamento fúnebre” de Macron e Le Pen ao lado de outro da Nova Frente Popular, a aliança de esquerda.EPA/MOHAMMED BADRA

Até quando vai funcionar a "frente republicana" em França?

Sondagens apontam para a vitória da extrema-direita na segunda volta, mas longe da maioria absoluta que se previa após a primeira. Desistências de candidatos à esquerda e ao centro para evitar dispersão de votos contra o Reunião Nacional terão funcionado. Tensão é elevada após atos de violência durante a campanha.
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As sondagens apontam para a vitória do Reunião Nacional (RN) na segunda volta das legislativas francesas, mas deixam o partido aquém da maioria absoluta que Marine Le Pen e Jordan Bardella queriam para poderem formar governo. Caso este cenário se confirme, isso significa que a “frente republicana” contra a extrema-direita funcionou. Mas há mais de 20 anos que tem vindo a enfraquecer e a grande dúvida é saber: até quando vai aguentar?

O RN deverá ser o maior partido na Assembleia Nacional, com a sondagem Ipsos Talan a dar-lhe entre 175 e 205 deputados (num total de 577). A do Ifor admite que possa ter entre 170 e 210, ainda assim longe da maioria absoluta de 289. Em segundo lugar ficará a aliança de esquerdas da Nova Frente Popular, que pode ter entre 145 e 175 deputados, segundo a Ipsos, ou entre 155 e 185, de acordo com a Ifor. O campo do presidente Emmanuel Macron, que resolveu antecipar as eleições após o desaire nas europeias, terá entre 118 e 148 representantes ou entre 120 e 150, dependendo da sondagem.

Um cenário muito diferente daquele que se previa após a primeira volta, na qual a extrema-direita foi primeira em quase 300 dos 577 círculos eleitorais. O sistema francês - ao contrário do inglês, onde só existe uma volta - obriga os candidatos a terem mais de 50% dos votos (e mais de 25% dos inscritos) para não terem de ir à segunda volta, onde todos os que tiveram mais de 12,5% podem participar. No último domingo, só 76 candidatos foram eleitos e, fruto do aumento da participação (quase mais 20 pontos do que em 2022), estavam previstas mais de 300 corridas a três ou até a quatro na segunda volta.

Foi aí que entrou em cena a “frente republicana” para “fazer barragem” à extrema-direita, com mais de 200 candidatos da esquerda e do centro a desistirem, transformando a maioria dessas “triangulares” (as corridas a três) em duelos que permitem concentrar o voto anti-RN numa só pessoa. O problema é que a “frente republicana” não tem a força do passado e não há garantias de que os eleitores estejam dispostos a fechar os olhos para votar num candidato do campo oposto só para evitar que a extrema-direita chegue ao poder. Marine Le Pen acredita que há “uma hipótese séria” de o partido conseguir a maioria absoluta.

Jordan Bardella, o candidato a primeiro-ministro se o RN tiver maioria absoluta. FOTO: Bertrand GUAY / POOL / AFP

Um conceito com 70 anos

A ideia da “frente republicana” remonta a 1955, ainda na IV República, quando o então primeiro-ministro Edgar Faure decide antecipar as eleições à procura de uma maioria que ponha fim ao clima de instabilidade política. Quatro partidos do centro-esquerda e centro-direita uniram-se numa aliança eleitoral para fazer face ao movimento populista de extrema-direita de Pierre Poujade, que nasceu da defesa dos comerciantes e artesãos face ao perigo das grandes superfícies e era contra o parlamentarismo. Um movimento ao qual pertencia Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine e fundador da Frente Nacional, atual RN. A expressão foi cunhada por um jornalista do Express e repetida no jornal Le Monde.

A “frente republicana” tem sido uma constante nas várias eleições em França desde a década de 1980, à medida que o voto na Frente Nacional foi aumentando. Mas nunca mais foi uma aliança pré-eleitoral, como na sua génese. O exemplo máximo dessa “barragem” à extrema-direita deu-se na segunda volta das presidenciais de 2002, que opôs Jacques Chirac (da União por um Movimento Popular, UMP) e Jean-Marie Le Pen. Todas as forças políticas, incluindo os socialistas de Lionel Jospin que tinham sido os grandes derrotados na primeira volta, apelaram ao voto em Chirac, que ganhou com 82% do sufrágio.

A partir daí, a “frente republicana” tem vindo a esfumar-se, com a entrada em cena do “ni-ni” nas eleições locais de 2011. O então presidente Nicolas Sarkozy, da UMP, apelou aos eleitores para não votarem “nem na Frente Nacional, nem nos socialistas” na segunda volta, porque estes se tinham aliado a partidos da esquerda radical. Ainda que enfraquecida, a “frente republicana” sobrevive, com o RN a eleger apenas oito deputados em 2017, quando se tinha qualificado para quase 300 “triangulares” - em 2019, saltou contudo para os 89.

Nas presidenciais, as dificuldades da “frente republicana” têm sido claras, com Marine Le Pen a passar por duas vezes à segunda volta frente a Macron. Se em 2017 o presidente conseguiu 66% dos votos, apesar de só socialistas e republicanos (herdeiros da UMP) terem apelado ao voto nele, nas de 2022 já só teve 59%, apesar de um maior consenso entre os partidos para tentar travar a candidata da extrema-direita. Até Jean-Luc Mélenchon, polémico líder da França Insubmissa (LFI, esquerda radical), apelou ao voto “contra o RN”, sem defender votar em Macron. A dúvida é saber o que acontecerá em 2027, quando Le Pen deverá voltar a tentar e o atual presidente não pode ser candidato.

O antigo líder e candidato presidencial da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon. FOTO: EMMANUEL DUNAND / AFP

Divisões

Nestas legislativas, o conceito do “ni-ni” de Sarkozy reapareceu na última semana de campanha, com alguns candidatos do campo do presidente a recusarem desistir para os candidatos da LFI, que fazem parte da Nova Frente Popular. Isto apesar dos apelos do presidente e do primeiro-ministro, Gabriel Attal. “Hoje o perigo é uma maioria dominada pela extrema-direita e isso seria catastrófico”, disse. Também n’Os Republicanos, herdeiros da UMP e divididos no apoio ao RN, houve resistência a desistir, já que consideram que a “extrema-esquerda é a verdadeira ameaça”.

Mais de metade das desistências foram de candidatos da esquerda, com Mélenchon a dizer desde o primeiro momento que os seus candidatos iriam desistir caso tivessem ficado em terceiro lugar numa corrida em que o RN tinha ficado à frente. A disciplina partidária foi quase total. Outros partidos da aliança de esquerda fizeram o mesmo. Mas o apelo ao voto contra a extrema-direita poderá não funcionar, com os eleitores preferindo ficar em casa a votarem noutro partido.

“Será que os eleitores de esquerda se voltarão para os candidatos de Macron depois de terem denunciado, durante 7 anos, as políticas liberais do presidente, a sua muito impopular reforma das pensões e a recente Lei da Imigração, aprovada com a ajuda do RN?”, questionava o jornal belga Le Soir. “E, inversamente, os eleitores centristas, depois de terem ouvido o pior da Nova Frente Popular antes da primeira volta, vão engolir o sapo na única esperança de evitar o pior?”

O primeiro-ministro Gabriel Attal em campanha num mercado em Paris. FOTO: Geoffroy VAN DER HASSELT / AFP

E depois há a questão: para quê? Apesar deste ressurgir aparente da “frente republicana” poder travar a maioria absoluta da extrema-direita, deixará uma Assembleia Nacional bloqueada - já que parece totalmente fora de questão uma aliança entre o campo de Macron e a LFI, que deverá ser o maior partido da oposição no Parlamento e não é claro que solução poderá ser encontrada. Por lei, Macron não poderá convocar novas eleições antes de ter passado um ano.

Após uma campanha marcada por meia centena de agressões contra candidatos e as suas equipas, a tensão está ao rubro para o dia eleitoral. O ministro do Interior, Gérald Darmanin, anunciou o destacamento de 30 mil polícias em todo o país, cinco mil deles só em Paris e arredores, para garantir que “nem a extrema-esquerda, nem a extrema-direita” criam “desordem”. Uma manifestação contra a extrema-direita foi convocada por uma organização antifascista parisiense para diante da Assembleia Nacional, às 20.00 horas locais quando são conhecidos os primeiros resultados. Le Pen apelidou essa iniciativa de “assalto ao Capitólio versão extrema-esquerda francesa”.

susana.f.salvador@dn.pt

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