Aqui, Kiev. As duas faces da guerra
Às cinco e pouco da madrugada, Tanya acordou, foi à cozinha beber água e um estrondo como nunca tinha ouvido projetou-a para trás, ao mesmo tempo que lhe caíam em cima os vidros da janela, feita em mil pedaços. Levantada do chão, nem precisou de acordar a família - o míssil que atingiu em cheio o apartamento do lado deixou-lhe a casa em alerta. Ela, o marido e três filhos agarraram nalguns objetos, roupa sobretudo, que achavam que poderiam ser úteis, e saíram de casa. Cá fora, toda a fileira de apartamentos dos vizinhos ardia. O incêndio causado pelo míssil havia de provocar uma explosão do sistema de gás.
Com fumo, chamas, medo e frio, Tanya nem reparou nos vizinhos que também conseguiram escapar. Duas pessoas, de um prédio de 144 apartamentos, morreram. Ela não sabe, ainda, quem são. A zona residencial de Obolun fica a 15 quilómetros do centro da capital, Kiev, e está bem dentro dos limites da cidade. Do outro lado da rua, há uma escola primária, um campo de futebol com relva sintética acabado de construir. Quando falamos com Tanya, já os bombeiros apagaram as chamas e os dois filhos mais velhos e o marido voltaram a casa para, agora com mais tempo, pensar bem que mais objetos querem levar dali.
Nesta noite, e nas próximas, a família ainda não sabe onde vai ficar. Pode ser num abrigo, num ginásio, numa escola, numa estação de metro ou em qualquer lado onde se consigam acomodar.
Dos quase 660 moradores do prédio, os 150 que ainda ali estavam terão o mesmo destino. Victor, 70 anos, tem na mão apenas um saco de compras com alguma roupa. Vasculhou nas gavetas o que achava que precisava, pelo meio da fuligem que sobra depois da mistura do fumo e da água. Tem as mãos negras. Atende o telefone. Diz apenas que está vivo.
Os destroços estão espalhados por toda a fachada do edifício - há televisões, micro-ondas, bicicletas, cadeiras, sofás, móveis. Tudo num amontoado de ferros retorcidos, calcinados, expelidos pelas janelas como se fossem confetis atirados do alto de uma varanda.
E vidas inteiras de coisas, objetos, memórias, tralhas que fazem que a casa seja um lar, inutilidades que nos trazem conforto, que sabemos onde estão e porque as guardamos, perdidas para sempre. Morrer não é a única baixa de guerra. Perder parte da vida também é a morte de uma parte de cada um de nós.
No lado ocidental de Kiev, a 27 quilómetros do centro, um parque de recolha de autocarros é, hoje, uma plataforma gigante de recolha de gente. "Só hoje, mais de 60 autocarros, com 60 pessoas cada, partiram daqui", assegura o responsável pela proteção civil, que coordena a operação de resgate e reencaminhamento de deslocados. "Além das dezenas de carrinhas e carros particulares com voluntários que conduzem as pessoas até centros de abrigo." Ao certo, ele não sabe quantas vidas se cruzaram naquele terreiro gigante nesta segunda-feira. Bilóorodka fica perto de duas cidades pequenas que estão debaixo de fogo há vários dias.
Gostomel e Butcha estão no caminho que os russos querem fazer até Kiev. Muitos foram resistindo, mas chegou a altura de fugir. São sobretudo idosos que ficaram para trás, mas que agora são obrigados a partir. Dois autocarros transformaram-se num verdadeiro lar de idosos com rodas. Andarilhos, bengalas, macas, cadeiras de rodas, tudo empilhado. Com ternura, paciência, cuidado e força física, os jovens voluntários, ucranianos e internacionais, ajudam a colocar cada idoso no seu lugar, rumo a um outro lugar - um abrigo ou uma estação de comboio - que ainda não será o destino final. "Esta é só a primeira etapa, retirar as pessoas da zona de combate", esclarece Bogan Danyiluk, o senhor da proteção civil.
Mas não há só idosos. Há mulheres e crianças, algumas com meses. Na central de recolha de autocarros, há pão, chá, sandes, sopa quente. Nos breves minutos que medeiam entre a chegada a pé e a partida, os deslocados são apoiados da forma possível. Há malas, sempre as malas, com vidas inteiras selecionadas a correr e peças escolhidas mais por instinto do que por necessidade. Estas pessoas despedem-se umas das outras, provavelmente cada veículo que sai dali tomará direções diferentes, tão cedo não se conseguirão rever. Há lágrimas de despedida, sorrisos de vitória por terem escapado até aqui, abraços de saudade quando ainda estão frente a frente. Um carro tem presa na antena do rádio uma fronha branca. De repente, é uma bandeira. Um aviso. De paz.
Era, apenas e só, isso que todos queriam. Paz, para terem a vida de sempre, ainda que essa vida seja dura. Mas é a vida de cada um, sem ter de mudar de lugar, de pedir abrigo, de ter de escolher em segundos o que guardar na mala.
Durante toda a manhã, ouvem-se disparos de artilharia não muito longe.
O chão, por vezes, estremece. A guerra não são só as mortes, mas as vidas que transforma.