Fez um diagnóstico dos problemas de Angola. Todos eles são bastante complexos. Não será fácil passar as soluções para a realidade?Sim, não é fácil, porque Angola, a meu ver, nesses 50 anos, deixou-se armadilhar num conjunto de problemas que se transformaram em problemas estruturais e condicionam e asfixiam o desenvolvimento económico e social do país. O primeiro grande problema é que, quando há a transformação dos movimentos de libertação nacional, no caso de Angola teve muito sucesso com a obtenção da independência, e depois a consolidação da independência é sempre difícil. Vimos em África e noutros países, na América Latina, na Ásia, os movimentos de libertação nacional, quando se transformam em governo, em construtores do futuro, há muito mais problemas que se configuram, porque passar do campo de batalha para governar um país não é fácil. E depois, em Angola, dos 50 anos de independência, 26 foram passados em luta armada, portanto Angola deixou-se armadilhar no conflito prolongado, que normalmente também asfixia e condiciona o desenvolvimento dos países. E o terceiro grande ponto é o próprio modelo de desenvolvimento económico e social, que baseia-se sobretudo no petróleo, uma economia de enclave, que depois não tem interação com os outros setores da economia nacional. Gera 96, 97% das receitas do país, e o que é que se passa? O país nunca foi capaz de diversificar de facto a sua economia, digamos, de mobilizar as receitas do petróleo para fazer políticas contracíclicas e apoiar fortemente a agricultura, a industrialização ou reindustrialização do país, porque Angola tinha uma base industrial forte, a indústria de manufatura e a construção representavam cerca de 18,2% do PIB em 1973. Hoje a indústria representa 4% do PIB, portanto é uma queda impressionante. A agricultura representava mais de 20% do PIB, hoje representa 4% a 5% com todo o potencial que Angola tem, é um país de solos muito férteis, tem 35 milhões de hectares de terra arável, só 16 ou 17% é que estão a ser utilizados. Mas depois é essa questão da armadilha a que os economistas chamam a doença holandesa, de quando os holandeses descobriram o campo de gás de Groningen: têm ali uma receita fácil de um recurso vital, proporcionam receitas financeiras e depois o país fica ancorado a esse tipo de receitas e não olha para a diversificação da economia. E o que se passa hoje a esse nível?Hoje temos a consequência da desaceleração do preço do petróleo nos mercados mundiais, a queda da procura, a eletrificação crescente das economias e Angola está numa situação extremamente difícil. O Fundo Monetário Internacional estimava que as reservas internacionais financeiras do país, no fim do ano passado, eram de 15,7 mil milhões de dólares e este ano vamos chegar a pouco mais de 12 mil milhões de dólares, é uma perda de 3 mil milhões de dólares no ano. É muito pouco, não é?É muito pouco, é o nível mais baixo, e depois a isto ainda configura uma outra característica nociva, que é Angola nesta altura não consegue recorrer aos mercados normais internacionais da dívida. No ano passado pediram ao [banco] J.P. Morgan cerca de mil milhões de dólares, que vêm com garantias de 1900 milhões, se Angola não pagar os empréstimos até ao fim deste ano. Isto é uma das coisas que mais me preocupa. A gestão da dívida pública ao longo destas décadas foi péssima. Repare que Angola, e isto é estudado pelo CEIC, que é o Centro de Estudos de Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, que é dirigido pelo professor Manuel Alves da Rocha, um dos mais destacados economistas angolanos, ele disse que entre 2002 e 2015, Angola granjeou cerca de 740 mil milhões de dólares de receitas petrolíferas, os royalties, e desses só conseguiram rastrear a aplicação de 110 mil milhões, o resto desapareceu. A corrupção também é o grande elefante na sala. Se o país tivesse usado os 730 mil milhões de dólares que desapareceram a investir na educação, na saúde, na diversificação da economia, seria um país completamente diferente. E, por exemplo, no que não investiu em refinarias?Sim, a refinaria que existe é a de Luanda, a que existia no tempo colonial. Há um grande debate em Angola sobre, se a esta altura, o devia fazer ou não. É um debate que já se devia ter tido. O setor petrolífero é um dos grandes sucessos da independência do país. Em 1973 Angola produzia pouco mais de 200 mil barris por dia, e chegou a produzir 2 milhões depois da independência, portanto aumentou 10 vezes o setor, reorganizou-se, foi um dos grandes movimentos estratégicos que o país fez. A culpa não é do petróleo em si, é da falta de políticas públicas adequadas, que utilizem os recursos granjeados pelo petróleo para fazer a diversificação da economia, que realmente não funcionou até agora. Volto à gestão da dívida pública, porque entre 2002 e 2008 é o maior período de desenvolvimento económico que Angola experimentou nestes 50 anos de independência, é uma espécie de miniciclo dourado. Os preços do petróleo, nessa altura, nos mercados internacionais, estavam sempre a subir, e em 2008, em julho, atingiram o recorde com 147 dólares por barril, e depois caiu. Nesse período, a dívida pública angolana, em vez de ser aliviada, porque havia recursos para isso, foi duplicando, em 2007 era de 14 mil milhões de dólares, passou ao dobro em 2008 e chegámos a 2019 com 96 mil milhões de dólares. Hoje está no pior dos mundos, não tem recursos financeiros suficientes para fazer sequer face, muitas vezes, ao serviço da dívida. Isso sacrifica tudo, sacrifica investimento em educação, investimento em saúde, porque nestes 50 anos realmente não houve uma aposta estratégica na educação e na saúde, e sem isso não se consegue construir um país.. Ainda se culpa o passado colonial. Mas isso hoje não tem muita credibilidade na sociedade angolana. Ainda recentemente, quando esse argumento voltou a ser invocado, curiosamente quem respondeu foi a hierarquia religiosa, que fez uma lista, digamos, dos ativos que o regime colonial português tinha deixado em Angola, para reparar o caminho de ferro de Benguela, um extraordinário ativo estratégico do país. Em 2018, felizmente, com a intervenção do governo, conseguiram reativar o caminho de ferro de Benguela, pode ser uma das grandes apostas para o futuro, porque são 1300 quilómetros, ligam Lobito ao Moxico, e depois à zona produtiva de cobre da Zâmbia, e à zona produtiva de cobalto da República Democrática do Congo, e com estes recursos que são fundamentais na geografia atual das matérias-primas internacionais, combinado com o alto potencial que Angola tem. O país tem 31 das 51 matérias-primas estratégicas que são consideradas vitais para o desenvolvimento da nossa civilização e que hoje estão muito no centro da geopolítica mundial.Um campo com muitas potencialidades. Angola já tem uma mina licenciada, do Longonjo, perto do Huambo. Tem investidores internacionais, sobretudo ingleses, vai extrair cerca de 2,5% da produção mundial de terras raras, cerca de 20 mil toneladas. E o que é que eu defendo aí? É que Angola tem de agarrar-se a estes recursos e trabalhar com os países vizinhos. Com a riqueza que têm em nióbio, em cobre, em cobalto, e noutros recursos, aliados ao potencial da Zâmbia e da República Democrática do Congo, pode criar um epicentro mundial destas matérias-primas. E há estudos muito interessantes, que eu cito no livro, de think tanks ingleses, que chegaram à conclusão que, se as fábricas forem estabelecidas nestes países, quer os produtos eletrónicos, quer os carros elétricos e outros têm custos 40% inferiores. Seria criar toda a cadeia de valor no país, e isso pode ser extremamente importante para o seu desenvolvimento. .“Ao contrário do que dizem certas correntes de historiadores, o regime português não era suave coisa nenhuma. Era um regime brutal e cruel de opressão sobre o povo angolano.”.Um governo determinado só por si não chega porque não há recursos humanos.Nesta altura não há quadros, é o maior défice que o país tem e, portanto, aí tem que acelerar o investimento maciço em recursos humanos e eu defendo que deve recorrer às tecnologias mais avançadas que existem hoje, por exemplo a inteligência artificial com os modelos chamados de linguagem escalada. Nós temos em Portugal duas agendas mobilizadoras de inteligência artificial e uma das áreas é desenvolver esses modelos de linguagem escalada que podem potenciar as aprendizagens de uma forma impressionante e depois também podem intervir ao nível da gestão da administração pública, da simplificação e da otimização do funcionamento. E esses modelos também são importantes, quer na agricultura, quer nas ciências de saúde, outras duas áreas vitais para Angola, mas isso passa por parcerias estratégicas com Portugal..António Mateus: “Os soldados não protegeram a população e fecharam os olhos aos apoios militares cubanos”.Conta ter ficado marcado na infância por ter visto angolanos agrilhoados a caminho das explorações.Eu nasci em Catabola, que fica no centro geodésico do país. Um dia estava a passear de bicicleta, quando tinha cerca de nove anos. Passei ao pé do posto administrativo e o chefe do posto e os cipais, que eram os seus ajudantes, tinham ido às aldeias para arrebanhar camponeses, para os forçarem a trabalhar nas roças de café no norte. Estavam algemados pelas mãos e pelos pés eu perguntei porque é que estavam a fazer aquilo. Senti que era profundamente errado. E isto mostra que, ao contrário do que dizem certas correntes de historiadores em Portugal, o regime português não era suave coisa nenhuma. Era um regime brutal e cruel de opressão sobre o povo angolano. O movimento de libertação nacional era incontornável e foi um grande avanço ter-se conseguido essa a libertação e a independência. Mas é evidente que a vida do povo angolano, de milhões e milhões de pessoas das classes mais vulneráveis, não melhorou nestes 50 anos e continuam a enfrentar problemas seríssimos. As organizações mundiais indicam que em Angola há cerca de 11,6 milhões de pessoas que vivem em pobreza extrema, isto é, passam fome 11,6 milhões de pessoas. Mais do que a população portuguesa e o mesmo número de pessoas que vive em Luanda?É uma espécie de Luanda que sozinha passa fome. É algo que me deixa muito constrangido porque nenhuma sociedade se deve sentir confortável quando a maioria das suas pessoas vivem em condições miseráveis. Não é aceitável, sobretudo num país que tem as potencialidades que tem e a possibilidade de ter um futuro diferente. Aliás, agora fiz uma viagem de 4500 km por Angola, percorri várias províncias, o objetivo era mesmo sair de Luanda, uma cidade frenética, caótica e quase ingovernável. O resto do país é completamente diferente. Há maior solidariedade, apesar dos problemas todos. Estive no Huambo e no Cuíto, que é a cidade muito perto de Catabola onde também estudei. Tem muita gente jovem, a população com menos de 20 anos está entre 60 a 65%, são quase 23 milhões dos 36 da população. Tem que se dar saída a esses jovens. No Huambo conheci uma equipa que está à frente a um projeto que é a fábrica Oviemba, que estão a construir entre o Huambo e Cáala. E é a primeira fábrica em Angola que vai produzir paracetamol, medicamentos contra a malária, e outros que são absolutamente fundamentais para o país. Quando perguntei sobre os recursos humanos, disseram que contactaram todas as escolas do Huambo. Fizeram uma lista com 2 mil pessoas, encarregaram uma empresa internacional de captação de talentos para investigar aquelas pessoas. Desse número, 10 foram identificadas como génios. Angola tem esse potencial, os recursos estão lá.Com a independência, sentiu a sua integridade física ameaçada? E a sua família?Não. A minha família é sui generis, porque a minha mãe já nasceu em Angola, portanto eu sou a terceira geração em Angola e com uma ligação fortíssima ao país. O meu pai foi para lá novíssimo e a intenção deles era sempre permanecer. Mas acontece que eles falavam umbundo, a língua da zona onde nasci. Quando os movimentos de libertação começaram a aparecer, os líderes políticos desses movimentos cometeram um erro fatal porque em português diziam uma coisa, depois quando falavam em umbundo diziam o oposto, a atacá-los. E o meu pai tomou a decisão de vir. No meio daquelas lutas ideológicas e da fraqueza de algumas lideranças políticas não se encontrou o caminho correto. Essas pessoas podiam...Ter mantido um Estado funcional.O meu pai era industrial, tinha também lojas de comércio. A saída destas pessoas levou ao colapso da economia. Mas os processos são assim e eu fui desenvolvendo a minha consciência política. Ainda antes da independência, em 1973, com alguns companheiros criámos os Comités Amílcar Cabral (CAC) do MPLA. Depois começaram as dissensões dentro do MPLA e mais tarde houve a tentativa de golpe de Estado de 27 de maio de 1977. Nós não tivemos nada a ver com isso, mas o regime aproveitou para eliminar todos aqueles que consideravam dissidentes. Fui preso no fim desse ano e estive cerca de três anos na prisão de São Paulo. A DISA, a polícia política do MPLA, nessa altura era absolutamente sanguinária e descarregavam a raiva do poder totalitário no corpo dos presos políticos. Não foi fácil todo esse período. Eu depois, naquelas convulsões, perdi completamente o contacto com a minha família. Aliás, pensavam que eu já tinha morrido. Quando vim a Portugal, anos depois, foi uma festa..Angola aos Despedaços: 50 Anos Depois, que Futuro?António Costa SilvaGuerra e Paz248 páginas.Independência de Angola. 50 anos depois pede-se “um só povo, uma só nação”, mas as divisões ainda persistem.Angola proclamou independência entre tiros de festa e combates reais