Ana Mónica Fonseca: "Temos uma Alemanha mais assertiva, deixando para trás quaisquer laivos da Ostpolitik de Willy Brandt"
Nova diretora do CEI-IUL, Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, Ana Mónica Fonseca fala ao DN sobre a guerra na Ucrânia, o seu impacto no papel da Europa como ator global - tema da conferência que decorre esta quinta-feira e amanhã no ISCTE, em Lisboa - e a necessidade de a UE tomar posições claras na disputa entre EUA e China.
Hoje começa a conferência Europe as a Global Actor. A invasão da Ucrânia pela Rússia veio mostrar uma Europa mais unida do que nos habituámos a ver nos últimos anos. Este conflito vem de certa forma reforçar o papel da Europa no mundo?
O Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL quis, desde a primeira edição da Conferência Europe as a Global Actor em 2016, debater o crescente papel que a UE procura ocupar no contexto internacional. Se no início estávamos particularmente preocupados com o futuro desse papel global, ainda sob a reação ao desafio enorme que a crise dos refugiados colocou ao espírito da UE, agora estamos perante um outro tipo de desafio e, também, de reação por parte de Bruxelas. A guerra da Ucrânia é um momento-chave e definidor do futuro da UE. Vemos pela primeira vez uma tomada de posição firme e concreta dos líderes e instituições europeias em torno do apoio à Ucrânia e de penalização da Rússia de Putin. Julgo que essa posição acaba por reforçar o papel da UE como ator global, quer na perspetiva internacional, quer do ponto de vista dos próprios cidadãos europeus.
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Outra consequência desta guerra foi fazer os EUA virarem-se de novo para a Europa e para os aliados da NATO. Será uma tendência para continuar ou a América voltará a olhar para o Pacífico mal as coisas acalmem na Europa?
Ficou claro aos EUA que a Europa será sempre um aliado preferencial e que as bases em que assentam as relações transatlânticas estão ainda presentes nas mentes da maior parte dos decisores políticos. O Pacífico é ainda uma das regiões centrais da política externa americana e a rivalidade com a China mantém-se. A presidência de Joe Biden tem vindo a procurar restaurar a liderança dos EUA no sistema internacional. Para tal, é necessário não só recuperar a imagem externa dos próprios EUA, como também recuperar esse mesmo sistema internacional. Não consigo fazer previsões sobre quanto tempo demorará a chegar essa acalmia no continente europeu, mas acredito que não iremos ter um desvio das atenções norte-americanas da Europa tão cedo. Em última análise, os EUA precisam de ter uma Europa forte, coesa, para poderem voltar a concentrar-se noutras regiões. E enquanto a ameaça russa permanecer, acredito que esse desvio não se fará sentir.
Apesar de na Europa e na América estarmos muito focados neste conflito, o resto do mundo - América do Sul, África, grande parte da Ásia - não se mobilizou contra a Rússia nem aplicou sanções. Este é um conflito do Ocidente contra Putin e não do resto do mundo?
Mais do que uma diferenciação entre o ocidente e o resto do mundo, talvez faça mais sentido uma distinção entre as democracias e outros regimes políticos. As primeiras sanções foram aprovadas também pelas principais democracias globais, como a Austrália, Japão ou Coreia do Sul, que se juntaram à UE, aos EUA e às restantes democracias euro-atlânticas. Por outro lado, as consequências desta guerra estão a fazer-se sentir intensamente ao nível global. O aumento do preço dos combustíveis e as dificuldades de abastecimento, que se vêm juntar aos dois anos de pandemia, intensificam a crise económica que algumas regiões têm vindo a sentir. Recentemente, a OMC reviu em baixa as suas previsões de crescimento global e afirmou que iríamos assistir ao acentuar das crises alimentares nas regiões mais pobres do globo, devido à guerra na Ucrânia. Apesar de estar localizada às portas da Europa, esta guerra irá ter consequências globais muito importantes, não só na perspetiva das relações internacionais, mas também da segurança humana.
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Uma consequência desta guerra é a aposta reforçada de alguns países, sobretudo europeus, na defesa. A autonomia estratégica da UE que Emmanuel Macron tanto defende encontrou o seu momento?
O grande salto qualitativo a que assistimos em finais de março de 2022, com a aprovação da Strategic Compass, é um sinal dessa procura de um instrumento próprio de atuação do ponto de vista defensivo por parte da UE. Esta tem sido uma das áreas de maior dificuldade de implementação ao nível da integração europeia, desde o chumbo da Comunidade Europeia de Defesa ainda na década de 1950. Foram vários os passos dados no sentido da política de segurança e defesa da UE, mas esbarraram sempre na dificuldade de serem implementados. Não tenho a certeza que desta vez seja diferente, apesar do momento internacional que vivemos.
A propósito, a conferência Europe as a Global Actor terá, na sexta-feira de manhã, uma mesa-redonda para discutir o papel que este documento terá no futuro da UE.
A própria Alemanha anunciou uma "nova era" na sua política de defesa. A ameaça russa, que antes pairava sobretudo sobre os países do Leste da UE, tornou-se uma realidade que ameaça o continente todo?
A mudança de governo na Alemanha no final de 2021, que marcou o fim da era Merkel, trouxe uma coligação de governo liderada por Olaf Scholz do SPD, algo que não acontecia desde 2005. Merkel teve uma postura considerada como demasiado tolerante para com Putin, sobretudo porque nunca chegou a colocar em risco o projeto Nordstream II, o gasoduto que iria fornecer gás diretamente da Rússia para a Alemanha, fundamental para os interesses económicos russos. As medidas tomadas por Scholz aquando da invasão da Ucrânia, por seu lado, assinalam uma mudança na política externa alemã. Perante a terrível ofensiva russa sobre a Ucrânia, não só Scholz aceitou sanções económicas fortes à Rússia, como aprovou o aumento da despesa com matérias de defesa como nunca tinha sido aceite pela Alemanha. Mas é o cancelamento do Nordstream II que marca o corte com a política de Merkel. Temos agora a uma Alemanha mais assertiva, mais comprometida com a sua dimensão euro-atlântica e deixando definitivamente para trás quaisquer laivos da Ostpolitik lançada por Willy Brandt na década de 1970 e que pretendia, entre outros aspetos, jogar com a capacidade económica germânica para provocar a mudança de regime nos países do leste da Europa, incluindo a União Soviética.
Como é que esta reaproximação aos EUA deixa a relação entre a Europa e a China? Vai ser ainda mais difícil encontrar um equilíbrio na guerra comercial entre Pequim e Washington?
A postura dos EUA perante a China, que continua a ser considerada como sua adversária geoestratégica, não se alterou profundamente com a administração Biden. A principal diferença é na forma, nomeadamente quando Biden procura reforçar o multilateralismo e fomentar a aproximação entre regimes democráticos globais. Perante isto, a Europa será confrontada com a necessidade de tomar posições mais claras e terá de decidir como o fará. A grande questão é saber se as condições económicas europeias irão permitir e facilitar esta tomada de posição do lado do parceiro transatlântico.
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