"Algumas pessoas chamam-me japonês latino"
Conselheiro em Lisboa desde 2021, Yasuhiro Mitsui conversa à vontade em português. Na carreira, passou já por Brasil e Moçambique, também El Salvador e Líbano. Diz que contactos com mundo lusófono deixaram marcas na sua personalidade. Com ele, são cinco na embaixada japonesa a falar português, idioma dos primeiros europeus a chegar ao Japão.
Como nasceu o seu interesse pela língua portuguesa, que hoje fala fluentemente?
Os diplomatas japoneses especializam-se numa língua, sendo que no meu caso é o português. Depois de passar o exame de acesso à carreira diplomática, cada diplomata submete as suas preferências linguísticas. Na lista de preferências que preenchi não tinha a letra "P", tendo então pedido inglês, francês e alemão. Depois, o ministério atribuiu-me a língua portuguesa. Observando os diplomatas japoneses é muito interessante perceber que cada diplomata tem características dos povos que falam as línguas da sua especialização. Por exemplo, os diplomatas que falam russo são normalmente dotados de muita resiliência para poderem trabalhar num ambiente muito duro. Os diplomatas que trabalham com as línguas espanhola e portuguesa, são normalmente alegres e bem dispostos no seu ambiente de trabalho, e dizem piadas durante o seu horário de trabalho, tal como os povos latinos. Já os diplomatas que falam francês têm um profundo conhecimento sobre vinho.
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Onde estudou português?
Estudei em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no Brasil. Naquela época a inflação era muito alta. No primeiro mês que lá estive foi de 36%, sendo que eu pensava que este valor era anual, tendo depois percebido que era o valor mensal. Os diplomatas japoneses têm o privilégio de estudar durante dois anos num país estrangeiro. Eu estudei no Brasil durante os períodos de José Sarney e Fernando Collor, tendo presenciado uma época de turbulência na política brasileira.
Como foi, depois do esforço de aprendizagem, sentir que consegue ler um jornal ou um livro em português?
No segundo ano de estudos já conseguia ler artigos de jornais e revistas. Tenho dois livros que eu li em versão portuguesa e inglesa e japonesa. Um deles é Um Estudo da História, de Arnold Toynbee, e o outro é Compreender a Globalização - O Lexus e a Oliveira, de Thomas L. Friedman. Pude comprovar que o conteúdo é o mesmo nas três versões.
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Dos grandes escritores lusófonos, há alguns especiais para si?
Eu falo como se lesse poesia. Nesse sentido eu interesso-me por poesia. Sou um poeta desde que nasci. No entanto, ainda não li as grandes obras de poesia lusófona, como Os Lusíadas, sendo algo que ainda me falta fazer. Descobri alguns livros na biblioteca da embaixada, como o livro O "Bom-odori" em Tokushima, de um ex-diplomata português do início do século XX - Wenceslau de Moraes.
Portugal, por ter sido o primeiro país europeu a contactar com o Japão, tem lugar especial na história japonesa? Que vestígios ficaram desse contacto nos séculos XVI e XVII?
Esse encontro foi um evento muito importante para ambos os países. Portugal já tinha contacto com a China e penso que não tinha previsto encontrar um país como o Japão, com um nível elevado de civilização na Ásia, além da China. O Japão, uma nação de tecnologia orientada, teve grande interesse na civilização ocidental, especialmente nas armas de fogo e nas embarcações que permitiram aos portugueses atravessar oceanos. O chefe da Ilha Tanegashima comprou três armas de fogo - não roubou nem lhe foram oferecidas, o que retrata bem a forma de estar japonesa - e imediatamente ordenou a um artesão que fizesse réplicas das armas de fogo no prazo de um ano, o que foi um grande desafio para esse artesão, que teria que enfrentar a pena de morte se não conseguisse replicar as armas, tendo conseguido com sucesso levar a cabo a árdua tarefa. Isto mostra que o Japão tinha um alto nível tecnológico, mesmo não conhecendo as armas de fogo. 50 anos depois desse primeiro encontro, o Japão tornou-se o principal produtor de armas de fogo. Naquela época, a cerâmica japonesa não conseguia ter a cor azul, mas os japoneses sabiam como usar a cor vermelha na cerâmica. Pelo contrário, os portugueses eram famosos por usar o azul nos seus azulejos, mas não conseguiam usar a cor vermelha. Não sei se houve uma troca de conhecimentos a este nível mas o facto é que ambos os países conseguiram chegar à utilização de ambas as cores.
Em 2023 celebram-se 480 anos desse encontro de civilizações. Como são hoje as relações luso-japonesas?
Estamos com uma ótima relação. Temos valores comuns, como a defesa da liberdade e democracia. Estamos comprometidos com o Estado de Direito e não permitimos que seja contestado através da força ou ameaças. Ambos os países têm uma firme vontade de cooperação com países em desenvolvimento. O Japão e Portugal têm discutido sobre a cooperação em países lusófonos e recentemente conseguimos elaborar um projeto para a promoção da educação em Moçambique. Nesta área tenho várias ideias, que serão divulgadas quando estiverem mais desenvolvidas. Há cerca de 450 anos, quando o nosso intercâmbio estava muito ativo, a sociedade japonesa estava cheia de energia e creio que recuperámos essa energia na sociedade japonesa pelas relações com Portugal, como quando um homem de 50 anos ouve música de quando tinha 20 anos e automaticamente sente surgir a energia da sua juventude. A história de um país é como um diário pessoal. Portanto, a relação com Portugal teve um papel importante.

© Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Há muitas diplomatas japoneses a falar português?
Só nesta embaixada temos cinco diplomatas fluentes em português. Eu sou o único com sotaque brasileiro, sendo que todos os outros falam com sotaque de Portugal.
No seu caso, como sente que a experiência da vida em países de língua portuguesa influenciou a sua personalidade?
Algumas pessoas chamam-me "japonês latino".
Qual o impacto no Japão da comunidade imigrante brasileira, muitos de origem japonesa, mas falantes de português?
A comunidade brasileira no Japão trouxe várias coisas de interesse à sociedade japonesa.
Há alguma palavra em português que considere mais bonita?
Uma palavra portuguesa que considero bonita é "saudade", quase impossível de traduzir para outras línguas, o que a torna única e especial! No entanto, também gostaria de referir a palavra "chá", pois é muito semelhante na tradução japonesa (em termos semânticos e fonéticos, sendo pronunciada tcha); para nós japoneses, o chá (e de modo particular a cerimónia do chá) é também um forte elemento cultural, algo muito especial, quase tão difícil de traduzir por palavras como a palavra "saudade"!
Que livro japonês sugere aos portugueses?
Recentemente soube que o romance de Soseki Natsume foi traduzido em português. Natsume é um dos romancistas mais importantes na era da modernização do Japão. A obra do Natsume que foi traduzida recentemente foi Kokoro, que significa O Coração. O Japão decidiu modernizar a sua sociedade na era de Meiji (1868-1912) e, de seguida, durante a era Taisho (1912-1926), a democracia floresceu e o país experienciou a maduração. O tema de Kokoro é a colisão dos valores da sociedade. Os valores da era de Meiji que se tornaram obsoletos e foram perdidos no espírito da nova era. O conteúdo é uma tragédia, que vale a pena ler.
leonidio.ferreira@dn.pt
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