Ákos Bíró: "Zsa Zsa Gabor só se tornou estrela de Hollywood porque os diplomatas portugueses a salvaram dos nazis"
Tem uma ideia de quantos judeus foram salvos por Sampaio Garrido?
Não sabemos o número exato, mas calculamos que tenham sido, pelo menos, 700 a 800. O número mais elevado, se incluirmos a documentação de proteção, é de cerca de 1000, provavelmente não mais do que isso. Devido à forte ligação entre a Hungria e Portugal, Portugal não era considerado um país neutral "neutro", mas sim um país neutral muito amistoso. Portanto, a proteção portuguesa tinha um valor mais elevado, por assim dizer, do que, por exemplo, a suíça.
Sampaio Garrido, sendo embaixador, foi o primeiro a oferecer essa ajuda aos judeus, mas mesmo depois de se ter mudado para a Suíça, deixou Teixeira Branquinho como encarregado de negócios que continuou a prestar essa ajuda.
Sim, é verdade.
É possível saber quantas pessoas Teixeira Branquinho ajudou?
O número total que já mencionei é considerado como pertencendo aos dois. Devo dizer que embora seja correto que foi Sampaio Garrido quem começou, foi Teixeira Branquinho quem continuou e acabou o processo, num momento muito mais perigoso da nossa história.
Porquê? Porque nessa altura a Alemanha ocupava a Hungria e já não era um simples aliado...
Sim. Mas é mais do que isso. A Alemanha ocupou-nos em 19 de março de 1944. Sampaio Garrido foi preso a 28 de abril, portanto eles foram bastante rápidos a perceber o que ele estava a fazer. Ele foi preso com os hóspedes na sua própria casa porque os hóspedes eram todos judeus. Entre eles estava a família Gabor, sem querer entrar na parte de Hollywood da história, a verdade é que Zsa Zsa Gabor só se tornou a estrela que foi porque Sampaio Garrido a salvou e a toda a sua família. Ele tinha as suas ligações e foi libertado rapidamente, assim como os hóspedes. Os alemães compreenderam que alguma coisa se estava a passar. Ele foi chamado a Portugal e enviado para a Suíça. Teixeira Branquinho já estava na Hungria na altura e, por isso, eles fizeram tudo isso em conjunto. Como encarregado de negócios, Branquinho ficou a chefiar a legação e fez a maior parte do trabalho. Sampaio Garrido começou, mas as cartas de proteção e as casas protegidas foram todas levadas a cabo por Teixeira Branquinho. Porque é que ele estava em pior situação do que o embaixador? Porque ele ficou depois de o Partido da Cruz Flechada ter tomado o país. O almirante Miklós Horthy tentou fazer a Hungria sair da guerra outra vez e falhou novamente. Basicamente, o exército não cumpria as ordens. A 15 de outubro Horthy fez um discurso na rádio, mas nessa altura o seu filho já estava sob a custódia alemã. Foi um jogo. No dia seguinte, ele concordou finalmente em pôr Ferenc Szálasi no poder. Szálasi era o líder de um movimento chamado Cruz Flechada e ninguém estava a salvo com eles. Branquinho estava a agir quando eles tomaram conta do país e começaram imediatamente a semear o terror. Creio que se ele tivesse permanecido lá teria corrido um grande perigo, teria sido assassinado.
Mencionou na sua apresentação que alguém na legação portuguesa continuou a fornecer comida aos judeus nos últimos dias da ocupação alemã e mesmo depois disso.
Sim, mesmo no início da ocupação soviética, também. Infelizmente não há fontes para eu estudar. Budapeste esteve sob cerco. Primeiro, a cidade foi bombardeada pelos aliados, pelos ingleses e pelos americanos, de forma terrível durante o verão de 1944, depois chegou a Frente, chegaram os soviéticos e houve bombardeamentos vindos de todas as direções, os alemães bombardeavam de um lado, os soviéticos do outro. A cidade sofreu uma destruição horrível. Branquinho ainda lá estava no início e não havia Estado de direito, não havia leis, não havia regras, nada. Foi um período sem lei, horrível. Branquinho foi chamado e eu não sei quem é que estava encarregado da legação, da representação diplomática. Não sei quem fez o quê, mas tenho documentos datados de fevereiro de 1945, quando a cidade já estava sob a alçada soviética, e eles tiveram de corrigir os seus documentos de identificação para russo, deixando o alemão, para os novos ocupantes. Tenho uma única fonte que se lembra de, em rapariga, ir à embaixada portuguesa buscar comida em março de 1945. Portanto, alguém estava a fazer alguma coisa em fevereiro e março, não sei dizer, mas não penso que fosse uma pessoa portuguesa, provavelmente era alguém húngaro de posse desses documentos de identificação. Havia empregados húngaros na embaixada que continuaram a fazer alguma coisa, ainda tinham ligações, mas não consigo descobrir mais porque não há fontes.
Em Portugal, Aristides Sousa Mendes é célebre, um diplomata que emitia vistos para os judeus e não só contra as ordens de Salazar. Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho contrariavam Salazar ou estavam, neste caso, a seguir as suas ordens?
É a minha opinião, mas penso que eles agiam com a aprovação de Salazar. Estas pessoas não estavam de facto em Portugal, mas nunca teriam conseguido fazer o que fizeram sem apoio financeiro, precisavam de dinheiro para o fazer, não tinham recursos infinitos. Eles alugaram três prédios de apartamentos inteiros em Budapeste e isso custou muito dinheiro; tiveram de imprimir os documentos de proteção em nome da República de Portugal e não o poderiam fazer sem algum tipo de aprovação. Foi uma grande operação.
Sabemos que Salazar não era antissemita, era até muito amigo do líder da comunidade judaica em Lisboa. A sua ideia de que Portugal apoiava esses diplomatas está confirmada por outros historiadores ou existe uma divisão a esse respeito?
Honestamente, não sabemos, existe um debate. Eu não consigo imaginar, conhecendo as condições locais em Budapeste, que pudessem alugar tantos apartamentos, alimentar as pessoas, claro, e que isso não fizesse parte de uma operação muito maior do que sabemos agora. Aquelas pessoas foram literalmente alimentadas pela legação portuguesa durante várias semanas, mesmo meses, portanto, se os diplomatas não tivessem uma fonte de financiamento, como é que o conseguiam fazer? Creio que tudo foi feito com a aprovação de Salazar. As condições em que eles agiram eram muito precárias.
Em relação a outros diplomatas que também operaram em Budapeste, o sueco Raoul Wallenberg é um dos nomes mais famosos. Porque é que, de repente, Budapeste e os judeus de Budapeste são mais ajudados do que outros, há alguma razão específica? Tem que ver com o momento em que os nazis começaram a controlar o país?
Era a última comunidade judaica que restava naquela altura, sob o regime nazi. Quando os nazis chegaram à Hungria mataram toda a gente; deixaram a sua marca em tudo no país. A Roménia tem uma história diferente porque os romenos mataram, eles próprios, os seus judeus, até perceberem que a guerra ia mudar de rumo. Portanto, aquela era a última comunidade judaica com cerca de 800 000 a 900 000 pessoas até aos alemães chegarem e começarem as deportações. Deportaram da Hungria 430 000 para Auschwitz e calculamos que o número total de vítimas se situe entre 500 000 e 600 000. Assim, aquela era a comunidade que restava.
Esses diplomatas tinham conhecimento do Holocausto?
Sim, sabiam o que tinha acontecido nos outros países, por isso percebiam exatamente o que iria acontecer. Tinham visto o que aconteceu na Polónia e noutros sítios.
Sampaio Garrido, tal como Aristides de Sousa Mendes, está no Yad Vashem em Israel, mas Teixeira Branquinho não. Qual é a sua opinião?
Devia estar. Os dois trabalharam juntos, mas o trabalho físico foi mais de Branquinho do que de Sampaio Garrido. Obviamente, Teixeira Branquinho estava a seguir instruções, mas seguia as instruções porque queria mesmo fazê-lo, nunca se opôs às ordens dadas por Sampaio Garrido, os dois fizeram tudo em conjunto. Portanto, deve ser prestado o mesmo nível de respeito a Branquinho.
Sabemos que há muitos judeus húngaros famosos, Joseph Pulitzer, Robert Capa, oNobel da Literatura Imre Kertész... A Hungria está a lidar bem com esta memória da comunidade judaica e este reviver, de uma certa maneira, da herança judia?
Sim. Fundámos um instituto com o nome de Imre Kertész, honrando o seu trabalho e o seu legado...
De início houve um certo embate entre Imre Kertész e as autoridades húngaras...
Bom, Imre Kertész era um liberal e o atual governo é conservador, portanto deve ter havido alguma espécie de incompreensão de parte a parte, mas não diria que houve um embate. No entanto, no ano em que morreu, aceitou a maior honraria húngara, a Ordem de Santo Estêvão.
Foi uma óbvia reconciliação...
Sim. Se formos manifestamente contra alguém, não vamos aceitar uma honraria que nos é concedida por essa pessoa. Ele deixou documentos e manuscritos para o instituto com o seu nome.
Hoje em dia, Imre Kermész é uma referência na Hungria?
Sem dúvida. E em relação ao judaísmo há um reviver de certas tradições, por exemplo, um banho ritual abriu há duas semanas em Budapeste.
Há muitos judeus na Hungria atualmente?
Honestamente, costumamos dizer que são entre 100 000 e 150 000 os judeus húngaros. Eu sou judeu e sigo os preceitos, o meu filho é circuncisado, etc. Portanto, há um claro reviver e eu espero que mais pessoas encontrem as suas raízes. Durante 50 anos de comunismo, nós perdemos as nossas raízes e isso inclui-me também. Portanto, quanto mais trabalharmos na comunidade mais fácil é fazermos com que as pessoas se aproximem da religião. Elas sabem que são judias, mas já não estão verdadeiramente ligadas ao judaísmo como religião, são culturalmente judias, não são religiosamente judias. Eu penso que não é isso que deve determinar se alguém é judeu ou não, há muito mais para além disso, a moral, etc. Não estou a dizer que é preciso acreditar em Deus, mas é bom estarmos um pouco mais ligados às nossas origens, aos nossos antepassados.
No final do século XIX, Viena e Budapeste eram provavelmente as cidades mais cosmopolitas. Podemos dizer que os últimos anos do Império Austro-Húngaro foram uma boa época para a comunidade judaica?
Ainda lhe chamamos a Era Dourada. Foi nessa altura que os judeus tiveram todos os direitos possíveis; foi quando os judeus puderam fazer alguma coisa importante nos campos cultural e industrial. Não só lhes foi permitido terem fábricas e indústrias, como foram aceites na aristocracia, foram-lhes concedidos títulos da nobreza húngara, mesmo os mais elevados; foi-lhes permitido serem banqueiros, etc. Quando rebentou a Primeira Guerra Mundial, o ministro da Defesa húngaro era um judeu. Portanto, todas as portas estavam abertas e tudo funcionava verdadeiramente bem. Porquê? Porque havia uma espécie de acordo não-escrito entre a aristocracia húngara que governava o país e os judeus que concordaram em desistir da forma mais tradicionalista e ultraortodoxa de viver a religião que tinham nos meados do século XIX, quando estavam mais próximos da cultura alemã e da forma antiga de viver que tinham no leste do país. Assim, para que fossem totalmente aceites na sociedade concordaram em mudar as suas outras mentalidades para a mentalidade húngara. Começaram a falar húngaro, a vestir como os húngaros, começaram a declarar-se húngaros, iam à sinagoga, rezavam em hebraico, eram judeus, mas viviam à maneira húngara. Portanto, esses últimos 50 anos do império austro-húngaro ainda hoje são conhecidos como a Era Dourada.
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