É a última tentativa, em solo britânico, para suster a extradição de Julian Assange, o homem que saltou para a fama por divulgar milhares de documentos relacionados com a diplomacia e a defesa dos Estados Unidos, entre 2010 e 2011. Esta terça-feira e na quarta, os advogados do australiano alegam que o processo é meramente político e que o visado só agiu no interesse público - e que, se for enviado para solo norte-americano, arrisca uma pena de até 175 anos de prisão. Dois juízes decidirão se a ordem de extradição emitida pelo Governo britânico é suspensa para o australiano ter direito a uma audiência de recurso..Na sala do Supremo, o advogado Ed Fitzgerald fez o seu papel. “A acusação tem motivações políticas. Assange expôs ao público atos criminosos graves e foi processado por se envolver numa prática jornalística normal: obter e publicar informações confidenciais que eram verdadeiras e de interesse público. É um abuso do processo judicial exigir a extradição por um crime político”, alegou..Na rua, o antigo líder dos trabalhistas Jeremy Corbyn também se fez ouvir em defesa de Assange, ao fazer um paralelo com o funcionário responsável pela fuga de informação sobre a Guerra do Vietname, que veio a ser conhecida como os Papéis do Pentágono..“A ideia de que Julian possa ser acusado de violar a lei de espionagem dos EUA, a mesma que foi aplicada a Daniel Ellsberg e outros, é ultrajante. Este tribunal tem hoje a oportunidade de permitir que Assange seja ouvido, que seja feita justiça e que seja finalmente um homem livre”, disse Corbyn numa manifestação em que centenas de pessoas gritaram “Só pode haver uma decisão, extradição não”..A sua mulher, Stella Assange, subiu a parada da dramatização ao temer o destino do pai dos seus dois filhos semelhante ao opositor de Vladimir Putin Alexei Navalny, que morreu na sexta-feira. “O que aconteceu a Navalny pode acontecer ao Julian, e vai acontecer ao Julian se for extraditado.”.Além de Londres, houve manifestações em Paris, Bruxelas, Berlim, Milão, Roma e Nápoles pela libertação do homem que, como então foi descrito no jornal The Guardian, era visto ou como um novo cibermessias ou como um vilão de James Bond..Na quinta-feira passada, Assange recebera um apoio político de peso: os deputados australianos aprovaram uma moção a pedir a sua libertação, iniciativa apadrinhada pelo primeiro-ministro Anthony Albanese . “As pessoas terão uma série de opiniões sobre a conduta de Assange. Mas independentemente da posição das pessoas, isto não pode continuar indefinidamente”, defendeu Albanese no Parlamento..Também em Camberra, o irmão do ativista, Gabriel Shipton, alertou para o perigo da extradição para os EUA: “Isso significaria que todos os laços com a sua família, a sua ligação à vida que o mantém vivo dentro da prisão, seriam cortados e ele perder-se-ia no horrível sistema prisional dos Estados Unidos.”.Grupos de defesa dos Direitos Humanos e associações de jornalistas também sublinharam a importância do caso. “Se Julian Assange for extraditado com sucesso para os EUA, os jornalistas de todo o mundo vão ter de se precaver”, atirou Simon Crowther, conselheiro jurídico da Amnistia Internacional..Igualmente em frente ao tribunal, a diretora de campanhas dos Repórteres Sem Fronteiras, Rebecca Vincent, recordou o papel do homem que defendeu a transparência dos governos e a liberdade de expressão. “A publicação dos documentos confidenciais da WikiLeaks, em 2010, estimulou o jornalismo de interesse público em todo o mundo. Sabemos que os documentos expuseram crimes de guerra e violações dos Direitos Humanos. E apenas o homem que permitiu que tudo isso fosse publicado foi processado. Se ele for extraditado para os EUA, isso abrirá um precedente muito perigoso para qualquer jornalista ou organização jornalística que trabalhe com informações confidenciais”, alertou Vincent..Aos 52 anos, encarcerado na prisão de alta segurança de Belmarsh, sudeste de Londres, Julian Assange não se deslocou ao tribunal por motivos de saúde. A publicação de centenas de milhares de documentos começou no New York Times, The Guardian, El País, Le Monde e Der Spiegel com material sobre as intervenções norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, e mais tarde sobre os telegramas diplomáticos do Departamento de Estado..O autor da fuga de informação maciça, o soldado Bradley Manning (mais tarde Chelsea), foi preso em 2010. Condenado a 35 anos de prisão, foi perdoado pelo presidente Barack Obama em 2017. No ano seguinte, já na presidência de Donald Trump - que enquanto candidato se mostrara fã da WikiLeaks - o Departamento de Justiça acusou o antigo hacker de violar a Lei da Espionagem. Em específico, os procuradores acusam Assange de ter ajudado Manning a decifrar as palavras-passe do Governo e a obter e divulgar documentos confidenciais, além de pôr em risco as vidas dos informadores. .A Casa Branca mudou de inquilino, mas nada mudou. “Não consigo imaginar porque é que a administração Biden quereria que esta acusação perigosa e míope fizesse parte do seu legado”, comentou Jameel Jaffer, professor de Direito e de Jornalismo na Universidade de Columbia, à Al Jazeera. “Um processo judicial bem-sucedido contra Assange, com base nesta acusação, criminalizaria uma grande parte do jornalismo de investigação que é absolutamente crucial para a democracia”, considerou..Se os advogados de Julian Assange não convencerem os dois juízes -- que poderão demorar horas ou semanas a deliberar -- , o caso pode em teoria chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No entanto, há quem considere que será tarde demais, como Nick Vamos, advogado especialista em extradição, até porque será “muito difícil” convencer o tribunal de Estrasburgo a intervir. “Na realidade, espero que estejam na pista e prontos para partir numa questão de dias”, disse sobre os marshals, os agentes ao serviço do Departamento da Justiça dos EUA..Cartaz na manifestação em frente à embaixada dos EUA em Berlim. EPA/Filip Singer.Treze anos de luta judicial .Mandado de detenção A Procuradoria sueca emite em novembro de 2010 um mandado de detenção internacional devido a uma queixa de violação e outra de abuso sexual quatro meses depois de a WikiLeaks ter atraído atenção global, ao revelar um incidente de 2007 no Iraque, em que 12 pessoas, incluindo dois funcionários da Reuters, foram mortos por tiros disparados de um helicóptero dos EUA. Asilo na embaixada Falhados os recursos para não ser extraditado para a Suécia, Assange pede asilo na Embaixada do Equador em Londres, em junho de 2012, o qual é concedido em agosto. Cerco policial A polícia londrina põe termo, em outubro de 2015, à vigilância de 24 horas à porta da Embaixada do Equador, uma operação policial que se estima ter custado 12 milhões de libras. As autoridades viram passar pela porta da embaixada vários apoiantes conhecidos, de Noam Chomsky a Pamela Anderson..ONU intervém Em fevereiro de 2016, o grupo de trabalho das Nações Unidas sobre detenções arbitrárias considerou que Assange estava “detido arbitrariamente” na embaixada e recomendou a libertação imediata e o pagamento de uma indemnização. O Reino Unido considerou a decisão “francamente ridícula”. Ligação russa Uma investigação de 2018 alega que o líder do UKIP Nigel Farage - que fez campanha pelo Brexit em concertação com russos - visitou, de forma secreta, Assange. A WikiLeaks havia divulgado em 2016 material do Partido Democrata norte-americano, bem como do chefe da campanha de Hillary Clinton, o que levou Donald Trump a elogiar a WikiLeaks. A organização foi mais tarde acusada de servir os interesses russos pelos EUA. Expulso e detido Meses depois de Quito ter anunciado estar a negociar com Londres uma solução para a saída de Assange da embaixada, o presidente Lenin Moreno culpa a WikiLeaks por notícias que o acusam de corrupção e em abril de 2019 o Governo retira o estatuto de asilo ao australiano. A polícia prende Assange na embaixada por ter violado as condições de fiança, em 2012, e um mês depois é condenado a 50 semanas de prisão. Relação amorosa Em abril de 2020 é revelado que a advogada sul-africana Stella Moris é mãe de dois filhos de Assange em resultado de visitas à embaixada. Dois anos depois casaram-se na prisão. Recursos Depois de, em 2020, os EUA terem defendido a extradição de Assange, uma juíza negou a pretensão argumentando a saúde mental do australiano. Em dezembro de 2021, o Supremo dá razão aos EUA e em junho de 2022 o Governo britânico ordena a extradição. Assange recorre..cesar.avo@dn.pt