A pequena Palestina em Arroios
Dima, 45 anos, é palestiniana, mas nasceu no exílio. “Nasci e cresci na Argélia. Ao meu pai foi negado o direito de viver na Palestina durante 27 anos. Eu e a minha irmã nascemos fora da Palestina. Estudei na Argélia, mas depois dos Acordos de Oslo regressei, com 15 anos, terminei o ensino secundário e fiz a licenciatura na Universidade de Birzeit, perto de Ramalah”.
Durante 27 anos foi negado o direito ao pai de Dima de regressar à sua terra. Perdeu esse direito por ter ido estudar para o estrangeiro. Fez a licenciatura e mestrado no Sudão e doutoramento na Checoslováquia em Hidrogeologia, o estudo das águas nas profundezas da terra.
“Eu visitava a Palestina de três em três anos. A minha mãe para não perder o direito de regressar à Palestina tinha de ir lá de três em três anos. Para o sistema legal israelita, nós, os palestinianos, não somos cidadãos, somos residentes.” Isso significa que se saem para o estrangeiro perdem o direito a regressar. “Como se fosse estrangeira no meu país”, explica Dima. “Isto agora aplica-se apenas para Jerusalém, mas nos anos 80 aplicou-se também a toda a Cisjordânia.
Foi assim que o meu pai perdeu o direito de entrar na Palestina. Deixou a sua terra para estudar. As pessoas, à saída, tinham de deixar aos militares israelitas, na fronteira, o seu bilhete de identidade. E se voltarem depois de três anos, os documentos já lá não estão. Quando o meu pai foi estudar, o meu avô mandou-lhe uma carta a dizer: ‘não podes voltar antes de acabar os estudos’, porque podiam detê-lo e impedi-lo de acabar os estudos. Devia terminar o curso e só depois voltar. Mas depois aperceberam-se que não era mais possível regressar. Esteve 27 anos impedido de o fazer.”
Durante todo esse tempo, Dima e a mãe viajaram periodicamente para a Palestina. “A minha mãe, para não lhe suceder o mesmo, teve de viajar para a Palestina de três em três anos. Quando eu nasci, a lei israelita permitia que eu tivesse direito de residência na Palestina com a minha mãe, mas quando nasceu a minha irmã já não lhe deram esse direito. A lei tinha mudado e a minha irmã não pôde ser registada como filha da minha mãe, porque o pai dela, meu pai, não era residente. Eu e a minha mãe tínhamos o direito a ir à Palestina e o meu pai e a minha irmã não tinham.”
O pai recorreu aos tribunais, vieram os Acordos de Oslo, e com eles Gaza e a Cisjordânia foram entregues para administração aos palestinianos. A guerra civil na Argélia intensificou-se e Dima e a sua família puderam voltar à sua terra. A ideia tinha sido sempre regressar.
“Foi difícil voltar à Palestina, embora os meus pais considerassem sempre claro que nós éramos palestinianos, nunca quiseram obter a cidadania argelina. Era política dos palestinianos não pedir a cidadania de outros países, porque não queríamos que o mundo esquecesse a Palestina. A questão da identidade era muito importante e apesar disso a decisão de voltar à Palestina era difícil. Voltar para a minha terra era um sonho, mas implicava um confronto com a realidade.”
Chegaram quando os Acordos de Oslo pareciam abrir o caminho a uma Palestina livre. “A vida lá não era fácil, apesar de chegarmos nos anos de maior promessa e esperança. É um lugar muito pequeno, mas muito complexo. É muito difícil de descrever. Voltámos para perto de Ramalah, a maioria da minha família vive no campo de refugiados da Kalandia. Por motivos burocráticos fomos para uma escola numa das aldeias perto de Ramalah. Nós encontrámos vários aspetos muito diferentes na vida na Palestina. A vida em Ramalah, não é a mesma que no campo de refugiados, e esta não é a mesma que a vida nas aldeias. Ramalah é o mais perto da vida de uma cidade, aberta e diversa. Laica não diria. A Palestina não é um lugar laico. Há pessoas laicas, mas a vida não é.”
No campo de refugiados palestiniano, como o de Kalandia, amontoam-se aqueles que foram expulsos pelos israelitas das suas terras. Na tragédia, em árabe Nakba, cerca de 800 mil; na Naksa, o revés, mais de 250 mil. “A minha família foi expulsa na Nakba e depois na Naksa. Os meus avós foram expulsos de onde viviam em 1948 e ficaram na aldeia ao lado, depois, infelizmente para eles, esta aldeia foi destruída na guerra de 1967. Nessa altura, os meus pais já tinham nascido, foram novamente expulsos e foram para o campo de refugiados da Kalandia.”
Dima diz que o desespero e a derrota foram moldando e mudando a sociedade palestiniana, a vida era diferente. “A Palestina era muito mais aberta e muito menos religiosa. Vejo as fotografias da minha mãe e das primas dela, nos anos 70, vestidas de uma maneira que seria impossível de imaginar agora. Nos anos 70 éramos muito mais abertos, nos anos 80 um pouco menos, e a partir dos anos 90 mudou tudo devido à situação global. O colapso da União Soviética influenciou a Palestina. Mas há também a primeira Intifada, cuja repressão fez com que o medo se instalasse na sociedade. A religiosidade aumentou para responder a isso. Há muitos dados que o mostram, como a diminuição da idade de casamento. A geração da minha mãe casou depois dos 22 anos, a geração depois da primeira Intifada casou antes dos 20 anos. No início dos anos 90, o número de mulheres com véu era mínimo, agora a realidade é totalmente diferente.”
Só se pode viver na Cisjordânia - os palestinianos estão proibidos, pelos israelitas, de circular livremente na sua terra - depois dos 16 anos, altura em que os israelitas emitem um bilhete de identidade. “Por causa dessa lei, tens de ficar num sítio e não te podes deslocar. Dois meses antes de fazer 16 anos, os meus pais mandaram-me, com a minha irmã, com 14 anos, visitar amigos em Gaza. Ficamos lá durante três ou quatro dias. Foi a única vez que conseguimos ficar em Gaza. No fim dos anos 90 eu fazia trabalho voluntário para uma ONG Palestiniana que organizou uma reunião em Gaza e conseguiram uma autorização de 12 horas. Tínhamos de ir de manhã e voltar no fim do dia. Eu viajei muito, mas ir a Gaza era para além do sonho, era impossível.”
Dima Mohammed acabou a licenciatura, começou a trabalhar num centro cultural de Ramalah e numa ONG. Quis continuar a estudar e ganhou uma bolsa na Holanda. Estudou em Amesterdão, um lugar completamente diferente da pequena Palestina. Fez o mestrado e o doutoramento. Depois veio o choque quando os israelitas atacaram Gaza em 2008. Vivia então na Holanda. “Apercebi-me que o mundo conhece muito pouco sobre a Palestina. Acham que sabem tudo, mas não conhecem nada. Sofri sozinha quando bombardearam Gaza. Chocou-me que a vida continuasse como se nada tivesse a acontecer.”
Pensou sempre voltar o mais depressa possível à Palestina. Mas apareceu Portugal.
“Quando saí da Palestina tinha a certeza que ia voltar. Ia voltar o mais rápido possível. Isto mudou. Agora acho que é melhor para mim viver entre a Palestina e Portugal. Quando cheguei a Portugal senti-me em casa. Muitos portugueses acham estranho, mas para mim Portugal é muito parecido com a Palestina. De muitas maneiras. Mas há uma diferença muito importante, é um país independente, com paz e com um sistema político que funciona. Mas na maneira como as pessoas vivem e se relacionam com os outros, eu senti-me totalmente em casa. As semelhanças entre Palestina e Portugal são a melhor coincidência da minha vida. Coincidimos na maneira calorosa de sentir o outro, na gentileza e na paciência que não existe em outros países. Aqui como na Palestina as relações sociais são centrais na vida das pessoas. Há também uma tolerância com as coisas que não funcionam. Faz parte do ser humano. É só uma ilusão pensar que tudo pode funcionar como se fossemos máquinas.”
“Os portugueses são muito mais abertos para os estrangeiros que em outros países. Na Holanda e na Suíça senti que me devia transformar para merecer ser considerada uma pessoa que vive lá. Eu sei, pelas coisas que ouvimos todos os dias sobre o crescimento da extrema-direita, que está a piorar. Se calhar as políticas de turismo não ajudam. Mas nunca senti em Portugal que os portugueses ficassem chateados com uma estrangeira que não fala bem português. Uma vez estava com os meus pais na Nazaré, fomos almoçar a um lugar onde eu traduzia o nome dos pratos do português para os meus pais. O dono do restaurante perguntou: ‘de onde são?’ Eu disse: ‘somos da Palestina’. O dono respondeu: ‘mas tu és daqui’ . Eu pensei, “estou na Europa e as pessoas estão a dizer que sou daqui. Para mim foi um choque”. Tenho amigos que nasceram na Holanda, com cidadania holandesa, mas os pais são de Marrocos, e nunca foram aceites como holandeses. A pergunta que lhes fazem é sempre: ‘de onde és?’.
Sentiu depois do ataque do Hamas, em 7 de outubro, que os palestinianos iam viver uma nova Nakba. “Já estou a viver com esse medo há anos. Isso não aconteceu agora, o cerco de Gaza dura há 17 anos e é feito para tornar impossível a vida da população de Gaza. Na Cisjordânia é a mesma coisa. Eu vou para a Palestina duas a três vezes por ano e cada vez há mais colonatos que tornam mais difícil a vida dos palestinianos. Cada vez há mais terra roubada para construir colonatos. Para nós o que está a acontecer não é novidade. Os israelitas chamam o perigo demográfico. Querem acabar com esse ‘perigo’ de todas as maneiras.
Não fica indiferente ao sofrimento dos civis de ambos os lados. “Por que é que me perguntam se sou empática com o sofrimento dos civis israelitas a 7 de outubro? Claro que senti esse sofrimento. As pessoas têm normalmente empatia, mas muitas vezes colocam uma camada política para dizer que é inevitável. Os seres humanos são feitos para empatizar, mas temos outras camadas ideológicas, políticas e psicológicas que às vezes impedem a empatia. Temos de distinguir a reação humana da nossa posição política. É possível empatizar com as vítimas, apesar de entender as razões que levam a determinadas ações. Podemos sempre discutir os atos, mas depois temos de perceber o contexto no qual as coisas acontecem. Israel está a usar os civis israelitas para impor a ocupação da Palestina. Um Estado que coloca os pobres israelitas em colonatos que roubam a terra da Palestina. Para mim, essa gente também é vítima do Estado colonial israelita. Sempre aconteceu com todos os Estados coloniais: usar os pobres como ferramentas de ocupação.”
Sobre a solução para o conflito, Dima acha que a solução dos dois Estados está morta. Foi morta por Israel e pela política de cerco a Gaza por colonatos.
“Há só uma solução: um Estado para todos os cidadãos, em que palestinianos e judeus possam votar. Igualdade para toda a gente. Para mim, a solução é todas as pessoas que vivem entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo serem iguais perante a lei. Não percebo como isso não é a solução óbvia para toda a gente.”
O documentarista que se tornou merceeiro
Hindi Mesleh, 40 anos, nasceu na Palestina, vai falando connosco enquanto interrompe a conversa para atender os clientes na mercearia. Viveu, numa aldeia perto de Ramalah até aos 30 anos. Estudou e trabalhou. Tirou um curso de produção de documentários na Universidade de Bethlehem. Aos 31 anos, deixou a Palestina e foi para Bruxelas. Viveu lá durante três anos e meio. Trabalhou sobretudo na hotelaria. Queria continuar a estudar, mas não tinha meios para isso. Os seus documentários deixou-os nos bancos da Universidade.
“O último que fiz como tese, tinha a duração de 20 minutos. Conta a história de um camponês cuja terra foi confiscada para ser construído por Israel um dos muros que dividem a Palestina. Mostrava a vida dele, as dificuldades que tinha em aceder a uma pequena parte das suas terras e como não conseguia de todo chegar à maior parte das suas terras. Também a ligação à sua terra, como a herdou do seu pai e este do seu avô.”
Veio para Portugal porque não se sentia feliz em Bruxelas. “Era um sítio totalmente frio, na temperatura e em relação às pessoas”. Chegou a Portugal em 2016, pensava que se não se adaptasse iria ter com um tio a Madrid. Foi ficando até não ter vontade para sair. A última vez que regressou à Palestina foi em 2020, para estar com a mãe que estava hospitalizada.
“Depois de sete anos de ausência regressei, a minha mãe estava doente e eu voltei. E tudo estava diferente. Estava a ler o livro de Ghassan Kanafani, Return to Haifa, e tudo parecia fazer sentido para mim. Mas fiquei chocado: havia muito mais check points e uma invasão de câmaras de vigilância israelitas nas estradas. As aldeias estavam cercadas. Fui a Jenin pensando que as coisas estariam mais calmas, mas toda a gente parecia tensa.”
Não conseguiu ver a maioria dos amigos. A vida tinha mudado e ele passava a maior parte do tempo no hospital com a mãe. “Depois de dez anos, a maioria dos meus amigos resolveu constituir família e parar de beber, coisa que eu não parei (ri-se). Agora só bebem chá. Apenas um dos meus amigos continua a sair e a beber. Continua o mesmo louco. Nota-se o desapontamento político e a depressão, as pessoas acham que não existe futuro. Não têm esperança em nenhuma mudança política.”
Hindi não é religioso. Cresceu numa família tradicional, “mas desde que era criança decidi não praticar a religião. A minha família nunca me pressionou muito”.
No início a vida em Portugal não foi fácil. “Não conhecia a língua e há sempre o problema de conseguir os documentos. Neste momento, tenho muitos projetos. E passei a queixar-me daquilo que os portugueses se queixam: das rendas de casas, dos preços, dos impostos. Mas não posso protestar muito, tive muita sorte em começar este negócio, das mercearias palestinianas, com a minha sócia. Está a crescer muito e deixa-me ocupado. Não creio que haja paraísos na terra, mas é uma questão de nos conseguirmos adaptar e viver.”
Nunca se sentiu discriminado em Portugal, neste momento o seu sofrimento é só com a guerra. As imagens de morte tiram-lhe o sono.
“Quando eu vi o que aconteceu a 7 de outubro, pensei que não estava a acontecer, sabia que a resposta ia ser muito má e muito forte e destrutiva. Mas não vou mentir, tive sentimentos desencontrados: tive medo, mas ao mesmo tempo sentia que um pássaro fechado numa caixa - Gaza esteve 17 anos cercada - tinha, durante uns momentos, destruído a gaiola que a aprisionava. O pássaro conseguia voar e as pessoas podiam sair de Gaza.
Lembrei-me das manifestações junto às vedações, das centenas de pessoas que foram abatidas por snipers israelitas. Quando vi no Instagram posts a falar de uma ‘libertação’ pensei que matar não pode dar felicidade a ninguém, mas de alguma forma mostrava que as pessoas de Gaza podiam libertar-se e ir embora. Mas foi um sentimento muito breve misturado com muito medo.”
Como todos os palestinianos teve algum familiar ou amigo que foi vítima do conflito.
“Tive muitos amigos e até familiares que foram vítimas do conflito. Mas basta alguém morrer para nos sentirmos afetados.”
Pensa que a dimensão do massacre televisionado, que os bombardeamentos israelitas mostram, mudou a posição de muita gente em Portugal.
“A intensidade dos bombardeamentos alterou completamente o sentido da opinião pública portuguesa. Quando organizamos um protesto sobre o assassinato de uma jornalista palestiniana, antes do 7 de outubro, apenas uma centena de pessoas participou. Nos protestos contra os bombardeamentos há milhares de pessoas que têm saído à rua em Portugal.”
“As pessoas percebem que não existe uma guerra contra o Hamas, mas bombardeamentos que mataram mais de 20 mil civis, e que destruíram mais de 71 % das casas. Isso abre os olhos de muitas pessoas.”
A guerra mudou muito da sua vida, deixa a mercearia para participar em atos de defesa da Palestina, tirando isso, tudo parece continuar igual.
“Não temo pela segurança. Estou na loja a maior parte do tempo para que os meus colegas não fiquem sozinhos. Mas penso, não estou sob bombardeamento, como a população de Gaza, não me pode ocorrer nada de semelhante.”
Como Dima, começa a descrer na solução dos dois Estados, apenas pensa que não pode continuar assim.
“As soluções só podem ser duas: dois estados iguais ou um estado com todas as pessoas com direitos iguais.”