"A História não vai julgar os líderes pelos inimigos que mataram, mas pela população que salvaram"

Nabil Abuznaid, representante diplomático da Palestina em Portugal, mantém a esperança num acordo de paz e diz que o Hamas só desaparecerá com o fim da ocupação.
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Há dois anos e meio disse-me que os palestinianos têm sempre esperança. Continua a acreditar nisso?
Sim. Porque se vê sempre a luz ao fundo do túnel e sem esperança não se pode sobreviver. Mas também olhe para a região. Houve uma grande guerra em 1973, e esta levou a um acordo de paz entre o maior país árabe, Egito, e Israel. Também a Intifada palestiniana, em 1987, chamou a atenção do mundo e pensou-se que era altura de acabar com o conflito israelo-palestiniano, e foi sobre isso que Yitzhak Rabin e Yasser Arafat decidiram falar, que Rabin decidiu falar com o inimigo mais odiado, Arafat, o líder da OLP, e assinaram os Acordos de Paz de Oslo. Infelizmente, Rabin foi assassinado por um colono de extrema-direita que recusou o processo de paz. Se esta guerra não despertar as consciências de todas as pessoas, então quando será? Sabemos que não há solução militar. A única solução é assinar a paz e vivermos como vizinhos. O tempo há de chegar quando israelitas e palestinianos se olharem olhos nos olhos e disserem "por que demorámos este tempo se sabíamos desde o início que tínhamos de viver em conjunto?". Não podemos eliminar Israel nem Israel pode eliminar a Palestina. Precisamos de uma liderança forte que nos oriente para uma nova direção, a direção da paz. Qualquer um pode criar a guerra e todos são heróis no fim da guerra, mas só os grandes líderes agarram a oportunidade e criam a paz. Alguns líderes pensam que poderão tornar-se populares por matar inimigos. A História não vai julgar líderes pelo número de inimigos que mataram, mas pelo número de pessoas que salvaram entre a sua população.

Concorda que se chame guerra Israel-Hamas?
Oficialmente, vemos que começou com o Hamas contra os israelitas. Acho que, no entanto, está a mexer com pessoas de todo o mundo, que exigem o fim da destruição. Estou muito otimista que num futuro próximo possa ver crianças palestinianas e israelitas juntas, sem carregarem armas, e que a única coisa que atirem é bolas ao jogarem juntos. Cem anos de conflito, chega!

Citaçãocitacao"[Netanyahu] pode vencer uma batalha, pode vencer uma guerra, mas não vai destruir o espírito dos palestinianos para serem livres."

Netanyahu prometeu eliminar o Hamas. O escritor Rashid Khalidi disse que "destruir o Hamas enquanto instituição política é impossível". Concorda?
A única forma de acabar com o Hamas é acabar com a ocupação. Os palestinianos estão de facto a lutar contra a ocupação. O Hamas fá-lo numa perspetiva mais religiosa, mas se o conflito acabar, o Hamas deixa de ter motivo para existir. Não se pode destruir a esperança do povo do qual o Hamas faz parte. Netanyahu também disse que quer acabar com a esperança de os palestinianos terem o seu próprio Estado. É impossível, vai encontrar resistência de todas as formas, e uma delas é o Hamas. Enquanto Netanyahu não der a liberdade aos palestinianos e os privar das suas terras, com novos colonatos, não haverá paz. A paz não pode ser construída na injustiça e na opressão. Ele pode vencer uma batalha, pode vencer uma guerra, mas não vai destruir o espírito dos palestinianos para serem livres. Por que é que qualquer judeu no mundo pode ir viver para a Palestina e os refugiados palestinianos não podem regressar? Concordámos com um lugar a que chamamos a nossa casa, o lugar para o Estado da Palestina e que só tem 22% do território da histórica Palestina. Já viu o que estamos dispostos a oferecer? Não podemos
mudar a História, mas podemos construir um futuro melhor para as nossas crianças.

Não condena o Hamas em termos gerais. Mas condena as ações terroristas de 7 de outubro?Condeno todos os assassínios. Não podemos ver as mortes de uns como importantes e as outras não. Não sou um bom humano se condeno as mortes dos palestinianos e não as dos israelitas. Mas temos de compreender que temos um conflito para o qual fomos todos arrastados. Temos de ver a melhor forma de viver em melhores condições. Por vezes penso que é difícil viver sob ocupação, mas que é mais difícil ainda ser o ocupante, porque a consciência não aceita. É por isso que muitos israelitas não apoiam a ocupação e estão contra esta guerra, tal como muitos judeus fora de Israel.

Tendo em conta o cancelamento da cimeira na Jordânia, a visita de Joe Biden ao Médio Oriente foi uma oportunidade perdida?
Biden não teve uma boa abordagem. Em Israel encorajou o avolumar da guerra sob o pretexto de que Israel tem o direito a defender-se. Não disse que queria acabar com o conflito nem fez exigências. Disse que compreendia que os israelitas fossem a Gaza, mas sem a ocuparem, sem ficarem lá. Estas declarações, vindas de uma superpotência, não falam para o oprimido; mencionou o Hamas mas não falou para a maioria dos palestinianos. A visita vai ser considerada um falhanço, e isso vê-se pelas reações nos EUA. Árabes, muçulmanos e quem apoia a paz sentem-se indignados com a política do seu governo. Centenas de funcionários do Capitólio subscreveram um abaixo-assinado a pedir uma trégua, não querem esta guerra. Penso que [Biden] não esteve bem. Viajou só em missão de solidariedade para com a ocupação e não com uma mensagem pela paz.

Se a cimeira tivesse decorrido a história seria outra?
Mas Joe Biden não tinha nada para oferecer. Na realidade, este cancelamento salvou a face dos representantes árabes. Vê-se pelo que disse quando esteve em Israel. Que teria dito? Prometer ajuda a Gaza? Defender a solução dos dois Estados, mas dizer que não é este o tempo para discuti-la? Em Israel não falou de trégua, e sim de mais armamento para os israelitas invadirem Gaza.

A Jordânia e o Egito recusam receber mais refugiados da Faixa de Gaza, alegando que tal poderia pôr em causa a criação do Estado da Palestina. Concorda?
Sim. Algumas pessoas fogem em situação de guerra, mas não se pode retirar todas as pessoas. Isso é um crime de guerra. Se saírem, não voltam mais. Esse é o plano israelita, limpar a região de pessoas para irem para outras áreas e fazer de Gaza, a totalidade dos 350 quilómetros, uma zona-tampão para Israel, para ser ocupada por Israel. Isto é uma limpeza étnica.

cesar.avo@dn.pt

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