"A cultura chinesa fascinou-me desde a primeira viagem, apesar do choque cultural"
Brunch com a presidente do Centro Científico e Cultural de Macau, Carmen Amado Mendes.
Conheço bem o Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM), na rua da Junqueira, e lembro-me de uma visita ao seu magnífico Museu em que tive como guia muito especial a professora Wang Suoying, nascida em 1951 em Xangai, mas há mais de 30 anos a ensinar chinês em Portugal. Ora, foi a professora Wang que me apresentou há uns tempos a Carmen Amado Mendes, a presidente do CCCM, a qual conhecia de nome por causa dos trabalhos publicados sobre a China, nomeadamente o livro As negociações de Macau 1986-1999. O que não sabia é que Carmen tinha estudado também no ISCSP e só não nos cruzámos lá porque sou um pouco mais velho. Ora, as instalações do CCCM não distam mais de uma centena de metros do Palácio Burnay, belo edifício cor de rosa onde funcionou a Escola Superior Colonial, depois o Instituto Superior de Ciência Sociais e Política Ultramarina e finalmente o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, esse ISCSP feito à imagem de Adriano Moreira e hoje parte da Universidade de Lisboa. Pelo que este brunch na cafetaria do CCCM é uma espécie de regresso a casa para mim, como o foi para Carmen ir trabalhar na Junqueira. Afinal, foram anos de juventude passados naquele Instituto, que entretanto se mudou para o Pólo Universitário da Ajuda, e isso deixa saudades, mesmo a quem não parece ser muito de sentimentalismos, como esta conimbricence nascida em 1975.
"As voltas que a vida dá. Voltar à rua da Junqueira para trabalhar passados quase 30 anos! A licenciatura em Relações Internacionais ainda não existia em Coimbra quando terminei o secundário e acabei por fazer os primeiros três anos em Lisboa, no ISCSP, e voltei para lecionar um ano entre a passagem por Estrasburgo e a ida para Londres. Fui para Estrasburgo terminar a licenciatura ao abrigo do Erasmus e acabei por lá fazer o mestrado. Os planos passavam pela Diplomacia, e os estágios no Parlamento Europeu e no Conselho da Europa reforçaram o interesse por um percurso internacional. No entanto, o convite para continuar em Estrasburgo para fazer o Mestrado desviou-me do concurso para a carreira diplomática. Quando voltou a abrir concurso, já eu estava a concluir o doutoramento na Universidade de Londres e acabei por optar pela carreira académica", conta Carmen, enquanto bebemos um chá de gengibre e comemos um croissant. Trouxe-me um exemplar do livro que resultou da tese e guardo-o num saco de cartão do CCCM que já tem três livros sobre Tomás Pereira, um jesuíta que viveu na corte de Pequim no final do século XVII (participou no primeiro tratado sino-russo) e que me foram oferecidos por Rui Dantas, diretor do Museu e também responsável pelas edições do Centro. Estivemos à conversa uns minutos enquanto esperávamos que Carmen descesse do piso onde estão a decorrer as Conferências da Primavera, que juntam os académicos portugueses que trabalham sobre a Ásia.
Sei que a conversa não pode ser demasiado longa, por causa das Conferências, mas não resisto a trocar com Carmen algumas memórias dos tempos iscspianos, como um trabalho da cadeira de demografia que todos os alunos, das seis licenciaturas da época, tinham de fazer no segundo ano, estudando a população de um concelho desde o primeiro recenseamento em Portugal, em 1864. O professor era Óscar Soares Barata. Calhou-me Aviz, mas Carmen já não se recorda do dela. Os anos antes de ir para Estrasburgo foram bons, sobretudo comparado com os do regresso, diz Carmen: "Quando regressei, o desenraizamento era total, em parte resultado do distanciamento imposto por ter saído de Portugal na altura em que não havia internet nem telemóveis. Em Estrasburgo, lembro-me de terminar as aulas e ir apressadamente para casa ver se tinha alguma carta na caixa do correio. Tinha saudades de tudo, muitas saudades do país - das pessoas, da comida, do sol... nem era bem do sol, era da luz. Seguiu-se um período de hesitação entre prosseguir a carreira académica e o fascínio pelo mundo empresarial, trabalhar no país ou no estrangeiro. Tinha começado a trabalhar como consultora em empresas que queriam entrar no mercado chinês e rapidamente percebi a dificuldade em transmitir, a chefes desconhecedores da cultura chinesa, aquela que me parecia ser a melhor forma de atuar, pelo que decidi abrir a minha própria empresa, com dois sócios portugueses e colaboradores na China e em Hong Kong: a ChinaLink, que apoiava empresários portugueses a entrar no mercado chinês. E aceitei o convite para lecionar na Universidade de Macau. Entretanto abriu uma vaga de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra e concorri. Com um pé em dois mundos e interesses em percursos profissionais distintos, mas pertencente a uma família muito ligada à Universidade de Coimbra, avessa à incerteza inerente à atividade empresarial e saturada das minhas incursões pelo estrangeiro, optei pela carreira académica e por Portugal. Mas acho que o espírito empreendedor e de diplomata nunca me abandonaram."
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
E os diplomatas fazem parte hoje do mundo da presidente do CCCM, seja porque o embaixador chinês aprecia muito as instalações e gosta de co-organizar atividades, seja porque a embaixadora tailandesa é tão amiga da casa que até aparece para assistir num domingo a uma aula de caligrafia chinesa para crianças, seja ainda porque institucionalmente Carmen é convidada para as receções de Dia Nacional de vários países, como o caso do Japão, onde aliás nos encontrámos e combinámos finalmente o dia desta conversa.
Esta interação com a sociedade que é essencial ao próprio funcionamento do Centro é assumida com naturalidade. "Talvez pelo facto de o início do meu percurso deixar transparecer motivações que ultrapassavam a esfera académica, as minhas opções continuaram a ser feitas em função, não só da curiosidade científica, mas também da realização profissional, cultivando o gosto pela interação social e a organização de eventos. Sempre considerei o trabalho de divulgação científica à comunidade um dever cívico: é o retorno do investimento que a sociedade, direta ou indiretamente através do Estado e de fundações, faz nos cidadãos a quem são atribuídos apoios para fazer investigação", sublinha Carmen.
Comento, enquanto Carmen pega no bule para segunda chávena de chá, que recentemente o DN publicou uma reportagem sobre a Biblioteca Fundação Jorge Álvares do CCCM. E se o Museu com a sua coleção dedicada a Macau e também de arte chinesa é extraordinário, a Biblioteca com o nome do primeiro português a desembarcar na China (1513) é considerada a mais bem apetrechada na área dos estudos asiáticos do país. E teria sido muito útil se existisse naquele tempo quando a atual diretora do CCCM começou a interessar-se pela China ainda no ISCSP, como a própria admite e eu próprio posso testemunhar, pois ainda me recordo como fiquei feliz, pouco depois de ir estagiar na secção Internacional do DN em 1992, por ter encontrado numa livraria lisboeta uma edição recente em inglês de um Dicionário de História da China. "No meu caso, a China e Macau têm acompanhado o percurso profissional para além da Universidade: é nesta área que sempre publiquei, dei palestras e entrevistas, participei em documentários e dinamizei eventos. Comecei a fazer os trabalhos de Licenciatura sobre a China por mero acaso - o meu tio, historiador, quando ia dar aulas à Universidade de Macau, trazia bibliografia, numa época em que era difícil obter documentação. Na altura a China não estava na moda, mas quando escolhi o tema da dissertação de Mestrado, pareceu-me evidente dar continuidade à especialização. A tese de doutoramento foi sobre as negociações de Macau porque o meu orientador insistiu no interesse que a Universidade de Londres tinha na comparação com Hong Kong. Estávamos em 1999, ano da retrocessão de Macau à China, e tinham passado dois anos da transição de Hong Kong", conta.
A versão portuguesa da tese - o livro que me ofereceu - acabaria por ser publicada pela casa editorial do CCCM, que Rui Dantas, desde 1999 no Centro, dirige há sete anos. "Quando estava na Universidade de Coimbra, vim várias vezes ao CCCM, até trouxe cá os meus alunos para conhecerem o Museu e a Biblioteca. É a melhor biblioteca com obras sobre a Ásia em Portugal!", diz, com evidente amor à camisola a uma instituição em que se reconhece. "A motivação de concorrer à presidência do CCCM foi precisamente conferir um propósito e aplicabilidade prática à atividade de investigação. Trata-se de um instituto público que tem uma missão única em Portugal, de promover o conhecimento das relações entre a Europa e a Ásia, especialmente com a China e dando destaque a Macau. E consegue reunir uma quantidade de valências, da museologia à documentação, passando pela investigação e formação, e uma casa editorial. Todos os dias surgem desafios nalguma destas dimensões, que requerem alguma imaginação e criatividade e sobretudo dinamismo e espírito positivo. Espero que a minha passagem pelo CCCM deixe transparecer o entusiasmo com que sempre quis contribuir para o conhecimento da China em Portugal. Continuo a achar que sou uma afortunada em trabalhar por gosto e não (apenas) para sobreviver!"
Carmen mostra-me no computador o site do Centro, onde está o Plano Estratégico para 2020-2030, onde escreveu: " A missão do CCCM posiciona-o como um centro de referência internacional em Estudos Asiáticos e interculturais e de atividades científicas de referência na cooperação e relação Europa-Ásia. Isto traduz-se no esforço de oferecer um melhor entendimento do passado, presente e futuras tendências das relações entre a Europa e a Ásia e de incrementar a cooperação científica e cultural nesta área, um campo temático da maior relevância."
O CCCM tem, de facto, um papel importante nas relações de Portugal com a China e isso ficou comprovado durante a visita a Portugal em dezembro de 2018 do presidente Xi Jinping, quando o Memorando de Entendimento entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal e o Ministério da Ciência e Tecnologia da China para uma parceria em termos de Ciência e Tecnologia referiu especificamente "a promoção da colaboração de instituições chinesas com o Centro Científico e Cultural de Macau". Também com amor à camisola, recordo a Carmen que foi no DN que Xi publicou um artigo sobre as relações históricas e atuais entre os dois países, em que até fazia referência a um casal que ambos conhecemos bem, a professora Wang e o marido, o professor Lu Yanbin, que são os professores de mandarim do CCCM. "Há, em Portugal, um casal de professores chineses idosos que ao longo de décadas, apesar de terem problemas de saúde, não se cansam de ensinar a língua chinesa e divulgar a cultura chinesa", escreveu então Xi no jornal.
Falemos, pois, de cultura chinesa e de como esta cativou Carmen: "A cultura chinesa fascinou-me desde a primeira viagem, apesar do choque cultural que senti no período em que estive a aprender mandarim e a viver com uma família local. As contradições entre a tradição e a modernidade tornaram o dia-a-dia num desafio! Tive oportunidade de observar o funcionamento das interações familiares numa sociedade tendencialmente orientada para o coletivismo, caracterizada pelo autoritarismo, controlo parental e normas de lealdade, em que o indivíduo é encorajado a manter a ordem hierárquica e as relações interpessoais harmoniosas. A tendência para o coletivismo no fundo é a aplicação da orientação holística chinesa à esfera social, em que o objetivo de uma relação harmoniosa leva a que se faça tudo para ultrapassar conflitos externos, levando a que a estrutura social chinesa seja caracterizada por uma organização hierárquica rígida, em que os papéis sociais são definidos de acordo com a idade, a posição social e o género do indivíduo, e onde a família assume um papel central. Estes fatores sociais estruturais, interagindo com certos pensamentos e doutrinas morais e religiosas dominantes, como o confucionismo, o taoismo e o budismo, levam a um modo específico de socialização. Aprendi a importância dos conceitos de "face" e de "guanxi", determinantes para entender o comportamento chinês em contextos sociais, políticos e organizacionais, pois referem-se à rede de relacionamento interpessoal e à estratégia de obtenção de favores. A minha forma de ver o mundo nunca mais voltou a ser a mesma, deixando de ter por universais as regras de comportamento aceites na Europa. Mais tarde, acabei por viver em Macau e gostei imenso".
Estamos quase a terminar. Carmen diz que tem mesmo de subir e Rui faz questão de também a vir relembrar das horas. Mas a presidente do CCCM quer ainda realçar que o trabalho que desenvolveu enquanto investigadora "teve sempre subjacente a necessidade de combater o divórcio entre a Universidade e os decisores políticos e económicos; entre a academia e a sociedade civil". E, nesse contexto, sublinha que num projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, chegou a entrevistar quase 500 pessoas, sobretudo decisores políticos e em todos os países de língua portuguesa, sobre a presença da China.
Sobre as Conferências da Primavera, que duram até 24 de março, diz terem nascido da sua convicção de que o CCCM seria o local ideal para organizar um encontro científico anual porque é um espaço neutro, que não concorre com as instituições de ensino superior, o que acaba por fazer com que os investigadores se sintam à vontade. Despeço-me de Carmen, que sei ser leão por ter nascido em agosto, perguntando-lhe de que signo chinês é. "Coelho. E estou no meu ano. A professora Wang, que também é coelho, até me disse que se deve ter certas cautelas quando isso acontece", responde entre risos. Pergunto agora quais. "Na cultura chinesa, diz-se que as pessoas do signo no ano em que ele se repete chamam muito a atenção dos deuses e portanto devem ter cuidado. A professora Wang até recomendou usar sempre uma peça de vestuário vermelho para afastar as invejas". Rimo-nos um pouco. Mas conscientes de que a multimilenar cultura da China, país de mais de 1400 milhões de habitantes e segunda economia mundial, merece todo o respeito.
leonidio.ferreira@dn.pt
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal