“A comunidade indiana, por natureza, educação e o ethos que traz consigo, é trabalhadora”
Foto: Gerardo Santos

“A comunidade indiana, por natureza, educação e o ethos que traz consigo, é trabalhadora”

O embaixador Puneet R. Kundal falou ao DN da ambição da Índia de ser membro permanente do Conselho de Segurança, a parceria com os EUA, a vizinhança difícil com o Paquistão e a relação com Portugal.
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A Índia é hoje o país mais populoso, também uma civilização-nação, e uma grande potência económica. Qual é a importância de vir a ser membro do Conselho de Segurança da ONU?

Somos cerca de 1,4 mil milhões. Em termos de população, ultrapassámos a China. Sempre vimos a nossa população como um bem positivo. Sempre dissemos que se há uma boca para alimentar, então há duas mãos para trabalhar. E esse tem sido o princípio e temos conseguido formar a nossa força de trabalho de uma forma que tem contribuído positivamente. Somos agora a quinta maior economia do mundo. Segundo alguns padrões, até mesmo a quarta. E certamente que a expectativa é que nos próximos anos sejamos a terceira maior economia. Isso deixaria apenas a China e os EUA à nossa frente. Mas, mesmo assim, temos algumas pessoas a dizer que deveremos ser a maior economia até 2075, o que não é assim tão distante. E somos uma nação, um estado civilizacional. Temos uma história que remonta a 5000 a.C., à civilização harappiana e até mesmo para além disso. E representamos cerca de 18-19% da população mundial. Portanto, sim, temos a aspiração de estar no Conselho de Segurança da ONU. Não é possível deixar 18% do mundo de fora da estrutura de gestão ou dos mecanismos de governação financeira ou política do mundo. E posso acrescentar que recebemos o apoio de vários países, incluindo os membros permanentes da ONU, apoiando a nossa candidatura. Também estamos gratos a Portugal por isso. O primeiro-ministro Luís Montenegro, no ano passado, no discurso na ONU, disse claramente que a Índia e também o Brasil merecem estar no Conselho de Segurança da ONU.

Sendo a Índia uma grande potência, como é a relação com a maior delas, os EUA? Sei que há boa relação pessoal entre o primeiro-ministro Narendra Modi e o presidente Donald Trump. E também existe uma comunidade indiana influente nos EUA.

Fui responsável pelo departamento comercial da Embaixada da Índia em Washington. E isso aconteceu durante a última administração do presidente Trump. Portanto, é um país que conheço bem. É um país que é o nosso maior parceiro comercial. No ano passado o nosso comércio foi perto dos 190 mil milhões de dólares. É um país que tem sido uma grande fonte de investimento, perto de 5 mil milhões no ano passado. É um país onde vivem cerca de 5,4 milhões de pessoas de origem indiana. E vê-se os sinais disso, mesmo na atual administração, pois há muitas pessoas de origem indiana que estão a ocupar posições de destaque. É também um país que é o destino favorito dos estudantes indianos. Temos cerca de 350.000 alunos a estudar nos EUA. É uma relação que abrange todos os níveis. Se olharmos para a energia, os EUA são o nosso sexto maior parceiro comercial. Valem 13,5 a 14 mil milhões de dólares em energia. Em termos de defesa, é uma relação que realmente cresceu estrategicamente. De uma base quase nula há 20 anos, hoje temos uma relação que vale cerca de 24 mil milhões de dólares em equipamentos que compramos aos EUA. Fomos designados como um importante parceiro de defesa dos EUA. Conseguimos ter apoio bipartidário no país. Assim, seja a administração republicana ou a democrata, conseguimos manter a relação no bom caminho. Também estamos a cooperar em áreas muito novas e de nicho. A inteligência artificial é uma delas. O nosso primeiro-ministro esteve em Paris, copresidindo à cimeira da IA. E tivemos o primeiro-ministro nos EUA reunido com o presidente Trump. É uma relação do futuro, com muito potencial. Em termos de, como já disse, defesa, há 20 anos, não tínhamos quase nada, mas hoje, se analisarmos bem, talvez entre 10-15% das nossas plataformas e equipamentos sejam de origem americana. É claro que a Rússia continua a ser a maior. Está ainda entre os 60-70%. E deixe-me também lembrar-lhe que foi em 2005, depois do nosso teste nuclear, o acordo nuclear com os EUA que realmente abriu as portas da Índia ao resto do mundo. Aceitámos a monitorização da AIEA e, sabe, isso levou-nos a obter tecnologia nuclear. Atualmente, a Índia e os EUA têm uma Parceria Global Estratégica Abrangente.

Referiu a Rússia, que é um parceiro da Índia desde os tempos soviéticos. Mas também há a China. E a Índia é membro dos BRICS com estes dois países. Como é que a Índia lida com ser parceira destas duas potências, especialmente a China, com a qual tem disputas territoriais?

A Índia e a China coexistem há milhares de anos. Hoje, ambas são potências nucleares. Somos dois países grandes, mais de mil milhões de pessoas a viver em cada um dos lados. Temos os nossos problemas, claro. Mas o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros numa das suas recentes palestras, colocou isto de uma forma que explica tudo. Disse que a relação Índia-China tem de ser analisada em termos de três paradigmas, que são o respeito mútuo, a sensibilidade mútua e os interesses mútuos. Agora, temos um comércio bilateral anual de cerca de 118, 119 mil milhões de dólares com a China, sendo que a balança comercial lhes é favorável. Penso que exportam cerca de 100 mil milhões de dólares e nós exportamos entre 18 e 19 mil milhões de dólares. Mas é uma relação que tem os seus problemas. E, na verdade, enquanto não houver uma solução completa para a questão fronteiriça, não será possível ter uma relação totalmente normalizada. Isso é algo com que concordamos. Dito isto, se olharmos para os BRICS, temos pontos de vista semelhantes. Cooperamos uns com os outros na Organização de Cooperação de Xangai. Temos intercâmbios diplomáticos regulares. Temos embaixadas que continuaram a funcionar durante todo o período em que tivemos problemas na fronteira.

A China tem tido sucesso nos últimos 40 anos em termos de economia. A Índia está também a ter sucesso, mas começou depois e ainda não está ao mesmo nível. Como antevê o desenvolvimento económico da Índia?

Sim, a China iniciou as suas reformas económicas muito antes de nós, em 1978. Começámos as nossas em 1991. Mas é preciso dar crédito ao facto de que as reformas numa sociedade aberta, liberal e democrática seguem o seu próprio curso. Não se pode forçar a passagem. A Índia é uma democracia. Cada questão é debatida, discutida. Qualquer reforma precisa de ser levada ao parlamento. Todos precisam de estar a bordo. E temos o espectro completo, da extrema-esquerda à extrema-direita, presente na Índia. E é por isso que tem sempre de encontrar esse caminho do meio, que seja aceitável para todos, e seguir em frente. Depois, é claro, o caminho que a Índia irá tomar será automaticamente mais lento. Dito isto, o caminho que tomamos será muito mais firme, muito mais estável, muito mais amplo e aceitável para todos. E envolve todos. Os eleitores votam de cinco em cinco anos. Transmitem as suas decisões de forma muito, muito clara. O primeiro-ministro Modi, por exemplo, conquistou o terceiro mandato no ano passado. Estamos a falar de um eleitorado de 900 milhões. É uma vez e meia a população da Europa. Quando se recebem mandatos tão claros, então sabe-se que algo positivo está a acontecer. E é essa a diferença entre o caminho indiano e o chinês. Assim, as nossas reformas, o nosso progresso, o nosso desenvolvimento, são mais vastos. Envolve pessoas. Envolve um amplo consenso. É um consenso democrático. E somos um país laico, com quase todas as religiões que se possa imaginar presentes na Índia. Pode pensar em 1500 idiomas. Pode pensar em 22 línguas oficiais. Pode pensar em 15.000 dialetos. E pode pensar em pessoas de todas as raças. Portanto, é realmente uma maravilha, e, como referi, é um país civilizacional. As reformas económicas certamente nos levarão na direção certa.

A Índia, desde a independência, é um Estado laico. Mas há críticas ao governo, dizendo que não é totalmente justo com a minoria islâmica. Como vivem juntos estes mil milhões de hindus, mais de 200 milhões de muçulmanos, uns 30 milhões de cristãos, 20 milhões de sikhs, etc, etc?

Não aceito que haja qualquer tipo de problema para qualquer religião na Índia. Certamente não há. Na altura da partição, a população muçulmana era de cerca de 20%. Continua a ser a mesma percentagem. Se, por outro lado, olhar para o Paquistão, a minoria hindu era de cerca de 23% nessa altura. Caiu para 2%. Obviamente, há algo a acontecer que não está bem. Sabemos da radicalização que lá aconteceu. Mas, de qualquer forma, esta não é uma comparação que eu goste de fazer. No que diz respeito à Índia, como embaixador, com o máximo da minha autoridade, posso confirmar-lhe que não há problemas entre religiões na Índia. Mas, como disse, dada a diversidade da Índia, há problemas que são locais e que são abordados localmente. Nenhuma sociedade está isenta de problemas. E muitos destes problemas remontam aos tempos coloniais. É o que se chamava a política de dividir para reinar, que foi realmente a razão para a partição da Índia em 1947.

Falou sobre a partição, o fim do colonialismo britânico e a criação das modernas Índia e Paquistão. Como está hoje a relação da Índia com o Paquistão?

O Paquistão é um país vizinho. E gostaríamos de ter relações de amizade com todos os nossos vizinhos. Infelizmente, tal não aconteceu porque o Paquistão fez uso do terrorismo enquanto instrumento de política de Estado. Não nos esqueçamos que, em 2008, tivemos os ataques em Bombaim, pelo Lashkar-e-Taiba, que realizava esses ataques. E em 2019 tivemos um ataque a um autocarro que transportava forças paramilitares. 40 deles morreram, obra do Jaish-e-Mohammed. Ambos estão baseados no Paquistão. E em 2024, registaram-se 25 casos de terrorismo, cuja origem veio do Paquistão. Perdemos cerca de 25 pessoas fardadas e 30 civis, creio. O Paquistão tem fomentado o terrorismo transfronteiriço e contribuído com o fornecimento de armas, escavações de túneis e contrabando de drogas para o país. Ora, isto é algo que não pode continuar. Dito isto, sempre expressamos que gostaríamos de ter relações amigáveis e viradas para o futuro. E foi realmente o Paquistão, em 2019, que fez recuar tudo. Até o nível de representação diplomática foi reduzido. Cortaram os laços de comunicação. E um lembrete triste, mas um lembrete que todos devemos dar uns aos outros, é que Osama bin Laden foi descoberto em Abbottabad, no Paquistão. E este apoio ao terror parece continuar, o que está agora, na verdade, a corroer o seu próprio corpo político. A radicalização começa agora a afetá-los. Lembro-me da famosa frase de Hillary Clinton sobre ter as cobras no quintal que um dia te virão morder.

Chegou a Lisboa em meados de 2024. Como descreve a relação Portugal-Índia?

É um relacionamento enraizado na história. E é, na verdade, um tipo de relação que criou uma identidade, tanto para a Índia como para Portugal. Simplificando, Portugal tornou-se Portugal quando descobriu a Índia. E a Índia tornou-se Índia quando foi descoberta por Portugal. Hoje, a agronomia da Índia seria muito diferente, por exemplo, se os portugueses não tivessem trazido papaias e ananases e uma série de culturas originárias da América do Sul. Comemoramos este ano 50 anos do restabelecimento das relações diplomáticas entre a Índia e Portugal. Regressámos em 1975. E desde então, o relacionamento expandiu-se. Temos tido contactos de alto nível. O presidente de Portugal visitou-nos em 2020. Tivemos aqui o nosso primeiro-ministro em 2017. O primeiro-ministro Costa visitou a Índia no mesmo ano. O nosso ministro dos Negócios Estrangeiros visitou Portugal em novembro de 2023. Em dezembro do ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros Rangel visitou a Índia, que foi a sua primeira visita ao país. Começamos este ano com uma nota muito positiva, um festival de cinema no São Jorge. E esperamos celebrar este ano de uma forma adequada, incluindo, quem sabe, com uma visita de Estado de alto nível da Índia.

Sobre a economia, há investimentos indianos em Portugal?

Os nossos investimentos aqui estão na casa dos 460 milhões de euros. E a possibilidade de aumentar é enorme. Há algumas áreas nas quais penso que nos podemos concentrar. A TI é uma área. Fiquei muito feliz por visitar a Web Summit em novembro do ano passado. E essa foi a primeira vez, aliás, que recebemos uma delegação da NASCOM, que é a maior associação de software da Índia. Visitaram o local alguns dias antes da Web Summit, mas foi uma surpresa que a Web Summit não conhecesse a NASCOM e que a NASCOM não tivesse conhecimento da Web Summit. Por isso, estou feliz por os termos colocado em contacto. Ainda assim, tivemos cerca de 150 participantes da Índia na Web Summit. Estamos também a procurar cooperação nas energias renováveis e no hidrogénio verde. Os contactos interpessoais são muito importantes. O comércio e o turismo são também uma função de conectividade. Estamos a analisar a assinatura de um acordo de serviços aéreos, que esperamos poder finalizar e assinar em breve, o que nos permitiria ter voo direto entre a Índia e Portugal.

Há uma crescente comunidade indiana em Portugal. Como vê a integração dos novos imigrantes indianos no nosso país?

Os imigrantes preenchem uma lacuna de mão-de-obra muito crítica que existe em Portugal. E acho que há uma valorização disso. Tudo o que posso dizer sobre a comunidade indiana, parte de uma diáspora indiana no mundo que é hoje de cerca de 36-37 milhões, é que se olharmos para as estatísticas da criminalidade desta diáspora, elas são quase inexistentes. A comunidade indiana, por natureza, pela educação que recebeu e pelo ethos que traz consigo, é trabalhadora, amante da paz, integrando-se numa nova sociedade com grande facilidade. E penso que não só preenche a lacuna de mão-de-obra que existe em Portugal, como tem a capacidade de contribuir positivamente para o espírito multicultural e acolhedor de que Portugal tanto se orgulha.

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