A China comunista celebra hoje 75 anos e a Revolução agora é ultrapassar os EUA

A China comunista celebra hoje 75 anos e a Revolução agora é ultrapassar os EUA

Poster de Mao continua na entrada da Cidade Proibida, mas a China de 2024 é bem diferente da China de 1949. As reformas económicas deram meios ao país para tentar ser a superpotência do futuro.
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"Nasci em 1951 e posso dizer que cresci com a nova China, testemunhando a melhoria constante da vida dos chineses, em todos os aspetos, sobretudo depois das reformas de 1979/1980. Cito dois exemplos. Comprávamos tudo com cupões: cereais, carne, peixe, etc. Contudo, foi eliminado entre 1984 e 1993 o uso desses cupões. Para um casamento, nos anos 1960, era preciso preparar ‘36 pés’, isto é, ter cama, mesa-de-cabeceira, roupeiro, cómoda, mesa e quatro cadeiras; nos anos 1970, ter ‘três peças a rodar e uma peça a soar’: máquina de coser, bicicleta, relógio e rádio; nos anos 1980, ter ‘três peças grandes’: televisão a cores, frigorífico e máquina de lavar; nos anos 1990, ter ‘três peças grandes renovadas’: ar condicionado, aparelhagem de sons e vídeo; e hoje fala-se de apartamento, carro e dinheiro”. Este testemunho é de Wang Suoying, professora de chinês em Portugal, que nasceu em Xangai dois anos depois de Mao Tsé-Tung ter proclamado a República Popular da China (RPC) a 1 de outubro de 1949. Passaram 75 anos e as transformações sentem-se hoje não só na vida quotidiana dos chineses como na geopolítica. 

O Partido Comunista Chinês (PCC) tomou o poder depois de uma guerra civil contra os nacionalistas do Kuomintang (KMT), que se refugiaram em Taiwan. Antes, a China tinha enfrentado um século de dificuldades, com a dinastia Qing, que suportou a humilhação das reivindicações coloniais ocidentais, a cair em 1912, sucedendo-lhe uma primeira república que depressa se deixou tomar pelos senhores da guerra. O ataque japonês na década de 1930 foi a tragédia seguinte, e o papel da guerrilha comunista na expulsão dos invasores deu a Mao o prestígio para assumir o controlo do país, afastando Chiang Kai-Shek. O generalíssimo também se distinguira a combater os japoneses, mas a popularidade do PCC, que se sentia “como peixe na água” nos campos como nas cidades, fez dele uma força formidável, então com o apoio da URSS.

Mas a RPC de hoje é bem diferente da imaginada por Mao, um grande revolucionário, mas que deixou muito a desejar como governante. Foi só depois da sua morte, em 1976, que as reformas económicas foram possíveis pela mão de Deng Xiaoping, em 1979/1980. Essas reformas fizeram da China hoje a segunda maior economia, e apesar do nível de riqueza médio ser ainda bem aquém do dos EUA ou do da Europa, o bem-estar dos 1440 milhões de chineses é muito superior ao de 1949, como conta a professora Wang e pode testemunhar quem visite a China e veja milagres como o da transformação de Shenzen de  aldeia de pescadores em cidade de arranha-céus.

Segunda maior economia

“Ao longo dos últimos 75 anos, criámos com sucesso um caminho de modernização do estilo chinês e dois milagres: o rápido desenvolvimento económico e a estabilidade social a longo prazo. A China tornou-se na segunda maior economia do mundo, contribuindo para mais de 70% para a redução da pobreza mundial. A inovação e as novas forças produtivas de qualidade continuam a liderar o desenvolvimento da China. Grandes avanços científicos e tecnológicos, como a estação espacial, grandes aeronaves, Beidou, sistema de navegação por satélites e novos veículos de energia limpa, injetam novo impulso ao desenvolvimento económico da China bem como criam novas oportunidades para o mundo”, afirmou o embaixador   Zhao Bentang, no discurso há dias em Lisboa para assinalar o 75.º aniversário.

E numa cerimónia em Pequim, o presidente Xi Jinping, falou ainda mais virado para o que vem aí: “Uma grande era exige heróis e promove heróis.  Uma galáxia de heróis surgindo geração após geração garantirá o sucesso duradouro do Partido e da causa do povo”.

Orgulho na História

O discurso oficial continua a ser o de louvar as conquistas da Revolução, mas um dos sinais de mudança da China de Mao para a de Xi, líder desde 2012, é a reconciliação com a História de um país que pode reivindicar pelo menos quatro mil anos de continuidade como civilização, mesmo que a primeira dinastia, a Qin, date do século III a.C.  “A história tem um peso importantíssimo para a RPC e os líderes comunistas nunca perderam a visão do sistema tributário que prevalecia no tempo dos imperadores e colocava a China no centro do mundo. A própria palavra China, em chinês lê-se zhongguo e significa, literalmente, país do centro/império do meio. Os chineses continuam a ter muito orgul ho na sua história, evitando referências aos períodos em que falhas por parte da liderança são evidentes. Mao, com todos os erros que possa ter cometido, é visto como o homem que uniu a China e a libertou da ocupação estrangeira. Na entrada da Cidade Proibida, onde residiam os imperadores, ainda hoje está afixado o retrato de Mao! Ou seja, não há uma ruptura com o passado, há continuidade daquilo que continuam a considerar um grande império. E o regime comunista chinês continua a ter muito de confucionista”,explica a professora Carmen Amado Mendes, presidente do Centro Científico e Cultural de Macau.

O retrato de Mao na praça de Tiananmen, a principal da capital chinesa e palco da repressão das manifestações pró-democracia de 1989, mostra que as reformas económicas, apesar das cedências ideológicas pontuais, não puseram em causa o sistema de partido único. Luís Tomé, diretor do Departamento de Relações Internacionais e do OBSERVARE da Universidade Autónoma de Lisboa, sublinha que “o comunismo na RPC está patente no ‘papel dirigente’ do PCC e na inscrição constitucional do Marxismo-Leninismo como primeiro dos ‘guias de ação’ do Partido e do Estado, daí resultando o domínio do Partido-Estado sobre a economia e os negócios privados, condicionando os convencionais mecanismos de mercado. A especificidade reside na adaptação do comunismo às ‘características chinesas’, conciliando autoritarismo político com um certo tipo de liberalismo económico ou capitalismo de Estado, o que passa por tornar os empresários militantes e simpatizantes do Partido e, por outro lado, pela simbiose entre o Partido-Estado e os agentes económicos e as ‘novas classes emergentes’”. 

Glorioso enriquecer

Presidente Xi Jinping brinda em Pequim para assinalar os 75 anos do triunfo da Revolução.
Crédito: EPA/ANDRES MARTINEZ CASARES

O PCC passou a basear a sua legitimidade na oferta de prosperidade à população. Os 5% de taxa de crescimento previstos para 2024 seriam de sonho para a maioria dos países da UE e para os próprios EUA, mas fazem fraca figura em relação aos dois dígitos que foram a regra nas primeiras três décadas depois de Deng ter dito “ser glorioso enriquecer”. Aliás, a par do envelhecimento da população,  a manutenção do dinamismo da economia está entre as grandes preocupações.

As reformas económicas de Deng - também obra do pai de Xi, o então governador de Cantão, Xi Zhongxun, que sugeriu a criação das Zonas EconómicasEspeciais - começaram no sul, perto de Hong Kong e Macau, e daí o milagre do desenvolvimento de uma cidade como Shenzhen. José Rocha Dinis, antigo diretor do Tribuna de Macau, assistiu às mudanças radicais na região de Cantão, hoje chamada de Grande Baía, e também à reintegração dos dois territórios governados por britânicos e portugueses na mãe-pátria. “A China tem hoje diversas zonas de enorme desenvolvimento económico. A Grande Baía é um projeto de enorme futuro - nove grandes metrópoles, as mega-cidades chinesas sob economia socialista, mais Hong Kong e Macau sob economia capitalista - mas é ainda um projeto ‘em construção’. Do que me foi dado ver, o que chamei de hardware está preparado (as infraestruturas físicas para o crescimento de diferentes setores), mas ainda escasseia em quantidade o software (os técnicos para promoverem esse crescimento). Neste momento, a China Continental já atrai técnicos de Hong Kong e Macau, e com um forte incremento no ensino superior, quer local, quer nas melhores universidades mundiais, não tenho quaisquer dúvidas que, em breve, será também, um polo de enorme desenvolvimento”. Se fosse um país, sublinhe-se,  a Grande Baía seria a 13.ª economia mundial, e é apenas um dos polos da nova China.

A entrega de Hong Kong (1997) e Macau (1999) à China, uma das grandes vitórias da RPC , acrescenta o jornalista, “estava escrita no desígnio chinês, para se materializar antes do fim do século XX. Nos anos 1950, aquando do cisma dos comunismos e perante a crítica soviética que a China tinha dois territórios sob administração ocidental, Pequim reconhecia o facto, explicava a importância que tinham para o seu desenvolvimento, mas garantiam que antes do fim do século, voltariam ambos para a terra mãe”. 

A concretização da inovadora ideia de ‘um país, dois sistemas’, formulada por Deng a pensar também em Taiwan, tem sido atribulada em Hong Kong, onde uma boa parte da população defende a democracia local contra as ingerências de Pequim, mas não tanto em Macau, que nunca teve nem a importância económica da antiga colónia britânica, nem o mesmo nível de ativismo político. E se hoje sobressai a relação económica entre Portugal e a China, a ligação histórica de cinco séculos não deixa de ser importante e pode dar ao nosso país um papel no relacionamento da nova China com o Ocidente, como nota Bernardo Ivo Cruz: “Embora a importância dos investimentos chineses em Portugal seja significativa, há uma outra dimensão que vai ganhando importância no quadro das relações internacionais e das dinâmicas no Pacífico. Como todos sabem, incluindo Pequim, Portugal é uma democracia europeia ocidental e atlântica, membro da ONU, da NATO e da UE e somos igualmente um membro da CPLP. Ao mesmo tempo, temos uma relação antiga e estável com a China e estamos a meio do processo de transição de Macau. Não temos angústias nem dúvidas sobre onde estamos e quem somos”. O ex-secretário de Estado para a Internacionalização acrescenta que “Portugal poderá, assim, desempenhar um papel mais ativo no diálogo entre os nossos aliados e a RPC, em particular numa altura em que as relações entre uns e outros estão mais difíceis.”

Líder do Sul Global

Retrato de Mao Tsé-tung continua na entrada da Cidade Proibida, antiga residência de imperadores.
Crédito: Getty Images

O lugar da China no mundo era já um tema na época de Mao, que queria ser um farol revolucionário, e continua em lugar de destaque com Xi, o mais poderoso líder desde Mao, que em 2013 lançou o projeto Uma Faixa, uma Rota, que tem tanto de económico como de geopolítico, e que visa sobretudo aquilo que chamamos Sul Global. 

“A China, 75 anos depois da Revolução, é um farol bem diferente. Então, o setor privado era proibido, o apoio a países do terceiro mundo e movimentos de libertação era político-militar. Hoje, o país tem uma economia capitalista controlada por um PCC pouco empenhado em ideologias e primeiro exportador mundial de bens industriais. Mantém a ‘não interferência nos assuntos internos’ o que quer dizer investir, financiar e vender sem olhar a quem.  A sobrevivência do regime assenta no apoio da população, que aceita trocar liberdade por conforto, o que obriga a taxas de crescimento de 5% ao ano. Por isso, a China defende a globalização e a ordem multilateral - criada pelos americanos, que hoje cada vez mais a rejeitam”, afirma Fernando Jorge Cardoso, especialista em relações internacionais.

Segunda maior economia (depois dos EUA), segundo maior orçamento militar (de novo só atrás dos EUA), é inegável uma competição entre as duas grandes potências da atualidade. Estará essa competição destinada a ser um conflito aberto? Para Luís Cunha, “o choque entre as duas maiores potências é cada vez mais visível a vários níveis. O mais decisivo desses campos será o do tecnonacionalismo. Xi diz que a China tem que estar no centro do palco mundial. A China vem aproveitando uma certa fadiga imperial dos EUA para reforçar a sua esfera de influência na Ásia Central, Médio Oriente e África entre outros pontos do globo. O chamado Sul Global é dominado pela China. A transformação geoestratégica dos últimos anos é crucial”.

Armadilha de Tucídides

Acrescenta o especialista em Assuntos Asiáticos, que “os EUA já não escondem a intenção de conter a ascensão da China e esta já não esconde que pretende ultrapassar os EUA. Para ser uma verdadeira potência, falta à China a consolidação da expansão militar. Já possui a maior marinha de guerra. Kissinger propunha o G2, o condomínio entre os EUA e a China, que parece irrealista”. E alerta: “Historicamente a ‘armadilha de Tucídides’mostra que a disputa entre a potência incumbente e a potência em ascensão resulta em guerra. A problemática em redor de Taiwan tem todas as condições para conduzir a um conflito armado EUA-China”.

Luís Cunha diz que “o envolvimento dos EUA e da Rússia em guerras de enorme desgaste beneficiam a China e o seu programa de desenvolvimento. A guerra na Ucrânia fragilizou a Rússia estrategicamente, que passou a depender do apoio da China, sua maior aliada. Ao auxiliar a Rússia economicamente e com materiais de duplo uso (civil e militar), a China afronta os EUA. O envolvimento dos EUA na defesa da Europa desvia as atenções do verdadeiro foco estratégico americano que é a contenção da China”.

Sobre a anexação de Taiwan (a tal ilha refúgio do KMT em 1949 e hoje uma democracia) ser uma ambição de Xi para terminar a reunificação da mãe-pátria, e os riscos que dai advêm, o general Carlos Branco analisa: “A China só encarará uma solução militar para a questão taiwanesa, se Taipé declarar a independência. A colocar-se essa possibilidade, presumindo que os EUA irão em socorro de Taiwan, é elevada a probabilidade de Washington cometer um tremendo erro de cálculo estratégico. A formidável capacidade expedicionária americana dependente de uma linha de comunicações com cerca de 11 mil quilómetros e as forças preposicionadas na primeira linha de ilhas poderão ser insuficientes para prevalecer sobre as forças armadas da China, dotadas da maior marinha do mundo e a jogar em casa. Assumindo que os EUA não se encontram empenhados militarmente noutras regiões, que os seus parceiros no Pacífico não se envolvem, e que o conflito se mantém no patamar convencional.”

Harris e Trump vs China

A China está com os olhos nas presidenciais americanas. E, tal como a Rússia, tenta perceber que diferenças há entre Donald Trump e Kamala Harris, se bem que os anos recentes têm mostrado que em Washington republicanos e democratas estão mais em sintonia sobre Pequim do que em relação a Moscovo. “As diferenças serão sempre enquadradas pelo consenso que passou a existir relativamente à China, considerada um adversário estratégico que visa destruir a ordem liberal assente na hegemonia americana. Trump e Harris acreditam na necessidade de conter a expansão da influência político-militar chinesa, particularmente em Taiwan e no Mar do Sul da China através de novas ou reforçadas alianças militares. Acreditam, também, na necessidade de evitar que a China ganhe a corrida da inovação tecnológica. As diferenças entre Trump e Harris serão, porém, apenas de ênfase, pois, estrategicamente, ambos pretendem impedir que a China se transforme na maior potência mundial”, explica Vasco Rato, professor de Relações Internacionais, sublinhando a duríssima competição no campo tecnológico.  Portugal, por exemplo, foi pressionado a excluir a Huawei das redes 5G.

O que parece certo é que o mundo unipolar que sucedeu ao fim da Guerra Fria e à desagregação da URSS está condenado, sobretudo pela ascensão da RPC (que só no arsenal nuclear perde para a Rússia). “As duas potências que contam no xadrez global, os EUA e a China, têm a mesma ambição: liderar a comunidade internacional. Essa é a grande competição dos nossos dias e que poderá ser o rastilho para uma confrontação de grandes proporções.  Ao nível das Nações Unidas, a China quer ser vista como o porta-voz dos países em desenvolvimento, o líder do Sul Global. Para o conseguir, procura seguir três vias: conquistar a chefia de várias agências da ONU; adotar uma posição neutral perante os conflito na agenda do Conselho de Segurança; e insistir na necessidade de uma nova ordem internacional, que deixaria de estar subordinada aos interesses ocidentais e teria a China como motor político e principal fonte de financiamento”, explica Victor Ângelo, antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas. Mas há limites para a ambição chinesa, adverte: “Receio que seja uma ambição quimérica. O mundo de amanhã não será apenas bipolar. Caminhamos, isso sim, para uma realidade multipolar. E é aí que as Nações Unidas têm um papel fundamental: continuar a promover a cooperação internacional. Os EUA e a China, enquanto potências de topo, devem passar da competição ao diálogo e ao reforço das diversas missões da ONU. É a única opção positiva.”

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