99 dias depois, há luz ao fundo do túnel. Mas não há túnel
Ficou famosa a tirada de Shimon Peres, o antigo primeiro-ministro, presidente de Israel e Prémio Nobel da Paz: "Vejo luz ao fundo do túnel. Somente não há túnel." Aos 99 dias da invasão da Ucrânia pela Rússia, as indicações no terreno, as declarações de dirigentes e as análises de peritos apontam para que o conflito não tenha um fim tão cedo, onde cada um avista uma luz, mas túnel algum. O que pode levar a uma trégua e a um acordo entre invasor e invadido? Quais são os objetivos mínimos e máximos de Moscovo e de Kiev?
Ao comentar o compromisso de Washington em fornecer a Kiev o sistema de lançamento múltiplo de foguetes Himars, o secretário de Estado Antony Blinken disse que a entrega de armas enquadra-se num cenário para lá do curto prazo. "Tanto quanto podemos avaliar, neste momento, ainda estamos perante muitos meses de conflito. Poderia acabar amanhã se a Rússia escolhesse pôr fim à agressão. Não vemos quaisquer sinais disso neste momento", disse o chefe da diplomacia norte-americana.
Declarações em linha com as da diretora dos serviços secretos nacionais, há um mês. "Consideramos que o presidente Putin está a preparar-se para um conflito prolongado na Ucrânia, durante o qual ainda pretende atingir objetivos para além dos do Donbass", afirmou Avril Haines.
Kiev e Moscovo têm trocado acusações sobre o facto de as negociações terem ficado em suspenso. Na próxima quarta-feira, a diplomacia vai centrar-se na possibilidade de os russos levantarem o bloqueio aos navios com cereais, com a deslocação do ministro russo Lavrov à Turquia, para já sem notícia de que o homólogo ucraniano esteja presente.
No Ocidente, entre os apoiantes de Volodymyr Zelensky, há duas linhas de pensamento: quem defenda uma trégua e negociações o quanto antes, ainda que à custa de concessões da Ucrânia, e quem veja nas negociações com o regime de Putin uma perda de tempo, como ficou demonstrado desde a anexação da Crimeia e o apoio aos movimentos separatistas, em 2014.
No campo do compromisso contam-se o presidente francês Emmanuel Macron e o primeiro-ministro italiano Mario Draghi, que apelam para o urgente fim dos combates. Macron advoga que "a paz não se vai construir com a humilhação da Rússia", e pode incluir a perda de territórios para Moscovo, enquanto Draghi quer uma negociação "o quanto antes" para o fim da guerra.
Do outro lado do Atlântico, um editorial do New York Times argumentava que uma derrota da Rússia é irrealista e perigosa e o ex-secretário de Estado Henry Kissinger sugeriu que a Ucrânia teria de ceder território para alcançar a paz. "As negociações têm de começar nos próximos dois meses antes que isso crie agitações e tensões que não serão facilmente ultrapassadas", disse o norte-americano de 98 anos. O autor de Diplomacia sugeriu que o ponto de partida para as negociações deveria ser a retirada da Rússia para o território que controlava antes da invasão, dando a entender que a Crimeia e partes do Donbass permanecem sob o controlo de Moscovo. "Prosseguir a guerra para além desse ponto não seria sobre a liberdade da Ucrânia, mas uma nova guerra contra a própria Rússia", disse, para escândalo dos ucranianos.
Os líderes (e as populações) dos países bálticos, bem como dos estados do extinto Pacto de Varsóvia, são os mais veementes sobre a política de não ceder. A primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, é uma dessas vozes. Diz que o erro do Ocidente com Putin tem sido o de deixar o líder russo prosseguir depois das agressões como a guerra da Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia e a guerra no Donbass. Para Kallas um acordo parcial que permita à Rússia rearmar-se e depois renovar a ofensiva não é aceitável. "Só vejo como solução uma vitória militar que poderia acabar com isto de uma vez por todas, e também castigando o agressor pelo que fez", diz. Nem sequer vê "a utilidade de falar [com Putin] porque não resultou em nada", disse ao New York Times. "Os telefonemas estavam a ter lugar mesmo antes da guerra, e depois o pior aconteceu, Bucha e Mariupol aconteceram, pelo que não houve resultados."
Na mesma linha dos que, sem papas na língua, chamam a Putin criminoso de guerra está o primeiro-ministro polaco. "Ouvi dizer que há tentativas de permitir que Putin, de alguma forma, salve a face na arena internacional. Mas como se pode salvar algo que foi completamente desfigurado?", questionou Mateusz Morawiecki. Apesar de criticado dentro e fora da Alemanha pela excessiva cautela e lentidão na assistência militar, o chanceler Olaf Scholz quebrou vários tabus do pós-guerra e reiterou o apoio à Ucrânia ao afirmar que "Putin não pode ganhar esta guerra" e que "não haverá paz imposta" pelo russo.
"Queremos recuperar tudo. E a Rússia não quer devolver nada", resumiu o presidente ucraniano. Como, então, chegar à paz? Do lado russo, tendo em conta que os objetivos da "operação militar especial" eram oficialmente "neutralizar", "desmilitarizar" e "desnazificar" a Ucrânia - e como a própria sobrevivência de Putin está em jogo - desconhece-se se a tomada do Donbass dará ao autocrata uma vitória militar suficiente para terminar a ofensiva. Já o presidente ucraniano tem feito declarações nem sempre na mesma linha sobre as condições para o fim da guerra. Segundo as mais recentes e consistentes, o objetivo é que as forças russas regressem às posições anteriores a 24 de fevereiro para depois se poder negociar tudo o mais, incluindo o estatuto do território tomado por Moscovo.