Noventa por cento das 849 habitações ardidas nos grandes e trágicos incêndios de 2017, cuja recuperação foi subsidiada por fundos públicos, estavam a menos de 100 metros de áreas de perigosidade alta e muito alta (ver mapa mais em baixo), de acordo com um mapeamento feito para o DN por especialistas em Sistema de Informação Geográfica, com base em dados públicos, mapas de risco e da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) que coordenou estes apoios. Esta classificação de risco está definida na Carta de Perigosidade de Incêndio Rural criada em 2021, prevista no decreto-lei que institui o Sistema Integrado de Gestão de Fogos Rurais (SIGFR), uma cartografia que comporta cinco classes de perigosidade: muito baixa, baixa, média, alta e muito alta. Dos incêndios de 2024 ainda não está feito o levantamento total das casas a reconstruir mas sabendo que cerca de 80% dos 138 mil hectares ardidos estavam dentro dos limites classificados com perigosidade alta e muito alta, que trabalha e estuda estas matérias está preocupado com o previsível desfecho.Deve o Estado apoiar a construção de habitações onde se sabe cientificamente que um fogo pode chegar de forma muito severa? Embora a resposta pareça um obviamente que não, foi o que aconteceu depois dos grandes incêndios de 2017 e nada impede que possa voltar a suceder com os de 2024. A proteção das pessoas devia estar em primeiro lugar, mas as soluções propostas por quem estuda e trabalha sobre o problema parecem ser esquecidas. Particularmente apreensiva está a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), responsável pelo acompanhamento das políticas públicas que podem ter impacto nestas matérias, com o desígnio último de “proteger pessoas e património natural e construído, face a incêndios rurais graves”. Uma inquietação que se agravou quando foi publicado o texto do recentemente aprovado diploma conhecido por lei dos solos - que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), em vigor desde final de janeiro, apesar das críticas de especialistas e ambientalistas (ver entrevista de Pedro Bingre, presidente da Liga de Proteção da Natureza) e do parlamento estar a preparar alterações. .Pedro Bingre: “Esta Lei não se alinha com o reordenamento da floresta”. Este regime que prevê várias exceções para a reclassificação dos terrenos para se poder construir, como em áreas protegidas ou com “risco potencial significativo de inundações”, não faz qualquer referência ao risco de incêndio rural. A AGIF, um instituto público anteriormente estava na tutela do primeiro-ministro e o atual Governo colocou sob a do ministério da Agricultura, confirmou ao DN que “não foi consultada acerca da alteração ao regime jurídico dos instrumentos de gestão do território”, tal como nenhuma organização ambientalista (ver entrevista ao lado), de gestão florestal ou de ordenamento do território. . Questionada pelo DN, sobre a nova legislação, fonte oficial desta entidade presidida por Tiago Oliveira, especializado na gestão e governança de risco de incêndio florestal e doutorado em Engenharia Florestal e Recursos Naturais, frisa que “a AGIF defende que a expansão de edificação dispersa em espaços rurais não deve ser incentivada (algo que a atual lei não permite, mas que importa garantir na prática)”. Considera, além disso, que “a expansão de aglomerados urbanos para interfaces com áreas de alta perigosidade de incêndio não deveria ser permitida sem antes se assegurar a gestão de combustível - em linha com a literatura científica sobre o Wildland Urban Interface (WUI), com as recomendações da Comissões Técnicas Independentes aprovadas por unanimidade na Assembleia da República e plasmadas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-B/2017, de 27 de outubro, e com as melhores práticas de redução da exposição da população ao risco, em matéria de incêndios. Não sendo possível travar esta expansão, então, as habitações e demais edificações devem ser construídas com regras e materiais adequados e um mecanismo de seguro de incêndios deverá ser obrigatório, acrescendo às atuais obrigações de gestão de combustível”. A Agência lembra que “cada Comunidade Intermunicipal pode definir o limite e as regras das áreas prioritárias para segurança face a incêndios rurais levando em linha de conta o mapa de perigosidade produzido pelo ICNF” e que “caberá depois aos municípios assegurar que não se aumenta o risco, expondo pessoas e edificado à ameaça dos incêndios, e à ANEPC garantir a aplicação de regras de construção e diminuição da vulnerabilidade”.Quanto à reconstrução de casas nos mesmos locais de alto risco, colocando as pessoas em perigo, apesar de toda a informação disponível, a AGIF não hesita em preconizar que “o Estado não apoie, inclusive subsidiando, a construção em áreas de elevado perigo de incêndio” insistindo que “os esforços se concentrem na manutenção das faixas de interfaces urbano/rurais e industriais/rurais, uma vez que é uma prioridade dos proprietários, das autarquias e dos responsáveis da proteção civil e os seus custos assumidos pelos donos da edificações, também apoiados por seguros e uma pequena parte de recursos públicos”. Em termos mais estratégicos, a AGIF recomenda “a concretização das iniciativas aprovadas, como por exemplo a estabilização do uso do solo rústico e urbano (prevista na lei do solos 2015 e reforçada na Resolução de Conselho de Ministros n.º 157-b/2017, de 27 de outubro) e ainda a concretização do Programa Nacional de Gestão Integrada de Fogos, nomeadamente em dois projetos que dependem dos partidos representados na Assembleia e que são cruciais: - alteração da lei das transferências das autarquias, que propõe rever a lei do financiamento das autarquias, aumentando os valores para a prevenção e gestão do território e retirar o peso (dependência) que as novas construções e transações imobiliárias têm para as autarquias; - a revisão de mecanismos reguladores de prédios rústicos, que propõe alterar o regime sucessório tornando obrigatórias as partilhas no horizonte de dois anos, o qual se fosse aplicado também aos prédios urbanos e mistos, mobilizaria terrenos e casas devolutos e abandonados, o que aumentaria a oferta de imóveis, reduzindo assim a necessidade de nova ocupação de terrenos ou edificação”.Além da AGIF, o DN procurou também ter uma posição dos ministérios do Ambiente e Coesão Territorial, do ministro Miguel Castro Almeida; da Agricultura (responsável pelo ordenamento florestal), do ministro José Manuel Fernandes; da CCDRC, presidida por Isabel Damasceno Costa; e da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, presidida por José Manuel Moura, sem ter obtido resposta até à hora do fecho desta edição.Sabendo-se o desafio que os incêndios rurais colocam na paisagem portuguesa e a velocidade com que o fogo se propaga nos dias mais severos, ter habitações e outros edifícios a 100 metros de locais onde esse risco está cientificamente identificado e permitir a sua reconstrução exatamente nos mesmos locais, é, de facto um problema para a segurança das pessoas e de difícil compreensão que, com esta informação, se assista à contestação recorrente, por autarcas (que são os responsáveis máximos pela proteção civil mais próxima dos munícipes), dos instrumentos cartográficos e legais que conduzem a um maior cuidado na construção de casas. De referir ainda, as orientações das Nações Unidas no seu quadro de Sendai para Redução de Risco de Desastres 2015-2030, no qual “reconstruir melhor” (“build back better”) é a palavra de ordem e que por cá parece ser ignorada, apesar da Estratégia para uma Proteção Civil Preventiva 2020 - 2030 também reclamar seguir esses princípios.