Em setembro de 1991, o gelo dos Alpes de Ötztal, no oeste da Áustria, cedeu para revelar um corpo — inicialmente considerado uma vítima recente do frio. Os factos apontaram num outro sentido. O que os montanhistas alemães Helmut e Erika Simon encontraram foi o cadáver de um individuo falecido há 5300 anos — Ötzi, como mais tarde foi chamado, o Homem do Gelo. Não sucumbira à força da montanha, mas a outros homens: trazia uma flecha cravada na omoplata e um golpe na cabeça. A análise do conteúdo do estômago revelou restos de trigo espelta, carne seca de cabra-íbex e de veado. Ötzi envergava pele de cabra e ovelha, calçava sapatos com detalhes em pele de auroque, cobria a cabeça com um chapéu urdido com a pelagem de urso-pardo, e levava consigo uma adaga de sílex, um arco e flechas, e um machado de cobre. Esta última peça revelou-se, pois obrigou os arqueólogos a reverem as datas do Calcolítico naquela região. O cobre provinha da Toscana — indício de rotas comerciais já ativas entre os Alpes e a Península Itálica há cinco milénios. A história de Ötzi, narrada a abrir o livro Escavar o Passado, uma edição Gradiva, não é uma exceção no contexto da obra. É um manifesto. “Sem a Arqueologia, saberíamos muito menos sobre este homem e sobre a época que o viu nascer e morrer”, escreve o arqueólogo e docente Pedro Correia Silva no livro que assina. É a sua forma de dizer: escavar não é encontrar coisas, é tentar compreender pessoas. É essa arqueologia — metódica, humana, crítica — que o autor apresenta tanto no livro como na conversa que mantivemos. “A Arqueologia não é um catálogo de objetos — é uma maneira de pensar o humano a partir do que ficou”, sublinha. Antes de a arqueologia ocupar os dias de Pedro, outra ciência iluminou-lhe o interesse. “Comecei pela astronomia. Cresci no Alentejo, num recanto isolado do concelho de Odemira e sem poluição luminosa, a olhar para o céu e a fazer perguntas. Fascinava-me a ideia de infinito e lia Carl Sagan e o seu Cosmos, entre outros”. Esse fascínio duraria até à adolescência: “No sétimo ano tive um professor de Físico-Química que me marcou e cheguei a pensar em seguir astronomia, mas fui percebendo que, por baixo desse fascínio, estava sempre um outro, a história.” .Seguiu então o percurso académico. “Em 2010 entrei em Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; depois o mestrado, com uma dissertação sobre necrópoles da I Idade do Ferro no Baixo Alentejo”. Mas cedo percebeu que o ofício não se fazia só de arquivos: “A vida levou-me para a prática. Fiz um estágio na Rota Vicentina. No final do estágio, regressei à minha área. Trabalhei em empresas de arqueologia, acompanhamentos de obra, sondagens, até uma dragagem na Barrinha de Mira”. Ao trabalhar no terreno, uma inquietação foi crescendo em Pedro Silva: como comunicar a arqueologia para além dos círculos académicos? “Comecei a organizar ideias sobre arqueologia, lia sobre a área e pensava no que podia oferecer às pessoas de forma que ficassem mais inteiradas. Ou seja, falar sobre arqueologia para a população em geral”. Mas deparou-se com um problema: “Que livros encontrávamos em português recomendáveis para o leigo? Nos livros, eventualmente, o Manual de Arqueologia Pré-Histórica, de Nuno Ferreira Bicho. No entanto, continua a ser uma obra muito densa. Ainda em português, existem alguns livros de divulgação da arqueologia, mas estão esgotados”. Foi daí que nasceu o primeiro livro com autoria de Pedro Silva. “Esta obra ocupou-me ao longo de vários anos, entre a escrita, a revisão científica. Agora, também me dedico ao ensino da História. Em paralelo, criei em coautoria com um colega arqueólogo, o Fábio Silva, a página no Instagram Ecos do Passado”. Camadas, contextos e conflitos: o que a terra nos ensina .Impõe-se a pergunta anterior a todas as outras: O que é a Arqueologia? “Pode ter muitos atributos, mas a resposta mais direta é o estudo do ser humano através das materialidades que deixou. O nosso objeto de estudo é a cultura material — pedras talhadas, cerâmicas, metais, restos orgânicos, estruturas — e o objetivo é reconstruir maneiras de viver e pensar”. E o contexto é essencial. “Um objeto fora do seu contexto perde grande parte do significado. Gosto de usar a imagem do quarto: não olhamos só para a cadeira, olhamos para a sua posição, a relação com a mesa, as marcas no chão, o pó.” No livro, a metáfora do quarto transforma-se em método: a escavação é como folhear um livro em que cada página (camada) que se remove é destruída para sempre. Por isso, escavar é uma responsabilidade ética. Pedro Correia Silva recorda: “Mortimer Wheeler dizia que não há uma maneira certa de escavar, mas há muitas erradas.” E acrescenta: “Seria como um historiador rasgar as páginas dos livros que lê”. A arqueologia moderna, como sublinha, não tem um único fundador: “É uma construção coletiva e em diferentes latitudes”. Um dos primeiros gestos com método veio de Thomas Jefferson, “que no século XVIII escavou uma mamoa na sua propriedade na Virgínia e, em vez de ‘procurar tesouros’, observou as camadas, registou materiais e tirou conclusões prudentes”. Depois, “o alemão Johann Joachim Winckelmann, vindo da história da arte, descreveu o mundo clássico com enorme rigor estilístico e cronológico; não era arqueólogo de campo, mas abriu caminho para olhar as peças no seu tempo e estilo”. No século XIX, Christian Jürgensen Thomsen introduziu a divisão em Três Idades — Pedra, Bronze e Ferro — ao organizar as coleções do Museu Nacional da Dinamarca, “percebendo que temos de estudar as sepulturas, que são contextos fechados, compreender os materiais aí encontrados e criar as tipologias que permitem gerar as cronologias”. Já no século XX, Wheeler trouxe o método em quadrícula. E nas teorias, “o grande abalo na arqueologia prende-se ao processualismo de Lewis Binford, que procura explicações gerais, quase ‘leis’.” A reação veio com Ian Hodder, que recentra o foco nos significados, rituais, mitose subjetividades”. E, entre ambos, Pedro destaca Vere Gordon Childe, que “escreveu de forma luminosa sobre revoluções tecnológica e social, ligando objetos a transformações amplas.” Tecnologia, política e o futuro de escavar o passado .E em Portugal? “Temos muitos nomes incontornáveis”, responde. “Frei Manuel do Cenáculo destacou-se como pioneiro no estudo da escrita do Sudoeste. Leite Vasconcellos e Carlos Ribeiro foram pioneiros e mesmo quando algumas propostas foram depois revistas, abriram caminhos e debates. Também destacaria Nery Delgado e Estácio da Veiga. Mais próximo no tempo, Jorge de Alarcão estruturou linhas de investigação fundamentais e formou gerações. Luís Raposo contribuiu para a valorização do património e da museologia. Carlos Fabião e Ana Margarida Arruda aprofundaram a época romana e os contactos mediterrânicos. Na pré-história, João Zilhão destacou-se pelo estudo do Menino do Lapedo, caso crucial para pensar as relações entre Homo sapiens e neandertais. Poderia alongar a lista, mas o essencial é isto: há uma comunidade sólida e plural, do terreno ao laboratório e aos museus”. O livro dedica um capítulo à pseudo-arqueologia — e a entrevista aprofunda essa preocupação, nomeadamente no que respeita aos anos mais recentes. “Infelizmente, sim. Narrativas como as de Erich von Däniken continuam populares porque oferecem respostas simples para problemas complexos e porque a lógica da conspiração é sedutora: ‘se todos dizem A, deve haver um B oculto”. Há um paralelo direto com as fake news. “Por exemplo, muitos documentários reforçam a ideia de que ‘não há explicação’, quando muitas vezes há estudos publicados há décadas. A arqueologia científica obriga a conviver com o inacabado, com o fragmentário e nem todos aceitam estas explicações prosaicas”. E deixa uma proposta: “O antídoto é trabalho de formiga: mostrar como sabemos o que sabemos, abrir escavações ao público, explicar contextos, publicar com linguagem acessível”. Mas nem só a pseudociência ameaça a arqueologia — também o poder político a tem instrumentalizado de acordo com o autor. “Há sempre risco quando a ideologia vem antes dos dados. Forjam-se factos para encaixar na teoria”. Pedro Silva lembra como “no nazismo, Heinrich Himmler instrumentalizou trabalhos arqueológicos e o linguista-arqueólogo Gustaf Kossinna foi apropriado para legitimar a fantasia da ‘raça ariana’”. Em Itália, “Mussolini usou Roma Antiga como espelho político e, em intervenções apressadas, sacrificou camadas mais recentes que também eram património”. E em Portugal? “Houve momentos de apropriação simbólica. A lição é simples: primeiro as perguntas, depois os dados, só no fim a narrativa. Quando se faz ao contrário, a arqueologia torna-se cenário”. E no presente? “Em termos de legislação não está propriamente mal, mas tem de ser revista. Mas, uma coisa é o que está escrito, outra é a prática. Há mais trabalho do que havia e fala-se de cerca de três mil arqueólogos, o que mostra crescimento, mas também dispersão e alguma precariedade. Onde há acompanhamento obrigatório de obra, regra geral, a legislação é cumprida. Noutros contextos pesam interesses económicos e perde-se património por incúria. Pode-se pagar uma multa, mas, entretanto, perdeu-se património. Quando não é possível conservar in situ, a lei prevê a preservação científica através do registo: desenhar, fotografar, recolher, estudar e publicar — para que o conhecimento não se perca”. Apesar disso, há sinais positivos. “Em meio urbano há bons exemplos de integração de ruínas visitáveis sob piso de vidro; noutros, infelizmente, a memória fica por escrever. Falta planeamento de longo prazo, equipas estáveis e a ideia clara de que património não é obstáculo — é capital cultural”. Sobre as descobertas que mais o entusiasmaram nos últimos anos, o arqueólogo destaca dois casos: “Lá fora, Pompeia surpreende ano após ano: cada escavação devolve fragmentos de vida. Em Portugal, destaco de novo o Menino do Lapedo pelo impacto que teve nas discussões sobre contacto e miscigenação entre Homo sapiens e neandertais”. Mas aponta também a pré-história como uma área subestimada: “sem arqueologia, esses milhões de anos seriam silêncio”. E a Suméria, “que a escavação devolveu ao mapa antes mesmo de muitos textos serem lidos — a arqueologia abriu a porta à própria história escrita”. Quanto ao futuro, Pedro vê a tecnologia como aliada, mas não como substituto. “Dá uma ajuda, sem substituir o essencial. A escavação é sempre um ato destrutivo e, por isso, tudo o que permita conhecer sem escavar é bem-vindo.” Com drones, prospeção geofísica, IA e imagens de satélite, “pequenos padrões geométricos aparecem nas imagens e denunciam estruturas enterradas.” Mas remata: “No fim, continuamos a ler camadas e relações — a tecnologia acelera e afina, não pensa por nós.” Pedro Correia Silva termina esta conversa com uma proposta ética e pedagógica. “Se o meu livro ajudar alguém a olhar de outra forma para uma pedra talhada, para um fragmento de cerâmica ou para um perfil estratigráfico, já valeu a pena. E se fizer com que um visitante entre num pequeno museu local e faça uma pergunta a mais, então ganhámos todos: a comunidade, a ciência e o património”. .Arqueologia 3D e cortiça online: ideias inovadoras que foram premiadas