O verão é a única estação
Colho o título desta crónica em Ruy Belo, poeta que muito cito e muito estimo, para dizer aos meus leitores mais encalorados que é no verão que eu me sinto mais livre e mais humano. O frio limita-nos, obriga-nos a fugir para junto de uma qualquer fonte de calor, rouba-nos a liberdade de vaguear pelo mundo. Com 40º não foges também para junto de um aparelho de ar condicionado, pergunta o grilo falante da minha consciência. Pois não senhor. O sol inspira-me e dá-me força. Até me dá a força de mentir sobre as minhas relações com o ar condicionado! O verão, Ruy Belo, é mesmo a única estação.
A sensação forte de liberdade que nos dá o sol é, evidentemente, mais forte se estivermos ao pé do mar. Está-se melhor ao sol na Praia do Guincho do que na Amareleja, quem serei eu, com a infância passada no Redondo e um amor inquebrantável ao Alentejo, para dizer o contrário? Mas essa sensação de liberdade entra em conflito com o trabalho, esse tripalium que os romanos inventaram para nos torturar pelos séculos fora! Por isso o verão é avesso ao trabalho e amigo dos ociosos e dos criadores.
Thomas Mann tem uma personagem do seu Tonio Kröger que é um escritor que se queixa de não conseguir trabalhar desde que começa a primavera, tendo de se encerrar em casa para escrever. Porque depois do momento da criação ou da invenção, que surge na deambulação livre do nosso espírito pelos caminhos do verão, também a arte e a literatura têm o seu tripalium, que é a organização e estruturação do que a criação nos deu. Por isso Valéry dizia que só o primeiro verso é dado e o resto do poema é construído. Claro que os surrealistas (que achavam Valéry um cretino) não concordavam com este ponto de vista e acreditavam que se poderia continuar em associações livres pelas veredas do verão até se chegar ao fim do poema. Alguns conseguiram...
A ciência do cérebro veio confirmar que as grandes e novas ideias surgem nesse deambular livre da consciência, mas não podem prescindir depois dos escravos amarrados aos seus trabalhos para as fundamentar e desenvolver. Mas o verão será sempre, para os criadores, a única estação, porque é a negação do trabalho repetitivo e necessário e a época do deambular livre do espírito pelas áreas menos visitadas do nosso cérebro, ali onde se escondem todas as ideias geniais que fazem avançar a Humanidade.
Para os poetas, cujo tripálio surge na organização em livro dos poemas que foram escrevendo pelo seu eterno verão (enquanto os romancistas investigam e trabalham minuciosamente o ano todo, como diligentes formigas), o verão é, sem dúvida, a melhor época do ano. O espírito voa, como borboleta, de poema em poema e às vezes (às vezes...) lá consegue alguma coisa que o sentido crítico do seu autor possa achar aceitável e até digno de publicação. O problema é se, seguindo os conselhos de Guerra Junqueiro, a musa decidir também ir de férias...
Acharão provavelmente os meus leitores fútil e irrelevante este artigo de hoje. Se vos contar que a minha alternativa era descrever-vos a minha reação à assinatura, na Casa Branca, do acordo de paz entre o Ruanda e a República Democrática do Congo, em que o ministro ruandês era tratado como um íntimo da casa e a representante congolesa com a frieza indiferente que Trump sabe tão bem exteriorizar, talvez achem que escolhi o menor de dois males.