O 25 de Abril visto pela lente de “campeões” do fotojornalismo mundial
O livro Venham Mais Cinco - O Olhar Estrangeiro sobre a Revolução Portuguesa 1974-1975 é o catálogo de uma exposição com o mesmo nome que está patente em Almada, junto à antiga Lisnave, até 24 de agosto. Reúne cerca de 200 fotografias de 30 fotojornalistas estrangeiros tiradas entre o 25 de abril de 1974 e o 25 novembro de 1975 (há duas que fogem à regra e são de dezembro) e que documentam o processo revolucionário. Mas não são umas fotografias quaisquer, sublinha Sérgio Tréfaut, o cineasta que coordenou este projeto. “São os Campeões da Fórmula 1. Há World Press Photo atrás de World Press Photo aqui presentes. Ou seja, são grandes, premiadíssimos fotógrafos e com as legiões de honra dos seus países. E são fotógrafos que pertencem às maiores agências do mundo. Não é fácil ser agenciado pela Magnum ou pela Gamma.”
A exposição e o livro têm imagens de 30 repórteres fotográficos - a maioria franceses, mas também de Itália, Espanha, Brasil, Países Baixos e EUA -, como Henri Bureau, Alain Keller, Alain Mingam, Guy Le Querrec, Jean-Paul Paireault, Sylvain Julienne, Jacques Haillot, Jean-Claude Francolon, Paola Agosti , Sebastião Salgado, Rob Mieremet ou Perry Kretz, entre outros. Oito dos 30 já morreram.
As imagens estão agrupadas em quatro núcleos temáticos, “como uma viagem para quem não viveu um certo período “, indica Sérgio Tréfaut. A Festa da Liberdade, Novas Formas de Poder, Independências e Um País Dividido documentam o processo revolucionário português.
“Há também um olhar antropológico sobre o país. Você tem pessoas que não estão só fazendo a conferência de imprensa, que não estão só fazendo um retrato do Rosa Coutinho, mas estão tentando entender o que acontece numa fábrica, no campo, nas ruas. E há, por parte de muitos fotógrafos, um 'vivenciamento' da realidade portuguesa ao longo de um ano”, diz Tréfaut.
Por exemplo, o italiano Fausto Giaccone fotografou as ocupações de terras no Ribatejo, em 1975. Jean-Paul Paireault, Alain Mingam, Jean-Paul Miroglio retrataram o que se passava nas fábricas, tal com Sebastião Salgado, que também documentou o primeiro ataque às sedes do PCP, em Rio Maior.
“Não é que eles ficassem todos, aqui, meses seguidos, mas eles iam e voltavam e criaram um sentimento apaixonado. Criaram uma relação com os militares e com os políticos. Alguns conheciam o Mário Soares de Paris. Outros criaram relações estreitas com Otelo, com Vasco Lourenço. Ou seja, não estavam apenas cumprindo funções. Existem fotógrafos assim”, diz o cineasta.
Em 1999, Sérgio Tréfaut realizou o documentário Outro País, no qual alguns destes fotojornalistas (Sebastião Salgado, Guy Le Querrec, Dominique Issermann e Jean Gaumy) falam da sua experiência em Portugal. Jean Gaumy, por exemplo, é o autor da fotografia do homem que aperta a bochecha de Mário Soares na noite em que o PS vence as primeiras eleições legislativas em democracia. O cineasta lembra que esse documentário foi como “um encontro de antigos combatentes que estavam lembrando de um momento importante da vida deles”, e foi isso que deu “unidade ao discurso desses fotógrafos”.
O filme de Sérgio Tréfaut surgiu na sequência de uma primeira tentativa - falhada - de realizar o projeto Venham Mais Cinco, trazendo para Portugal algumas das fotografias que fizeram manchetes de jornais um pouco por todo o mundo nesses meses após a Revolução dos Cravos.
Não por acaso, a mostra é dedicada à antiga professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e ex-crítica de fotografia, Margarida Medeiros, in memoriam. “A Margarida Medeiros, que era crítica de fotografia do Público, e a Ana Soromenho, que trabalhava no Expresso, propuseram-me produzir uma exposição para o 20.º aniversário da Revolução, em 1994, com os fotógrafos estrangeiros que tinham estado em Portugal. Eu não tinha conhecimento disso, tinha conhecimento - porque sou de família de jornalistas, avô, pai, etc. - de que a imprensa internacional tinha estado aqui, os repórteres do Le Monde, conhecia muito bem a representante do New York Times naquela época, mas não sabia que os grandes fotógrafos do mundo haviam estado aqui”, sublinha Sérgio Tréfaut, filho do jornalista Miguel Urbano Rodrigues que foi exilado político no Brasil, país onde nasceu o cineasta.
“Quando você tem esse subtítulo, O Olhar Estrangeiro, não é por ser estrangeiro, é por serem os maiores do mundo, é por serem os campeões da Primeira Liga. É mais ou menos essa a razão que motiva o projeto”, sublinha Sérgio Tréfaut sobre o Venham Mais Cinco.
A ideia de Margarida Medeiros e de Ana Soromenho foi inspirada numa obra publicada cinco anos após o 25 de Abril. “Quando elas me propuseram isso, em 1993 para 1994, elas vinham com um livro na mão, de 1979, organizado pelo Guy Le Querrec e pelo Jean-Paul Miroglio - que estão nesta exposição -, chamado Regard sur une tentative de pouvoir populaire, Olhar sobre uma tentativa de poder popular, que reunia já 19 fotógrafos, com um texto de Jean-Pierre Faye. Esse livro é hoje uma raridade, custa centenas de euros no mercado negro, mas não existia materialmente nenhuma dessas fotografias em Portugal”, explica o curador da exposição e o editor do livro, publicado pela Tinta da China, que agora chega às livrarias. “E o objetivo, em 1994, era trazermos as fotografias para Portugal, onde elas não estavam, 20 anos depois da Revolução.”
Mas o projeto ficou pelo caminho, por falta de financiamento. As prioridades do Governo de então, liderado por Aníbal Cavaco Silva, eram outras. “Não tinham interesse nessa exposição. A ideia dominante, e que perdura desde então, é fazer a passagem do período de ditadura para o período em que vivemos uma democracia normal, liberal, como um dia. É ótimo existir o Dia da Liberdade, mas isso esconde um ano e meio em que o país explodiu. E não havia muita vontade de se falar nisso, não houve financiamento para a exposição.”
A oportunidade de retomar o projeto surgiu com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. “Finalmente, em 2022, a Kathleen Gomes, que é uma jornalista, falou com a Maria Inácia Rezola, a comissária da Estrutura de Missão para as Comemorações do 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril, que, por sua vez, falou com o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que desbloqueou o financiamento para que, numa primeira etapa, se pudessem adquirir os direitos das fotografias, de algumas fotografias. Estamos aqui com mais de 50 mil euros só em direitos.”
O projeto teve várias fases, desde o início dos anos 1990. “Em 1993, a Margarida e eu fazemos a ronda das agências de fotógrafos, temos toneladas de provas de contacto. Quando faço Outro País, quatro, cinco anos depois, retomo contactos com alguns, mas passados 30 anos já as coisas se transformaram”, diz Sérgio Tréfaut, explicando que há arquivos que já não existem, e por isso “esta exposição tem, pelo menos, três fotografias que são reproduções de livros, porque já não há negativos. Há outros casos em que não foi mesmo possível. Passados 30 anos, já não foi possível recuperar.” Nos casos em que tiveram acesso aos arquivos, as fotografias foram impressas e ampliadas em Portugal por André Cepeda.
A publicação do livro com as fotografias da exposição foi possível graças ao financiamento de algumas instituições, após a confirmação por parte de Bárbara Bulhosa de que a Tinta da China publicaria o livro. “Eu tive muitas dificuldades, mas consegui que o financiamento de direitos fosse, em parte, coberto pela Fundação Gulbenkian e pela Fundação La Caixa, que foram fundamentais para o catálogo. E depois houve pré-aquisição por parte da Comissão Comemorativa do Cinquentenário e da Câmara Municipal de Almada. Esse bolo fez com que o catálogo fosse possível”, diz Sérgio Tréfaut.
“Foi um catálogo pensado no seu formato, desde o princípio, para que, quando tivesse páginas abertas, pudesse ter uma fotografia de tamanho horizontal completa. Tem uma dinâmica energética, não como a exposição, é diferente, mas muito bela”, sublinha o editor.
O projeto, globalmente, teve um custo de aproximadamente 300 mil euros, e envolveu, para o cineasta, dois anos de trabalho. Mas a tarefa, afirma, ainda não está concluída. “Eu não descanso enquanto não conseguir, por um lado, confirmar o prolongamento da exposição em Almada [para além de 24 de agosto] e, eventualmente, verificar a sua digressão para o Porto.”
Na Cidade Invicta, Sérgio Tréfaut gostaria que a mostra ocupasse o espaço da Alfândega. Em Lisboa tentou que fosse para a Cordoaria Nacional, mas não conseguiu. Também propôs ao Presidente da República, “através dos canais indicados, que ele homenageasse os fotógrafos que tinham estado aqui durante o período 1974, 1975 e tinham sido a imagem de Portugal para o mundo", mas alega que foi “silêncio total”. “Há um desinteresse político evidente”, acredita.
O cineasta, de 60 anos, que vive entre o Rio de Janeiro e Espanha, lançou o seu último filme, A Noiva, em 2022. Diz que tem dois documentários e uma ficção em curso. “Mas eu prefiro não falar nisso, porque eu quero fechar isto bem fechado”, diz sobre o projeto Venham Mais Cinco, que foi buscar o nome à canção de Zeca Afonso inicialmente escolhida pelos militares como senha para o começo do golpe militar, mas que foi substituída por Grândola, por constar da lista negra do regime.