“Papa português João XXI procurou promover reconciliação entre igrejas romana e ortodoxa”

“Papa português João XXI procurou promover reconciliação entre igrejas romana e ortodoxa”

Historiador Armando Norte, autor de uma biografia do único papa português, explica importância do lisboeta Pedro Julião.
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Quem era João XXI, o único papa português?

Pedro Julião, conhecido como Pedro Hispano, foi o único português a ocupar o cargo de papa, sob o nome de João XXI (1276-1277), figurando como o 187.º pontífice da Igreja Católica. Terá nascido em Lisboa, no seio de uma família da pequena nobreza, ligada à medicina. Iniciou cedo a carreira eclesiástica, tendo desempenhado cargos como mestre-escola e deão da Sé de Lisboa, prior do mosteiro de Guimarães, bispo de Braga e cardeal-bispo de Túsculo, antes de ser eleito papa. O seu percurso académico passou por Lisboa; muito possivelmente pela Universidade de Paris, onde terá estudado artes e medicina, e pela Universidade de Siena, onde terá lecionado esta última disciplina. É-lhe atribuída uma vasta produção intelectual, embora se questione a autoria de muitas obras. Destacam-se, contudo, Tesouro dos Pobres (medicina) e Suma de Lógica (filosofia), amplamente difundidas na Idade Média. No seu breve pontificado, João XXI procurou promover a reconciliação entre as igrejas romana e ortodoxa, interveio em conflitos entre reinos cristãos, incentivou as Cruzadas, apoiou a educação e participou em debates doutrinários. A sua ação foi interrompida pela morte repentina.

Como foi eleito?

A eleição de João XXI teve lugar num cenário de alguma instabilidade, causada pela morte sucessiva de três pontífices num curto intervalo temporal. A decisão coube ao colégio cardinalício, então composto por nove cardeais. Todos já haviam participado em eleições anteriores, e vários viriam a ocupar o trono papal em conclaves subsequentes. De certo modo, a escolha de Pedro Julião pode ser considerada inesperada, dado que não pertencia a qualquer uma das famílias da nobreza romana, itálica ou gaulesa, tradicionalmente representadas entre os eleitos para o cargo máximo da Igreja Católica Romana. Paradoxalmente, contudo, poderá ter sido essa fragilidade aparente, ao nível dos apoios, a justificar a sua nomeação, na medida em que a sua figura se apresentava como uma solução de compromisso, apta a preservar os equilíbrios existentes no seio do colégio cardinalício - equilíbrios que poderiam ser postos em causa com outra escolha. A par disso, o reconhecimento da competência intelectual de Pedro Hispano deve também ser considerado neste contexto. Tal como ainda hoje acontece, a eleição de João XXI seguiu o modelo do conclave, conforme fora estabelecido por Gregório X, seu antecessor. Este, tendo enfrentado uma eleição demorada, procurou regulamentar o processo eleitoral pontifício, criando um conjunto de normas rigorosas, aprovadas durante a segunda sessão do Concílio Ecuménico de Lião, em 1274. Através da constituição apostólica Ubi Periculum, ficou determinado que os cardeais deveriam reunir-se na cidade onde o papa tivesse falecido, dez dias após a sua morte. Estabelecia-se também que o prazo de espera por cardeais ausentes não poderia exceder oito dias e que, uma vez iniciado o conclave, os eleitores permaneceriam em isolamento total, sujeitos a um regime alimentar frugal, com racionamento progressivo ao longo dos dias. Este sistema, com os devidos ajustamentos, serviria de base para futuros conclaves. Curiosamente, porém, foi o próprio João XXI quem, já investido no cargo, decidiu suspender temporariamente esse regulamento, revogando formalmente o diploma, que só viria a ser restabelecido, por Celestino V, em 1294.

Durou pouco tempo o pontificado por causa de uma morte acidental. O que aconteceu?

Oficialmente, a Igreja Católica fixou a morte do papa João XXI no dia 20 de maio de 1277, aproximadamente oito meses após a sua eleição. Os vários relatos que se encontram em crónicas e anais do período coincidem no essencial. Descontando ligeiras diferenças de tom ou de pormenor, as versões apontam como causa da morte a queda de uma divisão residencial do palácio apostólico de Viterbo, onde o papa habitava. Terá sido o resultado de um acidente fortuito, embora a existência de uma lenda negra sobre João XXI - posta a circular por setores descontentes da Igreja, com os quais se tinha incompatibilizado e que o reputavam de mago - tenha alimentado a ideia de uma ação providencial de Deus, como forma de punição pelos seus comportamentos à frente do pontificado, ou até algumas teses conspirativas, mais do domínio da efabulação do que da história.

Armando Norte, historiador.
Armando Norte, historiador.

O século XIII é também o de Santo António. Alguma razão para nessa época surgirem dois vultos intelectuais da Igreja em Portugal?

Apesar do carácter extremamente periférico de Portugal, no século XIII existiam importantes corredores de circulação que ligavam o reino às principais universidades medievais europeias, como Paris e Bolonha. Por esses canais circulavam diversos indivíduos que puderam beneficiar do ensino avançado proporcionado por esses centros, colocando posteriormente os seus conhecimentos ao serviço do rei, da Igreja portuguesa ou até da própria Cúria Romana, como sucedeu com João XXI. É certo que a maioria desses letrados não se destacou de forma significativa na vida cultural e intelectual do período, deles não resultando pensamentos particularmente originais - ao contrário do que aconteceu com o papa português e, sobretudo, com Santo António, figura central no pensamento franciscano, embora seja sobretudo a sua dimensão popular, enquanto santo e protetor, a mais conhecida e celebrada. O surgimento destas duas personalidades deveu-se a um contexto intelectualmente estimulante, próprio da renovação cultural dos séculos XII e XIII, ao qual ambos tiveram acesso, mas também a uma feliz conjugação de fatores que permitiu a sua preeminência num curto espaço de tempo.

Por vezes, diz-se que houve dois papas portugueses, referindo além de João XXI também Dâmaso I. Faz sentido para si como historiador?

De facto, há, por vezes, um equívoco nessa matéria, resultante da origem geográfica comum aos dois pontífices, ambos nascidos em território atualmente português. No entanto, o papa Dâmaso, que surge referenciado na documentação eclesiástica como o 37.º pontífice da Igreja Católica, nasceu alegadamente na Província Romana da Lusitânia, no século IV, numa época muito anterior à fundação do Reino de Portugal, que, como é sabido, só passou a existir como entidade política a partir de meados do século XII, aproximadamente oito séculos após o pontificado de Dâmaso. Nessa medida, apenas é legítimo falar de um papa português em toda a história da Igreja, até aos dias de hoje.

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