Foi você que pediu menos transparência?

Se nos deve bastar a palavra do primeiro-ministro, este ou outro qualquer, e até nos levam a mal que façamos perguntas, se calhar era de acabarmos com isso da “transparência” e dos “planos anti-corrupção”. É só dizer “para serem mais honestos que eu tinham de nascer duas vezes” e não se fala mais nisso.
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No seu último relatório de avaliação sobre Portugal, publicado em janeiro de 2024, o Grupo dos Estados contra a Corrupção (GRECO), órgão do Conselho da Europa que avalia o cumprimento dos instrumentos anti-corrupção dos Estados membros, anotou várias falhas e apresentou várias recomendações.

Uma das falhas notadas prende-se com o facto de as declarações – de rendimentos, património, interesses, incompatibilidade e impedimentos, designada na lei portuguesa como “declaração única”–  a que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos estão obrigados, e que têm obrigatoriamente de depositar no Tribunal Constitucional/Entidade para a Transparência, não serem de acesso público integral. Diz o relatório: “Atualmente, apenas o registo de interesses dos membros do Governo está facilmente acessível ao público”.

O GRECO referia-se às declarações de interesses dos membros do executivo então em funções, o último de António Costa. É que o Governo de Luís Montenegro, que entrou em funções há um ano, nem essas declarações pôs online, malgrado o facto – noticiado há dias pelo DN – de a lei a tal obrigar.

O Governo não cumpre a lei porque pode não a cumprir: não há sanções para esse incumprimento. E esse é precisamente outro dos problemas detectados pelo GRECO, o da ausência de um regime sancionatório eficiente, à qual se alia a inexistência de uma análise sistemática e eficaz das declarações que permita detectar incongruências e manhosices – como por exemplo a de passar ativos para familiares.

Bem consciente desse tipo de manobra, o GRECO diz que a dita “declaração única” deve incluir informação financeira adicional relativa a cônjuges ou unidos de facto e familiares dependentes (incluindo, naturalmente, filhos), alertando no entanto para que esses dados sobre familiares próximos não têm de ser tornados públicos.

Por outro lado, apreciando o Código de Conduta do Governo (na altura, o Governo de António Costa),o GRECO propunha que este fosse complementado com uma espécie de “guia prático”, “especialmente no que respeita a conflitos de interesses e presentes” e que previsse um mecanismo de supervisão e sanção.

Um guia prático é algo que contém exemplos, permitindo fazer perceber o que pode constituir um conflito de interesses, quando se deve pedir escusa, e que tipo de situação pode significar um comprometimento ou colocar em causa a integridade, de forma real ou aparente.

Não é possível saber se tal recomendação do GRECO, efetuada antes da tomada de posse do atual Governo, foi por este acolhida. É que o seu Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção, que de acordo com o recomendado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção de Corrupção em fevereiro de 2024 deveria ter sido publicado no prazo de 60 dias a partir da entrada em funções, só foi aprovado a 13 de fevereiro último, e nem sequer é público ainda. O Governo, por via do gabinete do ministro-adjunto Leitão Amaro, recusa fornecê-lo, alegando que tem de ser primeiro publicado em Diário da República – o que por este andar sucederá já depois de o Executivo cair (a crer que a moção de confiança votada esta terça-feira não é, como se prevê, aprovada).

Ninguém diria que se trata de um Governo suportado por uma coligação que no seu programa eleitoral propunha reforçar as “regras de transparência, controlo dos conflitos de interesses, incompatibilidades e de impedimentos dos titulares de cargos políticos”, e queria até que também os partidos passassem a ser abrangidos por “normas anticorrupção”, tendo de criar “códigos de conduta, planos de prevenção de riscos” e até designar “um responsável de cumprimento normativo”.

Cabe perguntar qual será o responsável de cumprimento normativo das normas anticorrupção nomeado pelo PSD (Hugo Soares?) e já agora se, em consonância, existe um no Governo.

Mas são perguntas que ficarão, como quase todas as que têm sido feitas ao Executivo e ao primeiro-ministro, sem resposta. É que não se consegue sequer que o Governo, de tão transparente, diga se, seguindo o previsto no Código de Conduta a que se obrigou, pediu pareceres sobre eventuais conflitos de interesses percepcionados pelos seus membros, e a quem; se houve pedidos de escusa, e em que circunstâncias; se considera que esses pedidos de escusa devem ser públicos, e se sim como e onde.

Disse o primeiro-ministro, peremptoriamente, na sua entrevista à TVI esta segunda-feira, que “pediu escusa sempre que era de pedir escusa” – o que significa que assume conflitos de interesses. Mas quais e porquê, e que pareceres pediu sobre eles e a quem, não temos, pelos vistos, de saber. Pelos vistos deve bastar que o primeiro-ministro diga que sempre que haja problemas éticos os membros do Governo, a começar por ele, deles se darão prontamente conta, comunicando-os e pedindo escusa se for caso disso.

Deve também bastar que diga que “declarou tudo” –  mesmo se nem o seu registo de interesses torna, como obrigatório, público – e que desde 2022, quando a passou para a mulher e filhos, nada sabe da Spinumviva, a empresa que criou (a qual faz de tudo, desde “compliance” a vinho branco, conforme revelou na dita entrevista).

“Eu não violei nenhuma regra”, garante Luís Montenegro.

Muito bem. Se nos deve bastar a palavra do primeiro-ministro, este ou outro qualquer, e até nos levam a mal que façamos perguntas, se calhar era de acabarmos com isso da “transparência” e dos “planos anti-corrupção”. É só dizer “para serem mais honestos que eu tinham de nascer duas vezes” e não se fala mais nisso.

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