Noutros tempos, as reposições de verão foram uma componente vital do mercado cinematográfico. Em anos recentes, com títulos isolados ou ciclos temáticos, muitas vezes com cópias restauradas, as reposições regressaram, permitindo perceber que a acumulação mais ou menos caótica de algumas plataformas de “streaming” não basta para formar uma memória informada e consistente, numa palavra, cinéfila. Aí está mais um belo exemplo: a partir de amanhã (até terça-feira da próxima semana), o cinema Ideal, em Lisboa, apresenta a obra integral de António Reis (1927-1991) e Margarida Cordeiro (n. 1938). Duas componentes reforçam a importância deste ciclo. A primeira decorre, naturalmente, da fascinante singularidade da própria obra que para muitos espectadores será uma descoberta absoluta. Depois, importa não esquecer que estamos perante mais um exemplo dos trabalhos de restauro do cinema português que continuam a ser desenvolvidos pela Cinemateca Portuguesa (trabalhos que também têm tido uma expressão particular na coleção de DVD com chancela da Academia Portuguesa de Cinema). As novas cópias já suscitaram diversas projeções um pouco por todo o país, nomeadamente no Porto (cinema Trindade), no Cineclube de Joane e no Teatro Experimental Flaviense — Faro, Évora e Funchal são outras cidades com sessões agendadas. São “apenas” três longas-metragens. O certo é que tanto basta para definir um dos universos mais complexos e enigmáticos de todo o cinema português. Com sessões sempre às 19h00, cada um dos títulos será exibido duas vezes: Trás-os-Montes (1976) na quinta, 7 e domingo, 10; Ana (1982) na sexta, 8 e segunda, 11; Rosa de Areia (1989) no sábado, 9 e terça, 12. Com Rosa de Areia, passará também a curta-metragem Jaime (1974), uma realização de António Reis em que Margarida Cordeiro trabalhou como assistente, centrada nos desenhos de Jaime Fernandes, um camponês da Beira Baixa, internado aos 38 anos no Hospital Miguel Bombarda (onde viria a falecer, em 1967, com 69 anos). .Sobre Jaime, justamente, sobre o seu diálogo cinematográfico com a esquizofrenia, vale a pena recordar que surgiu como um planeta desconhecido na vulnerável galáxia do cinema português. No nº 29 da revista Cinéfilo (com uma data que vale a pena sublinhar: 20-26 abril de 1974), João César Monteiro assinava uma entrevista com António Reis, com o título ‘O inesperado no cinema português’. Dando conta do seu entusiasmo, o entrevistador definia assim o objeto que o surpreendera: “uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência.” Podemos tomar essa intransigência como pedra de toque da obra de Reis/Cordeiro. Simplificando, diremos que, para eles, sempre se tratou de fazer cinema discutindo a própria ideia do cinema como máquina de “reprodução” do mundo. Sem dúvida por isso, no Portugal pós-25 Abril, e através de formas algo precipitadas de jornalismo, Trás-os-Montes foi muitas vezes encarado como um registo “documental” quando, afinal, a sua pulsão poética o situava no coração de um coletivo mitológico — o povo —, tantas vezes citado de forma mecânica ou demagógica (ontem como hoje). Liberdade formal .No cinema de Reis/Cordeiro, o povo existe (e persiste) através da passagem do tempo — no limite, como uma manifestação surreal da realidade do nosso viver. Assim acontece nos lugares, isto é, nas imagens e sons de Trás-os-Montes. Assim volta a acontecer no filme seguinte, Ana, centrado numa figura majestosa interpretada pela mãe de Margarida Cordeiro. Ana, a personagem, é a Mãe Ana e, nessa medida, é também a Terra Mãe (tudo com as devidas maiúsculas). Aí se enredam memórias de várias gerações, como se o cinema pudesse inventar um tempo em que tudo flui, num movimento que resiste à sentença cruel da morte. Nesta perspectiva, Rosa de Areia é o filme da libertação absoluta das formas, cumprindo os votos de um cinema moderno capaz de se libertar das regras romanescas que herdou (do século XIX), para criar uma experiência que já não se esgota na linearidade de uma “história”, antes existe através da sensualidade de um acontecimento — no ecrã, na sala escura. Tendo em conta que Rosa de Areia, em particular, teve uma difusão minimalista no seu próprio país, este ciclo pode ser também um capítulo de descoberta das nossas próprias narrativas.