Ainda estamos aqui?

14 dias depois, acabou qualquer ilusão sobre o que vai ser o reinado Trump/Musk. É difícil saber como processar tal torpedeamento da democracia americana - e, por decorrência, de todas - e daquilo a que se dá o nome de “ordem mundial”; é terrível sentir que tanto do que tínhamos por garantido está em risco. E que ninguém parece saber o que fazer.
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Já não sei onde li isto: a velocidade a que Donald Trump despachou dezenas de “ordem executivas” (OE) que põem em causa valores básicos da democracia americana (e da decência em geral) constitui em si uma estratégia, desenhada para deixar os opositores desorientados, sem foco nem capacidade de resposta: é demasiado de uma só vez. Está-se a racionalizar e desmontar uma coisa e vem logo outra, e outra, e outra. Como se estivéssemos num ringue sob uma saraivada de socos, tantos que a resistência e o contra-ataque parecem impossíveis. Tantos que às tantas deixam de doer. Porque, massacrados, entrámos na inconsciência, no alheamento - na derrota. 

Logo após conhecer o resultado das presidenciais, a escritora e ativista americana Rebecca Solnit escreveu no Facebook (sim, bem sei, e ela também sabe) sobre a forma como esse desânimo é um efeito almejado pelos que triunfaram: “Eles querem que te sintas impotente e que te rendas e que os deixes destruir tudo e não vais deixar. Não vais desistir, nem eu. O facto de que não podemos salvar tudo não significa que não podemos salvar nada e tudo o que possamos salvar é digno de ser salvo. (…) Lembra-te do que amas. Lembra-te do que te ama. Lembra-te nesta maré de ódio do que é o amor. A dor que sentes deve-se ao que amas.” E cita os Wobblies (alcunha da organização sindical revolucionária Industrial Workers of the World/Trabalhadores Industriais do Mundo, originária dos EUA): “Não faças luto, organiza”. Fica melhor em português - não faças luto, luta.  

Solnit, cujo post conheci pela música americana Laurie Anderson, que o leu num vídeo no Instagram (sim, eu sei, e ela também sabe), é autora de um livro sobre como nos desastres se pode revelar o melhor das pessoas e comunidades (A paradise built in hell/Um paraíso construído no inferno, 2009). 

Mas neste momento o que estamos a ver não é exatamente essa revelação - é cedo, OK, mas aquilo a que assistimos é sobretudo aflição e impotência. Os famosos “checks and balances”, os garantes da democracia americana de que sempre se falou a propósito do risco da autocracia - e com os quais tanta gente se justificou para alegar que Trump nunca poderia ser a ameaça à democracia que o partido democrata e Kamala Harris garantiam constituir -, onde estão? 

Onde estão quando Donald Trump exige ao diretor da polícia federal - o Federal Bureau of Investigation -, o equivalente americano da nossa Polícia Judiciária, que lhe mande até esta terça-feira uma lista de todos os agentes que estiveram envolvidos na investigação do assalto ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021? Onde estão quando o departamento de justiça (que funde o nosso ministério da Justiça e a nossa Procuradoria Geral da República) despede uma série de procuradores que trabalharam em processos relacionados com o mesmo caso?

Onde estão quando Elon Musk exige ter - e obtém - acesso a todos os dados dos pagamentos do governo federal, os quais incluem aquilo a que chamamos “dados sensíveis e privados”, de nomes e moradas e situação familiar a historial de saúde, etc? 

Onde estavam quando foi dada uma ordem para que as agências federais relacionadas com a saúde - o CDC (Centro de Controlo de Doenças) e a FDA (Food and Drug Administration, que rege a autorização de investigação, testagem e introdução de medicamentos, mas também a segurança alimentar), assim como outros institutos públicos da área, deixassem de comunicar publicamente, especificando que doravante a informação transmitida tem de ser aprovada por alguém da confiança do presidente?

Onde estão quando numa inenarrável OE sobre só haver dois sexos - a ideia básica da qual é “um homem é um homem e uma mulher é uma mulher”, banindo a palavra “género” - Trump declara inexistentes as pessoas transgénero e manda alterar ou simplesmente rasgar documentos do departamento/ministério de educação sobre como combater a discriminação e o bullying nas escolas? 

Onde está a resistência ante este ataque brutal, determinado, cirúrgico, cruel, às instituições, aos cidadãos americanos e à mera decência? Onde estão ante o impensável? 

Onde estão quando já nem é só - só - de autocracia que se trata, mas de um claro anúncio de totalitarismo (que há de mais totalitário que decretar que a ciência tem de servir os desígnios do rei e que a informação científica é sujeita a censura; que há de mais totalitário que exigir acesso aos dados pessoais de todos os funcionários do Estado)?

Onde está a resistência quando Trump decide acabar com a agência de ajuda humanitária internacional dos EUA (USAID) e Musk anuncia que a vai “pôr na trituradora”? Onde está quando Trump decreta a saída dos EUA da Organização Mundial de Saúde? É só condenar centenas de milhar, senão milhões de pessoas, à morte e à doença; é só agir como se os EUA fossem um país alienígena, sem ligação ao resto do mundo e a ideia da “América primeiro”, das “fronteiras fechadas”, funcionasse contra pandemias, catástrofes naturais e depressões económicas. 

Para quem leu A Conspiração contra a América, de Phillip Roth, a sensação é de que se está a viver dentro da trama, transposta para a atualidade (os acontecimentos do livro passam-se nos anos 1940, descrevendo uma “história alternativa” na qual Franklin Delano Roosevelt, o incumbente, perde as eleições presidenciais para Charles Lindbergh, apresentado como um simpatizante de Hitler e opositor da guerra, e os EUA são assolados por uma maré de antissemitismo). Publicado em 2004, o livro é de uma presciência arrepiante - incluindo na forma como demonstra que é muito fácil passar a ferro as supostamente tão resilientes barreiras anti-autocracia. 

E sim, as barreiras já foram. Dir-me-ão que vai haver processos nos tribunais, e que os “checks and balances” vão acabar por funcionar. Funcionar como, quando? 

Não, as democracias não estão preparadas para resistir a autocratas eleitos. Já devíamos saber isso, a história explica; mas fomos e somos demasiado arrogantes na ideia de que os bons e o bem são mais fortes que os maus e o mal; que a civilização triunfa sempre sobre a barbárie. 

Volto a Rebecca Sonit, que publicou este domingo um texto no Guardian sobre, precisamente, resistência. Diz ela que “lutar pela justiça não tem de ser um ato grandioso e dramático, pode ser pequeno”. Cada um de nós, diz ela, “precisa de defender princípios, bem alto, em qualquer lugar e em qualquer momento, sempre que pudermos. Usadas estrategicamente, as nossas vozes podem fazer muito para preservar as visões anti-autocráticas sobre factos, ciência, história, direitos, justiça e inclusão. (…) Quanto mais nos opusermos, mais será difícil para esta agenda autocrática ter êxito e mais tornaremos desconfortável a aquiescência dos que alinham com a mentira e a crueldade. (…) Algo que deve ser dito mais vezes é que a razão pela qual autocratas são autocratas é que são impopulares. Têm de usar a ameaça da força em conjunto com a intimidação e táticas de supressão para conseguirem o que querem.”

Pois - mas, estamos a descobrir de novo, como se fosse realmente novo, os autocratas podem ser populares. E por mais que devêssemos sabê-lo, e saber como se lida com isso, não sabemos. Vamos de ter de aprender, e depressa. 

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