No labirinto capitalista de Xangai.
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A primeira série de Wong Kar Wai é outra cantiga

Chama-se Blossoms Shanghai, era um título muito aguardado no streaming, e estreia hoje na Filmin. Uma coisa é certa: vai surpreender os apaixonados pelo cinema do realizador de In the Mood for Love.
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Depois do cinema, a televisão... Uma década exata dista a última longa-metragem de Wong Kar Wai, O Grande Mestre (2013), daquela que hoje se apresenta como a sua primeira série, Blossoms Shanghai (2023-2024). E nesse separador temporal perceciona-se uma transição clara. Vejamos: no percurso deste nome radicado em Hong Kong, o cinema é sobretudo um capítulo de brilhantismo referente aos anos 1990 - vá lá, com um magnum opus em 2000, In the Mood for Love / Disponível Para Amar, e respetivo remake, 2046 (2004) -, afigurando-se agora a televisão como o meio mais atrativo para o cineasta da imagem-estilo. Tanto assim é que já está anunciada a sua próxima série, Tong Wars, sobre a experiência sino-americana no século XX.

Um enorme sucesso na China, onde foi transmitida no final de 2023, Blossoms Shanghai chega então esta terça-feira, em simultâneo, a Portugal e Espanha (os primeiros países europeus a estreá-la), através da plataforma Filmin. Ficarão disponíveis os primeiros 15 episódios de um total de 30 (com 45 minutos cada), mas por fases. Ou seja, na prática, a estreia é doseada em cinco episódios semanais: os próximos caem a 24 de junho e 1 de julho. E a par deste “evento”, o próprio cinema Nimas, em Lisboa, propõe, até início de julho, a revisitação de cópias restauradas da era dourada de Wong Kar Wai - Ao Sabor da Ambição (1988), Dias Selvagens (1990), Chungking Express (1994), Anjos Caídos (1995), Felizes Juntos (1997), Disponível Para Amar e 2046 -, depois de no último sábado ter exibido, em antecipação, os dois primeiros episódios de Blossoms Shanghai.

Sobre a série, declarou Wong Kar Wai à imprensa, em 2020, que queria “convidar o público a mergulhar nas intrigas de Xangai e dos seus habitantes no início dos anos 1990, uma época emocionante que abriu caminho para a prosperidade da Xangai moderna.” Como é que o fez? Baseando-se num romance de Jin Yucheng, Blossoms (publicado na China em 2013), “o cenário perfeito para visualizar e partilhar o amor” pela sua cidade natal.

Crónica de um tempo e lugar

Um regresso às origens, pois então, Blossoms Shanghai representa, acima de tudo, uma mudança de ritmo no “modo de contar”, que apesar de não obliterar completamente a marca do seu realizador/criador, reconfigura-a a um nível que pode (ou não) trazer sentimentos de ligeira derrocada aos espetadores que anseiam pela verve cinematográfica de Wong Kar Wai...

1993 é o ano de referência, a partir do qual se recua, ora a 1990, ora a 1988, para contextualizar personagens, mas também para fazer uma crónica de época. A saber, a Bolsa de Xangai abriu em 1990 e trouxe consigo uma manifestação óbvia do crescimento económico iniciado em finais da década de 1980, sendo nesse período que Ah Bao (Hu Ge, uma versão engomada de Tony Leung) ascende na esfera dos negócios, orientado pelo mestre da finança Tio Ye.

A sua história ramifica-se em hotéis e restaurantes (Peace Hotel, Grand Lisbon, Tokyo Nights...), ruas (Nanjing Road, Huanghe Road) e outras personagens, a maioria femininas, que respondem a um certo desígnio novelesco, segundo o qual é preciso tagarelar muito para manter vivo o tempo de ecrã. A exceção é Li Li, a dona do proverbial Grand Lisbon, que estabelece na rua dos restaurantes o conflito entre o velho e o novo, mostrando-se, ela própria, uma criatura de fascínio, entre a beleza exuberante e a presença suave.

Consta que Wong Kar Wai terá apelidado a série como In the Mood for Shanghai, o que faz sentido em termos emocionais. Mas este está longe de ser o virtuoso objeto romântico que era In the Mood for Love; a comparação serve apenas a inteligência do marketing. Blossoms Shanghai é outra cantiga. Talvez uma cantiga popular, mainstream, com alguma justeza no espetáculo glamoroso, mas, ainda assim, carente de zonas de silêncio e corpos acima da ambição capitalista.

O trabalho de fotografia, a cargo de Peter Pau (oscarizado por O Tigre e o Dragão, de Ang Lee) ainda remete para o “viciante” universo plástico de Wong Kar Wai, com as suas cores a forjarem uma escrita visual, mais aquela omnipresença dos relógios de parede. Porém, aqui é a narrativa que toma a dianteira, com uma panóplia de secundários que parecem não conhecer outra realidade senão o fogo cruzado das palavras, a energia da intriga e o desafio intenso do quotidiano, tudo revestido de uma camada extra de lustre e pó de arroz.

O que me recorda a frase do Tio Ye a Ah Bao, logo no primeiro episódio, sobre a importância de um bom fato: “Em Xangai, o negócio tem tudo a ver com estilo, teatro e acesso.” Eis um excelente resumo da criação televisiva: Blossoms Shanghai é um fato impecável.

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